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Acusados de tráfico de drogas, Rafinha, Luan e Henrique contaram à Pública os desafios de viver pela primeira vez o dia a dia, ora monótono, ora surreal, em presídios de Salvador, Brasília e Rio de Janeiro

Reportagem
23 de janeiro de 2019
12:08
Este artigo tem mais de 5 ano

No cotidiano do sistema penitenciário existem preço e esquemas para tudo: espaço, alimentação, roupas, drogas, bebidas e sexo. Na maioria das vezes, o estado fornece apenas uniforme, alimentação servida por meio de quentinhas e, com alguma sorte, produtos de higiene pessoal. Segundo os entrevistados, para sobreviver numa prisão brasileira é preciso, antes de tudo, ter saúde, mental e física. Conhecimento e malandragem ajudam, mas o fundamental é dinheiro.

De classe média, brancos e com segundo grau ou técnico completo, os três são minoria dentro da massa carcerária brasileira de mais de 700 mil presos, formada por 64% de negros e 75% sem ensino médio, segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, de junho de 2016.

Em suas experiências, eles afirmam que as facções nos presídios impactam o bem-estar de outros detentos. Na cadeia, enquanto muitos dependem da ajuda familiar para sobreviver, com criatividade, habilidades e oportunidades certas, outros são capazes de multiplicar dinheiro e até ajudar suas famílias além dos muros.

Nas histórias a seguir, os ex-detentos, que tiveram seus nomes trocados para garantir o sigilo da fonte, revelam sem meias palavras a intimidade e os bastidores do que viveram dentro da cadeia.

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Férias frustradas de verão – Um carioca no presídio da Mata Escura

“Fui com os outros novatos até a cela dos frentes da cadeia. Tinham trinta malucos com facão de açougueiro e sangue nos olhos. Os caras olharam pra mim e falaram: ‘Qual é cabeludo, dá um passo pra frente aí, ô, tatuado!’. Dei um passo pra frente. ‘Qual tua graça?’, ‘Rafael, mas pode me chamar de Carioca, que é como todo mundo tá me chamando.’ O frente respondeu: ‘Carioca, é? Tu fecha com quem? Vamos ver se tu é carioca mesmo…”

O relato de Rafinha aconteceu na chegada à “Cadeia Velha”, dentro do Complexo da Mata Escura, em Salvador. Os “frentes” eram os líderes da facção baiana Comissão da Paz, conhecida pela sigla CP. Eles interrogavam cada novato que lá chegasse para saber se os detentos “fechavam” (eram filiados) com alguma facção. Rafinha tinha 36 anos quando foi preso, era um típico garotão da zona sul carioca, solteiro e sem filhos que vivia no quartinho dos fundos na casa de sua mãe em Copacabana. A pele branca queimada de praia, riscada de inúmeras tatuagens, traz o time do coração preenchendo as costas. Do quartinho da mãe ele administrava um negócio de passeio de cachorros, além de ter numa gavetinha um estoque de drogas diferenciadas, que ele, eventualmente, “adiantava” para os amigos. Entusiasta da cultura musical trance, cultivava alguns dreads no meio do cabelo comprido e liso, e todos os verões se jogava para os festivais e raves que pipocam pelo Brasil.

Era janeiro de 2015, pulando de um festival para outro, policiais militares prenderam Rafinha na Chapada Diamantina. Escondidos no estacionamento do evento, quando Rafinha percebeu os PMs já era tarde demais para recuar. Os policiais acharam com ele 2 gramas de cocaína e um de MDMA, 20 gramas de diferentes tipos de haxixe e algumas doses de LSD. Após horas de interrogatório no posto policial local, ele foi acusado de tráfico e enviado para Seabra, cidade colada na rodovia BA-024, a quatro horas do festival em que foi preso. A cidade de 5 mil habitantes tem uma praça, uma escola, um hospital, um posto de gasolina, muitos bares e uma delegacia com 12 celas, todas sem porta, arrancadas durante uma rebelião, instigada por presos paulistas anos atrás, e que nunca foram repostas.

“Fizeram minha ficha e me jogaram lá. Primeiro, eu fiquei no ‘curral’, que é um quadrado sem nada, tipo uma solitária, só tem parede e duas grades, não tem onde cagar, mijar, não tem nada. Fiquei lá um dia e uma noite inteiras e, na manhã seguinte, entrei pras celas. Nesse meio-tempo, conversei pelas grades com a galera, ‘Qual é, cabeludo? Rodou onde? Rodou com o quê?’”

Logo de cara, Rafinha viu outro cara com uma pulseira do mesmo evento onde ele foi preso. “Qual é, irmãozinho? Rodou no festival?”, quis saber Mineiro, que foi detido fumando maconha na entrada da festa. Começava ali uma história de amizade que se manteve mesmo depois de Rafinha ter sido solto, seis meses depois.

Toda cela tem um preso que por ser mais antigo no sistema é mais respeitado e exerce um papel de liderança ou mentoria; em alguns lugares essa figura é conhecida como “o mais velho”.

“O mais velho perguntou: ‘Já ligou pra algum familiar teu? Não? Então vou te dar a fita do cara que vai liberar o telefone pra tu ligar pra tua mãe, o cara libera tudo aqui’. ‘Libera tudo, como assim?’ Eu perguntei. ‘Ele é o cara que libera tudo, se tu quiser droga, comida, cigarro, água. Tu vai ter que falar com ele’.”

Rafinha articulou com o policial e combinaram que sua mãe depositaria dinheiro na conta do agente, que fazia compras para Rafinha e toda a cela na cidade. Galão de água de 20 litros, maço de cigarros Gudan, pão francês, queijo e mortadela, isso fazia a galera se sentir melhor e ele ganhava aos poucos respeito do grupo. Havia dez pessoas na cela quando Rafinha chegou e, durante sua estada, sempre entrava e saía gente.

A carceragem reunia pessoas que cometeram crimes na região e aguardavam julgamento em alguma comarca próxima ou transferência para o presídio de Salvador, caso de Rafinha. Segundo Rafinha, a maioria dos presos tinham histórias envolvendo bebida. Foi tomar uma com a cônjuge, passou da conta, pintou um ciúme e alguém terminou levando uma peixeirada. Era a trama mais comum. Vez por outra apareciam pessoas transferidas do presídio de Salvador para serem julgadas na área e que traziam consigo as histórias sinistras do Complexo Prisional da Mata Escura e suas facções criminosas.

A cada sete dias, rodava uma lista com os nomes dos presos que tinham de ser transferidos para Salvador, e o de Rafinha só entrou na terceira semana.

“Eu subornava o policial, ele dizia: ‘Daqui a três dias vão vir os caras aí pra rebocar a galera’. Ligava para casa e pedia para minha mãe botar 50 conto na conta dele, e meu nome não entrar na lista. Uma vez esse policial que eu molhava a mão estava de folga e eu fui transferido.”

No dia da transferência, foram seis horas de viagem até Salvador, dentro de uma Chevrolet D20, com seis presos no fundo, todos algemados.

“Não tinha ventilação nenhuma. Um dos malucos tinha câncer nos testículos, ele tinha de ficar de perna aberta. Ele reclamava de dor, e os policiais mandavam calar a boca. ‘Tenho incontinência urinária, preciso mijar!’ E os caras nada, seis horas depois chegamos no Complexo da Mata Escura, em Salvador, que é como se fosse Bangu, no Rio de Janeiro.”

Mas antes de conhecer o presídio onde iria aguardar seu julgamento, Rafinha passou alguns dias na unidade de triagem conhecida como Cadeia Pública.

“Era um lugar muito pequeno, talvez 10 por 10 metros, sem energia elétrica, só tinha uma comarca, que é onde a galera coloca o colchão pra deitar. Tinha uma divisoriazinha e, do outro lado, uma privada colada na parede e um cano saindo de cima que servia como chuveiro.”

Rafinha dividiu o espaço com 13 pessoas. Não havia iluminação nem saída para banho de sol, e água e comida eram recebidas por um pequeno retângulo na porta. Havia ainda uma janelinha gradeada pela qual os novatos escutavam as pessoas das outras alas gritando, enviando mensagens.

“Era cheio de barata e mosquito, então a gente ficava na parte da manhã matando as baratas e os mosquitos, quando escurecia, depois das seis, a galera ficava revezando na janelinha, de lá a gente também via ratos saindo dos buracos, e as corujas vindo e pegando os ratos, era nossa televisão, era uma loucura cara.”

Outro encontro ajudou Rafinha a entender as regras do lugar. O apelido dele era Gago Zóio, porque ele não tinha um olho. Ele me alertou que eu seria mandado para o pior pátio da cadeia, a dos homicidas e traficantes.

“E ele falou: ‘Vocês que são novatos vão primeiro pra cela dos frentes da cadeia, e eles vão te fazer um interrogatório, vão estar de facão, então se liga, não gagueja, não fica com medo, eles não vão fazer nada, porque a ordem na cadeia é não fazer nada, a cadeia tá calma, não rola morte já tem seis meses’.”

Dias depois o grupo, ainda com seis que vieram de Seabra, foi para um novo curral, uma espécie de solitária maior com seis comarcas.

“Fedia mijo e merda de gato. Tinha um gato morto num canto, e atrás de uma divisória tinham dois canos jorrando água 24 horas. O lugar era úmido, escroto, tinham ratos comendo o resto dos gatos.”

“No dia seguinte, fomos transferidos pro pátio, passamos pela triagem dos policiais e depois a entrada. Tem um corredor e os presos ficam de frente pra grade e, caralho, era muita gente. O presídio todo fica batendo na grade ‘Aí, chegou novato’. Veio a voz de um cara lá de dentro: ‘Quem for novato vem aqui comigo, quem já for da casa vai pra suas respectivas celas’.”

A guerra de facções na Bahia

O Complexo da Mata Escura reúne vários presídios que abrigam os detentos separados por facções, BDM (Bonde do Maluco), Caveira e CP (Comissão da Paz).

Como ocorre em outros lugares, há o chamado seguro, onde ficam pessoas juradas de morte pelas facções (como delatores) ou condenados por crimes específicos, como estupro. Não era o caso de Rafinha, que foi designado para onde havia vaga, na Cadeia Velha, comandada pela CP.

“Na Cadeia Velha eram dois pátios e cada um com dois andares. No pátio 1, no andar de baixo, ficava a galera que cometia infrações mais leves como assalto e interceptação de cargas. No andar de cima ficava a crença e o seguro. Existe um portão que vive trancado na crença que é para a galera não passar pro seguro. No pátio 2, no andar de cima e de baixo, fica a galera com infrações mais pesadas e não tinha seguro, mas tinha uma cela lá que era dos homossexuais. Eles circulavam entre a galera normalmente. Não tinha agressividade contra eles não, pelo contrário, eles eram respeitados lá. Nos dias de visita eles recebiam visita de outros homossexuais. Mas era muito difícil alguém do dia a dia de lá visitar a cela deles.”

Em 2010, um traficante da CP conhecido como Davi Gordo encomendou 10 quilos de cocaína de um fornecedor de São Paulo por R$ 60 mil. A droga foi levada no fundo falso de um carro guiado por Jean Carlos dos Santos, 37 anos, o Taxista, e Camila Frias, de 22 anos, a Loira, suposta namorada de um líder encarcerado do PCC. Para driblarem a polícia, eles fingiam ser um casal, o disfarce era completo com Rickelmy, filho da jovem, de apenas 1 ano. A entrega chegou ao destino, mas o casal não recebeu o pagamento e foi sequestrado por traficantes do CP. Eles entraram em contato com o PCC, posando de policiais, e exigiram R$ 50 mil. O resgate foi pago, mas o casal foi assassinado. Poupada, a criança foi abandonada num estacionamento.

O episódio desencadeou uma guerra entre as facções e, por essas e por outras, paulistas em geral não eram bem-vindos nas prisões baianas. À época da prisão de Rafinha, o PCC ainda era aliado da facção carioca Comando Vermelho. Esse foi o alerta de Gago Zóio: os frentes tentariam descobrir se Rafinha era filiado ao CV.

“Chegamos lá na cela dos ‘frentes’, tinha 30 caras lá, 30! Só os caras que cometeram as atrocidades mais trevas na Bahia, matador de polícia, bizarro! Moro no Rio e frequento favela desde criança, já vi tiroteio, sei como é o esquema. Eu pensei, tou dentro de uma cachanga e vou desenrolar com o dono da favela, mas tá tranquilo. O cara já olhou pra mim, branco, todo tatuado, cabeludo, de dread…”

A estratégia dele foi inventar uma narrativa que não revelasse seu passado de rapaz de classe média carioca.

“Falei que era hippie, que tinha vindo trabalhar numa festa e rodei com drogas. Eles queriam saber com quem eu fechava: ‘É Comando Vermelho? É ADA? Terceiro Comando? Fecha com os polícias?’. Eu disse que não fechava com ninguém: ‘Como que tu roda em outra cidade com droga, rodou com quê?’ Respondi: ‘MD, haxixe paquistanês, haxixe marroquino, dry-ice…’. E os caras: ‘Mas que porra é essa?’.”

“Até que um falou: ‘Tu tem sorte que é carioca… Tu mora onde lá no Rio?’. Falei que morava no centro, perto da Central do Brasil, do Sambódromo, ‘onde rolam os desfiles’. Aí um maluco lá de trás: ‘Aí! Minha tia mora lá! Providência, não é isso? Minha tia mora lá, é empregada lá, foi bem recepcionada. Aqui a gente gosta dos cariocas, só não gosta de paulista.”

“Veio outro e disse: ‘Vamos ver se tu é carioca mesmo! Chama lá o Carioca da [cela] 1.’ Nesse meio-tempo continuaram o interrogatório, eles o tempo todo querendo arrancar que eu era de alguma facção.”

“Lá eles sempre falavam ‘aqui é duas letras, CP! Nada de bagulho de três letras, esses filhas das puta do BDM e dos Caveiras’. Uma vez eu contei pra eles: ‘Caveira lá no Rio é outra coisa, é polícia, é Bope, cês tão maluco!’. E os caras: ‘Ih alá! Que porra é essa!’. Aí eu pegava o celular de alguém e botava no YouTube ‘Faca na caveira – Bope’ e os caras ficavam com mais ódio dos caras do Caveira lá.”

Após dez minutos de conversa, o Carioca da 1 atestou que Rafinha era seu conterrâneo.

“O cara me levou pra G7, a cela onde eu ia ficar, me apresentou pro mais velho de lá. Nos primeiros dias, foi meio conturbado, porque uma coisa é tu ver um filme, ver aquela parada, e falar ‘isso é um filme’, outra coisa é tu estar lá dentro.”

Não demorou para que Rafinha e Mineiro, aquele da pulseira do festival, ficassem amigos do Carioca da cela 1. O Carioca mostrava para Rafinha e Mineiro quem eram os frentes da cadeia e explicava as regras. Os dias de visita eram sagrados, ninguém podia olhar para a mulher dos outros, quem não tinha visita deveria evitar andar nos corredores e, de preferência, ficar escondido no banheiro. Se um preso cruzasse o caminho da visita de outro, ele deveria imediatamente virar para a parede e esperar que eles passassem. Jamais se deveria olhar para a visita de outro preso sem permissão.

No começo, os dias de visita foram bem difíceis. A mãe de Rafinha estava no Rio e ele tinha de ficar no banheiro. Mais de uma vez, ele viu um preso ir ao banheiro fumar crack escondido das visitas, para depois voltar para o pátio, pegar sua criança no colo e ficar bem louco “pedalando” em volta da quadra. Depois de algum tempo o Carioca da 1 apresentou sua família a Rafinha, e ele passou a almoçar com eles nos dias de visita. Para ele, foi um alívio conversar com pessoas de fora da cadeia.
Segundo Rafinha, as quentinhas fornecidas pelo estado “eram intragáveis”, o presídio tampouco provia itens de higiene pessoal mais básicos como papel higiênico e escova de dentes. Para sobreviver, os presos dependiam do que as visitas levavam.

Farinha, leite e achocolatado em pó eram fracionados em sachês que eram amarrados às grades e vendidos a outros presos, assim como outros artigos. Em Seabra, ele conversava com a mãe através do celular de um agente todos os dias. Em Salvador, já haviam se passado três semanas sem que ele pudesse atualizá-la, até que o encontro com “um frente” mudou totalmente sua história.

De funcionário a patrão

“Cada um tinha uma função, tinha uma galera que não queria lavar a roupa, eu ia lá lavava a roupa da galera e eles me pagavam. Tinha um cara escalado pra fazer a faxina dos dois pátios, às vezes, ele não queria fazer e ele me pagava para eu fazer no lugar dele. A faxina era um dia antes da visita, que acontecia às quintas e aos domingos. Sol escaldante, mais de 40 graus. Nego lá vende de tudo, vende droga, vende celular, vende televisão, rádio, remédio.”

“Um dia um dos frentes me chamou pra fumar um baseado e me perguntou se eu não tinha como botar crédito no celular dele. ‘Se botar R$ 50, eu te pago aqui, só cair a recarga que eu pago.’ Eu pedi o telefone dele pra ligar pra minha mãe. O cara adorou, no dia seguinte ele mandou um maluco com um monte de papel e anotação pra eu botar crédito, mais de 20 papéis com números diferentes. Passei a ganhar confiança dos caras assim, porque toda vez que os frentes queriam crédito eles iam até mim.”

“Minha mãe catou toda a grana que eu tinha em casa e no banco. Ela botava os créditos e eles me pagavam. Fiquei ganhando dinheiro na cadeia assim.”

Os rendimentos do carioca giravam entre R$ 500 e R$ 600 por dia, mas os gastos eram igualmente altos, cerca de R$ 400 para comprar o que comer, beber e itens de higiene pessoal.

“O governo não dá nada, papel higiênico, toalha, só dá um uniforme, mais nada além disso.”

O estrato social mais baixo na pirâmide social naquela cadeia é chamada de maloca, formada por aqueles que não tinham visita, que a família havia abandonado.

“Os caras não tinham dinheiro, não tinham nada. Às vezes, eles iam de cela em cela mendigando e alguém se sensibilizava, dava um pacote de biscoitos, uma pasta de dentes…”

A princípio, a cela de Rafinha, a G7 tinha sete presos, mas chegou a ter 13, divididos em oito comarcas. Havia noites com cama para todo mundo, outras não.

“Se chegasse qualquer pessoa da facção, eu tinha que ceder o lugar. Era foda. Às vezes, eu tava tranquilão na cama, passava uma semana e eu tinha que dormir no chão. Às vezes, me botavam pra ficar de vigília, tinha que acordar mais cedo que todo mundo na cela e ficar vigiando os agentes chegando na cadeia para abrir o portão. Daí, avisava pra todo mundo: ‘As putas tão na gaiola’. Eram os agentes. ‘As putas na crença.’ Eles passavam de manhã pra fazer a contagem. Às vezes, três agentes entravam, levantavam a porra toda pra ver se tinha celular ou droga, não achavam nada e saiam, chamando um por um por nome.”

Entre 7h e 16h, os presos ficavam soltos no pátio, andando, jogando bola. Depois voltavam para a cela, uma nova revista e contagem eram realizadas e eles ficavam presos até a manhã seguinte.

“As drogas e celulares ficavam escondidos na parede ou então no ‘boi’, que é a privada onde a galera cagava e mijava, tinha umas que eram desativadas porque ligavam uma cela a outra, então eles passavam droga pelo boi, mas a grande maioria passava pelo bonde, que é uma corda com tipo um bolso de calça jeans. Eles dobravam e costuravam, pegavam aquela linha e iam puxando a bolsinha com droga ou dinheiro dentro e ia passando entre galerias, e isso era visto pelos agentes e a Polícia Militar, que ficavam em cima da gente andando, fazendo escolta, mas eles nem tavam aí. De manhã a galera vendendo droga gritando: ‘Cocaína braba de R$ 5’. ‘Aí, tenho celular!’”.

O “mergulhão” e as iguarias dos evangélicos

“A comida do presídio era horrorosa. De café da manhã vinha um pão francês com uma rapa de manteiga, que nem dava para sentir o gosto, uma fruta e um café com leite nojento. O almoço era sempre salada, arroz, feijão e um suco com uma carne.”

“Chamavam de ‘carne de passarinha’ e no céu só tinha urubu voando. A gente juntava a quentinha do almoço e do jantar, jogava fora o arroz azedo, pegava as carnes, desfiava, misturava com farinha amarela e fazia um pirão.”

Para cozinharem o pirão, eles usavam o “mergulhão”: um balde com água e dois ferros ligados com fio de cobre na corrente elétrica. A energia esquentava a água. Colocavam chinelos para os cabos não encostarem e não dar curto-circuito.

“Não podia tocar na água porque aquela porra derretia tua mão. Tinha que colocar o pote de comida no talento e tinha um rodízio para fazer isso. ‘Aê, Carioca, hoje é teu dia.’ E me zoavam: ‘Carioca vai perder os dedos, vamos ver, vamos ver, Carioca foi criado com empregada…’”

“Nos crentes [evangélicos], podia vender tudo. Na real, nas outras podia também, mas os crentes entravam com muita coisa. Quando eu vi o crente vendendo caixa de bombom… ‘Quanto é?’ ‘R$ 15.’ ‘Quero dez caixas de bombom.’ ‘Pra quê? Pra revender?’ ‘Não, quero comer, mó tempão sem comer chocolate.’ Os caras tinham água com gás, desodorante, escova de dente, fio dental, biscoito cream cracker.”

“Tinha uns crentes que conseguiam pegar comida de dieta diferenciada. E eu comprava a comida dos caras. ‘E aí, abençoado? E essa quentinha aí? Vai comer?’ ‘Nem, hoje quero comer arroz e feijão, isso aqui tá muito fraco pra mim.’ ‘Então me vê tua quentinha aê.’ A quentinha do cara ainda vinha com uma fruta…”

Enquanto ele esteve preso, houve uma falta de água em Salvador e os únicos que tinham água eram os crentes, que vendiam garrafas de 1,5 litro por R$ 20. Rafinha comprava e escondia suas águas debaixo do colchão e dormia por cima delas, todo torto, porque tentavam roubar suas garrafas durante a noite.

“Ficamos sete dias sem água, até que ela foi chegando aos poucos. Primeiro tinha pros frentes, depois pra cadeia. Se sobrasse, ia pra galera da maloca.”

“De 15 em 15 dias ia uma galera dos direitos humanos lá. Aí quando eles iam galera botava pra fuder, falava tudo que acontecia, tudo que tava dando errado que os agentes tavam fazendo, as merdas que tavam rolando, porque o processo não desenrolava, porque a família não tava podendo visitar, várias histórias doidas.”

Às visitas, revistas vexatórias e lágrimas

Segundo Rafinha, as visitas aconteciam nas quintas e nos domingos, quem tinha visita ficava aguardando encostado numa parede. Vinha muita criança, mãe e mulher de preso, e após uma revista vexatória muitas entravam chorando.

“É uma parada muito surreal pra mulher, é uma parada desumana. Minha mãe queria me visitar e eu falando pra ela, não vem, não vem, a revista aqui é sinistra.”

“Aí um belo dia eu tou lá tranquilão e vem o carteiro da cadeia: ‘Coé Carioca G7, visitaaaa…’. E eu, hein? Era fora de dia de visita, era visita com advogado. E eu, caralho, cheguei lá fora algemado, e quando vi minha mãe fiquei branco, comecei a tremer, meu olho encheu d’água. Eu não chorava, mas também não falava. Eu queria chorar, mas não conseguia. Minha mãe chorou pra caralho, chorou muito.”

“Ela tinha comprado um monte de coisa, mas os caras não deixaram entrar as compras. Então eu falei pra minha mãe levar de volta que eu ia fazer as compras entrarem de algum jeito. Eu cheguei num crente, disse que pagava a passagem do familiar que ia vir visitar ele: ‘Tem uma sacola cheia de compra pra mim, eu pago a compra da tua mulher, ela faz a lista, manda pra minha mãe, ela vai e faz a compra, só que ela tem de se encontrar com minha mãe pra pegar a compra dela e a minha, dividir entre a galera pra conseguir entrar aqui dentro, e eu ainda pago a passagem dela e dou um dinheiro pra você’. Eu sabia como entrar na cabeça dos caras e eu entrava. A partir da terceira visita que começaram a entrar as coisas pra mim lá dentro tava com muita coisa estocada e comecei a vender também.”

“Minha mãe ficou dois meses lá na casa da amiga dela, parou a vida dela, ficou lá. Quando ela viu que eu não ia sair nesses dois meses, ela teve de ir embora, e eu ainda fiquei mais um tempo.”

“Foi uma experiência de vida muito doida, que me abriu muito a cabeça em relação a saber que a Justiça brasileira é totalmente falha, tinha pessoas que rodavam com 100 trouxinhas de crack e duas pistolas .40, granada, munição, ficava dois dias lá e ia embora. Eu, com minha quantidade, fiquei lá o maior tempão porque eu era tipo um gringo lá dentro. Mas eu não sofri violência nenhuma, ninguém me bateu, ninguém tentou fazer gracinha comigo, nem os agentes. Peguei uma época tranquila.”

“Mas realmente, cara, aquilo não ressocializa o ser humano, não tinha nada pra fazer lá, ficava jogando carta, jogando futebol, dormindo, ouvindo música, vendo TV. Só quem estudava eram os caras da crença, que estudavam três dias e um dia diminuía da pena, mas fora eles ninguém mais ia. Não tinha trabalho, e tinha preso que recebia o alvará pra ir embora e o cara não queria ir embora, rasgava o alvará: ‘Se eu for pra rua, eu vou morrer!’. ‘Se eu for pra rua, eu vou passar fome, aqui eu tenho alimentação, dinheiro, respeito’. Eu vi vários agentes entrando pra tirar o cara dali à força porque o cara não quer sair. Aí que o cara faz? Ele chega na rua e faz uma merda qualquer pra poder voltar, dois dias depois o cara está de volta, e a pena era maior e, pela pena ser maior, ele ficava mais tempo lá dentro, que é o que ele queria. Isso me fez ver que a Justiça brasileira realmente é uma merda.”

Retribuindo com interpretação de texto e baldadas

Rafinha conta que tanto sofrimento foi revezado de companheirismo e até mesmo de momentos lúdicos. Por ser alfabetizado, volta e meia detentos pediam sua ajuda para ler ou mesmo interpretar suas sentenças e outros ofícios. Seus conhecimentos sobre drogas também foram úteis dentro do sistema.

“Lá em Seabra eu conheci um cara de Estiva, interior dos interiores. ‘Carioca, eu tenho esse número de telefone aqui, mas eu não sei falar, você pode falar pra mim?’. Aí eu ligava e falava com o parente dele, falava por ele porque ele não conseguia se comunicar. Eu lia os papéis das audiências pros caras. E eu pra explicar aquilo pro cara entender, demorava horas, mas eu fazia o cara entender. Então, na minha passagem lá, tive minha parcela de retribuição… Criei algumas amizades lá que até hoje eu falo. O Mineiro é um que eu falo todo dia, ele parou de vender drogas, tem 30 anos e já foi preso cinco vezes. Tinha também muita tentação, toda hora vinha um ‘pô, carioca, arruma o contexto aí, arruma o contato aí’. Teve só uma vez que eu consegui botar haxixe lá pra dentro de tanto que eles me encheram o saco. Felizmente logo depois eu saí.”

Assim como os alimentos que chegavam na cadeia eram superfaturados ou de qualidade duvidosa, com as drogas não era diferente.

“A maconha de lá era tipo o pior solto da Bahia, não dava onda nenhuma. Um dia cheguei pros caras da minha cela e disse: ‘Cara, cês já fumaram no balde?’. ‘Coé, Carioca, que bagulho é esse?’ A baldada, cês não conhecem? Me dá um balde e uma garrafa de 2 litros.”

A baldada é uma forma de fumar maconha que consiste em cortar o fundo de uma garrafa pet e furar sua tampinha de maneira que um baseado a atravesse. Deve-se submergir a garrafa num balde cheio de água e depois colocar o baseado; com muito talento deve-se puxar a garrafa para cima lentamente, o que cria um dispositivo de êmbolo, preenchendo a garrafa com 2 litros de fumaça, que deve ser absorvida toda de uma vez ao retirar a tampinha, resultando em uma onda impactante e acessos de tosse.

“Apertei dez dola de cinco num baseadão só, coloquei ele na ponta da garrafa, acendia, e puxei, a coluna de fumaça se formando e os caras já olhando. ‘Caralho, carioca que que é isso? Que bagulho louco!’ Aí eu tirei a tampa, abaixei a garrafa, puxei toda a fumaça e os caras ficaram de cara comigo lá dentro. Geral ficou muito chapado, aí nego começou a espalhar isso pras outras celas: ‘Caralho, o Carioca me ensinou a técnica do balde, bagulho muito doido’. Aí todo mundo ia lá pra eu ensinar. Mermão, na semana seguinte todas as celas tinham um balde com a garrafa cortada, nego só fumava no balde agora.”

“Era maneiro… Mas maneiro é minha casa, minha cama, minha privada, meu chuveiro, tomar um banho tranquilo. Liberdade. Aquilo ali lá dentro é sinistro… Quando eu tava lá, não teve morte, mas teve porrada. Depois que eu saí, o Mineiro ficou ainda mais um ano, e disse que não tinha ninguém mais para botar crédito com facilidade, disse que o bagulho ficou louco, rolaram várias merdas, porrada, morte…”

Rafinha passou seis meses em Salvador, quando foi levado de volta a Seabra para a audiência em que sua acusação foi desclassificada de traficante para usuário, o que o fez ser libertado. Ainda assim precisou ficar três meses na cidade, assinando o processo. Entre passagens e honorários seu advogado cobrou cerca de R$ 10 mil.

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O seguro – A cadeia onde tudo é deixado para trás

“O seguro aceita qualquer pessoa, tem isso no estatuto: a partir do momento que você entra no seguro, você deixa tudo que você fez pra trás, zera tua vida, não importa. Não pode fazer nada.”

O seguro existe em todas as cadeias do Brasil. É onde pagam pena os tipos não tolerados pelas facções criminosas como X9 (delatores), estupradores, pedófilos, homossexuais, travestis e “Allan Delons” (apelido dado àqueles que cobiçam mulheres ou filhas de outros presos). Também vão parar lá sujeitos enquadrados por feminicídio, pela Lei Maria da Penha, por violar ordem de restrições, ou simplesmente por não pertencerem a facção alguma e terem medo de ir para um presídio de facção. Na maioria dos presídios, os que estão no seguro ficam isolados dos demais presos e costumam ser os escolhidos para serem arremessados do telhado durante as rebeliões.

No Rio de Janeiro existem unidades prisionais exclusivas do seguro, e foi numa delas que na última década se originou uma nova facção, o “Povo de Israel”, também chamada de “Povo de Rael”, sem território do lado de fora, mas com estatuto e regras próprias dentro dos muros dos presídios.

Luan tem formação técnica em elétrica, habilidade que ajuda muito no cultivo de maconha em interiores, onde se usam lâmpadas de vapor de sódio ou LED para criar um sol artificial. Entre mudinhas e pés prontos para colher, ele tinha uma centena de plantas de Cannabis quando, após uma denúncia anônima, a polícia invadiu sua casa e o levou preso por tráfico. Ele tinha 45 anos, nunca tinha sido preso e sua primeira ligação com o crime organizado se deu quando dividiu o “porquinho” (cela na delegacia onde presos aguardam para serem levados ao sistema penitenciário) com um gerente e três soldados do tráfico de uma comunidade controlada pelo Comando Vermelho (CV). Vislumbrando a possibilidade de recrutar o eletricista para a facção, os traficantes passaram a dissuadir Luan de ir para o seguro. “Lá é mó vacilação, os caras não respeitam porra nenhuma, vem com a gente com o Comando.”

O caminhão da SOE (Serviço de Operações Externas do Grupamento de Serviço de Escolta) despejou os presos numa cadeia de triagem, lá chamaram pelas facções, os traficantes atenderam ao chamado do CV, e Luan os seguiu, indo parar numa cela do comando.

“Esse é o primeiro lugar onde você chega pra poder ir pra qualquer outro lugar, cadeia ou presídio. Lá eles te tiram tudo, você fica sem cinto, sem chinelo, dependendo da cor da camiseta, não pode ficar. Você não tem direito a produto higiênico nenhum, só tem direito a duas refeições e o café da manhã, muito precário.”

“Nessa primeira triagem é um entra e sai de pessoas a todo instante. Tem muito bicho, muito percevejo, muita pulga. Não tem lugar pra você dormir direito. Horrível, cara, horrível, banheiro podre, sem privacidade nenhuma, aquele buraco pra você cagar, na frente de todo mundo. Aí tinham umas normas, você tinha que ter o mínimo de higiene, depois que usar tem que jogar água, o banho é mínimo, às vezes falta água. Água de beber é podre, aí porra, muita diarreia. É bizarro. Pra dormir é horrível, muito quente. Eu fui preso no auge do verão, chega a ser insuportável, aí começa a proliferar muita doença por causa do calor. E lá dentro tudo vira epidemia, entra um preso com conjuntivite a cadeia toda pega conjuntivite… Você tendo de conviver com tuberculoso tossindo e cuspindo sangue do lado de um cara com HIV. É surreal.”

Em menos de uma semana na cela do CV, Luan já tinha percebido a besteira que tinha feito. Descobriu que só por essa opção poderia responder por “tráfico associado”, o que aumentaria sua pena de seis meses a um ano. Usou R$ 200, metade do que tinha conseguido levar escondido, para comprar água e cigarros para o coletivo e negociar com o chefe da cela seu “pulo” para o seguro.

O “pulo” é uma manobra que presos utilizam para serem transferidos de cela. No momento da contagem, o preso se recusa a voltar para a cela. Segundo alguns agentes penitenciários que falaram sob anonimato, em algumas unidades onde a contagem é feita dentro da cela, o preso tenta sair correndo, ou mesmo agredir o agente para conseguir a transferência.

“O chefe da cela falou: ‘Cara, quando vier a próxima contagem, você sai e não entra, e deixa que eu seguro a onda da galera aqui dentro, porque a galera vai ficar revoltada, vai ficar puta, vai achar que tu é X9, que tu tá indo no seguro pra dar a planta daqui pra galera de lá’. E aí aconteceu isso, tem contagem todo dia, de manhã e de noite, você tem que sair da cela pra contagem, aí eu saí e não voltei.”

“Mas as celas eram muito perto uma da outra. Aí, quando eu entrei, eu fui muito hostilizado, a galera do seguro achando que eu era olheiro do CV, e a galera do CV achando que eu era X9. Foi complicado…”

“O seguro é ruim, mas lá no CV é dez mil vezes pior. Lá é bandido que enfrenta e mata polícia, então é um tratamento pior ainda. Tinha um monte de gente baleada, toda fudida, com pino. Gente que tomou tiro de fuzil, sacou? Cenário de The Walking Dead… Fiquei lá uns 15 dias, aí eu fui pro seguro, fiquei mais dez dias no seguro e, quando completou 24 dias, eu fui transferido pra Japeri. Lá eu fiquei mais quatro meses preso.”

O estatuto do Povo de Israel

O procedimento para quem chega na cela é ir tomar um banho, fazer a barba, cortar o cabelo e se apresentar limpo para ouvir o estatuto.

“Eles têm um estatuto de umas vinte e poucas regras que você não pode infringir. É um estatuto forte, uma lógica pra poder ter um mínimo de funcionalidade ali na situação. Aí o cara já te passa o estatuto pra você ficar ciente e não fazer as besteiras. Se depois que for passado o estatuto você fizer besteira… A primeira vez ainda é tranquila, mas na segunda o coro já come, e na terceira você tá mais fudido ainda dependendo do que você fizer. Eles passam o estatuto verbalmente, o cara vai falando pra você, mas tem também na parede. ‘Tamo passando aqui pra você, mas vale a pena olhar todo dia’.”

Qualquer “mancada” ou “vacilação” é discutida e resolvida lá mesmo, com os infratores do estatuto no meio de um círculo formado pelos demais presos da cela, onde eles debatem e julgam a situação e, se necessário, já realizam a execução.

“Todo dia tinha treta. Tem um negócio que eles dizem assim: ‘Circulou, não é pra um, não é pra dois, é pra geral!’. Quando eles falam isso, para tudo, ‘circulô’. Dependendo do grau de situação que você fizer, você apanha ou morre ali mesmo. Não pode bater na cara, mas no resto… Você vai apanhar tanto, vai apanhar hoje, amanhã, depois, e vai acabar morrendo uma hora. Porque lá não tem médico. Quando tu fica muito mal, eles chamam o caminhão da SOE pra te levar pra alguma UPA e você morre ali mesmo no caminhão da SOE.”

A cela evangélica

Depois de 15 dias numa cela do CV e mais uma semana numa de seguro, Luan teve lá mesmo, na triagem da casa de custódia de Benfica, uma audiência. Uma mera formalidade, segundo ele, em que a juíza nem sequer quis ouvir sua versão. Mantida a acusação, ele foi transferido para um presídio só de seguro em Japeri, num complexo prisional na Baixada Fluminense.

“Na hora em que cheguei, perguntaram: ‘Tem alguém evangélico?’. Gritei: ‘Eu!’. ‘Mas você, todo tatuado?’ ‘Sim, senhor, sou convertido.’ Aí o agente disse: ‘Se você entrar, depois pra sair é complicado, tem que passar no buque’.”

“O buque é o castigo que tem, a galera que muda de cela têm que passar e lá é terra de ninguém. Lá o estatuto não rola. Tem estupro e a porrada come.”

As coisas que Luan viu e ouviu na triagem o aterrorizaram, por isso ele insistiu em ir para a cela evangélica.

“Eu vi tanta merda que fiquei apavorado. Então, quando me deram oportunidade de ir pra cela evangélica, eu fui, sem saber que lá era proibido celular, então fiquei um mês sem falar com minha família. Pirei, mas aí acabei me adaptando. Foi bom por um lado, por não ter droga, não ter arma, não ter porradaria. Era mais tranquila, porque nas outras celas é um mundo. Tem de tudo. Tem bebida, droga, dinheiro, putaria. É uma terra de ninguém, muito mais agressiva…”

A cela evangélica ficava num pavilhão com cinco celas de cada lado, cada uma com cerca de 200 pessoas. Cada cela tinha 11 treliches de cada lado. O corredor no meio da cela é chamado de “Brasil”, em alusão a avenida que corta a zona norte carioca.

“‘Ó a Brasil! Ó a Brasil!’, é como a galera fala quando passa vendendo coisa na Brasil. Quem dorme na Brasil são os mais fudidos. Lá eles desenrolam tipo um cobertor, se tiverem botam um lençol por cima e dormem lá. Um do lado do outro de ‘valete’, que é um com a cabeça virada pro pé do outro. Se tem 66 camas, provavelmente deve ter umas cem pessoas nas camas, porque muitas vezes dormem dois por cama, e na Brasil tem mais umas cem pessoas, são 200 pessoas por cela. Dorme gente até dentro do banheiro. O cara faz merda e vai pro banheiro…”

Quando as luzes apagam depois das dez, é recomendado evitar transitar pela Brasil, para não correr o risco de pisar em ninguém. Caso seja necessário cruzar a Brasil, em respeito a quem está deitado, o preso deve passar “segurando o balão”, isto é, protegendo a genitália tal qual um zagueiro na barreira numa cobrança de falta.

O estatuto proíbe a venda de camas, os presos tinham de botar seu nome numa lista de espera e aguardar sua vez chegar, ou podiam ser convidados para dividir a cama com outro preso, o que aconteceu com Luan.

“Os caras perceberam que eu tinha dinheiro, aí um deles me chamou pra almoçar na comarca dele, e do almoço eu fiquei até a janta e na janta ele já falou: ‘Ah broder, tá mó cheia a Brasil, dorme aí logo deixa esvaziar que você volta’. Era o terceiro andar da triliche, aonde tem mais espaço. No cantinho ele tinha um ‘ateliê’ dele onde fazia artesanato, e eu comecei a trabalhar com o cara para me ocupar a cabeça. No final ele viu que dava pra gente ganhar dinheiro e aí a gente começou a parceria. A gente movimentava uns R$ 250 por semana e dava pra mim uns R$ 100 por semana. Uns R$ 400 a R$ 500 por mês. E isso é muito dinheiro lá dentro.”

A cela evangélica é tida como uma cela de confiança, e é dela que costumam ser recrutados presos para fazer serviços do lado de fora, como pedreiro, pintor ou a entrega de quentinhas.

“Então o que acontece, quem passava a alimentação pras celas era esse cara que fazia o artesanato. Então ele tinha acesso lá fora, saía todo dia duas vezes ou até três vezes pra entregar comida, e aí nessa entrega de comida ele pegava os pedidos de balão. Eram umas miniaturas de balão que a gente fazia e os presos compravam pra dar pras visitas. Era balão de time, Vasco, Flamengo… E tinha umas bandeirolas aonde a gente escrevia nomes do aniversariante ou alguma frase. A gente fazia uns abajures também, tudo com papel de seda e estrutura de papelão. Papelão a gente arrumava lá, agora cola, tesoura, papel de seda, essas coisas que tem de vir de fora e os carcereiros revendem pelo dobro pra essas pessoas de confiança. Então, esse meu amigo tinha acesso aos carcereiros pra comprar os materiais, fazer os pedidos e as entregas. A gente produzia dentro da cela e ele saía pra vender. No final a gente não dava conta de tanto pedido, a gente já tinha na comarca uma prateleira com as folhas, as coisas que precisam, tipo um ateliezinho mesmo, com funcionário ajudando pra comprar as coisas, pra descartar no lixo, pra fazer os cortes das coisas mais grosseiras, virou uma linha de produção. Muito maneiro, cara, tem gente lá que tá a fim de trampar, tem muita gente ali que não é bandido. Então movimenta a maior grana, e tem gente que sustenta família aqui fora com dinheiro lá de dentro. O cara tá preso e tá ajudando a família.”

O que aqui do lado de fora poderia ser considerado uma “economia criativa” surge da total ausência da ajuda do Estado.

“Na cadeia eles não te dão nada, você tem que ser dinâmico pra ganhar um dinheiro, a galera faz de tudo lá. Eu fiz artesanato. Quem tem um pouco de cabeça lá dentro vira uma empresa, dá pra ganhar dinheiro. E o que aconteceu comigo foi isso, no final eu tava com dois funcionários. Minha mulher ia lá e eu tava estressado de tanto trabalho [risos]. Sério, até pra me ocupar, né?, irmão, senão eu ia ficar maluco dentro daquele lugar. Então tentei me ocupar o máximo possível. Tem mil e um esquemas. Tem gente que recebe dinheiro em conta e aí ganha uma porcentagem, coloca credito em celular, deixa você falar no celular, te aluga o celular, enfim, um monte de situações de dinheiro dentro da cadeia, um monte.”

Como na cela evangélica não havia celular, depois de algum tempo Luan conseguiu um esquema em que ele escrevia um bilhete, entregava para o colega que entregava as quentinhas, e este passava o bilhete para um detento de outra cela, que por R$ 10 enviava via WhatsApp uma foto do bilhete. Um esquema raro e apenas possível por meio da construção de uma rede de muita confiança, afinal, é preciso passar o número de um parente a um presidiário.

Praticantes e convertidos

Apenas metade da cela de Luan era de evangélicos. Haviam ali também os que se “converteram” para dar um tempo da droga ou outros vícios. Ou os que, como Luan, tinham medo das outras celas. Tinha culto duas vezes ao dia, e uma vez por semana os evangélicos de todas as celas se reuniam para um culto. Era nesse momento, ou indo e voltando do banho de sol, que eles tinham contato com presos de outras celas.

“Algumas pessoas da ala evangélica costumam sair fora do banho de sol pra prestar serviço. Das outras celas não, só comissão, tem uma ou duas celas que tem a galera da comissão, que é o alto escalão lá da hierarquia dentro da cadeia. Eles desenrolam a história toda, desde a parte boa até as partes ruins, desenrolam negócio de venda de droga, de acerto de situações, quem vai apanhar e quem não vai, quem vai sair e quem não vai, quem vai morrer e quem não vai. Então a comissão é a galera que resolve, que decide tudo lá dentro. Aí, depois da comissão, vem carcereiro, e vai entrando pra dentro da situação. Mas deu um pepino é essa galera que desenrola.”

A cela evangélica era limpa e organizada. Rolava uma vaquinha para pagar alguns presos para fazer a limpeza, que incluía uma passada de pano na cela antes de cada refeição. Havia também pessoas destacadas para manter o banheiro limpo.

“Não tinha água corrente, a gente recebia uns tambores com água e tinha aquela cota pra todo mundo, então a galera tinha que se virar. Cada um tem um balde, então você tem que encher seu balde e guardar a água. Às vezes a galera roubava seu balde de noite. Além do balde, eu tinha garrafas pet, que eu enchia e guardava para quando faltasse água e ter aquela sobrevida. E tipo assim, um banho era uma garrafa pet de 2 litros. Aí tinha todo um sistema dentro da cela pras paradas funcionarem certinho. Da grade a uns 2 metros não ficava ninguém, a galera falava ‘da segunda pra trás’, da segunda comarca pra trás. Na frente da grade só ficava a galera que era ‘formada’. Que era como se fosse uma empresa, o pastor era o diretor, aí tinha o vice-diretor, os secretários, que era quem tomava conta da assistente social, pegava o dinheiro e compravam as coisas pra cela, prestobarba, sabonete, essas coisas pra galera que não tinha dinheiro. Tinha um sistema social lá dentro e tinha essas pessoas que eram da alimentação e as pessoas que eram da limpeza, do banheiro, tinha toda uma engrenagem funcionando, 200 malucos lá dentro, um monte de bandido. Se não tiver um pulso firme pra funcionar certinho…”

Além da contribuição pra limpeza, havia alguns presos que pagavam o dízimo ao pastor. Mas Luan se recusava.

“Eu não pagava o dízimo, porque eu comecei a me ligar nas transações dos pastores. Eles eram mais bandidos que os bandidos mesmo. Tudo manipuladores, agiotas! Então eu não pagava, não!”

Sexo, drogas e celulares moram logo ao lado

A cela evangélica era um porto seguro. O seguro do seguro. Um lugar de rara violência, e as penitências variam entre passar horas de joelhos, dormir no banheiro ou ser expulso da cela.

“Vira e mexe dava problema e tirava o cara da igreja e levava ele pro castigo pra ir pra outra cela. Às vezes tinha gente que saía da igreja porque tava doido pra cheirar pó, fumar maconha e fazer sexo. O cara ficava na igreja num período de abstinência e depois ele voltava pras celas aonde tinham as outras coisas e então ficava nessa rotatividade. Aí o cara tá lá, desandou, e volta pra igreja pra dar uma melhorada, entendeu? Na cela evangélica não tem porrada, você não vê gente apanhando. Lá nas outras celas é como eu te disse, circulô…”

Além de proibir o uso de drogas e celulares, a cela evangélica também não permite homossexuais, pornografia ou masturbação. Até a programação de carnaval da televisão era podada pelos pastores. Nas outras celas era bem diferente.

Homossexuais e travestis fazem programa dentro dos banheiros depois das 22h, ou durante o dia nos chamados “come quieto”, nome dado quando o primeiro ou segundo andar dos treliches são cobertos com um lençol. Diferentemente das unidades de facção, a homossexualidade é respeitada no seguro, desde que essas pessoas se anunciem na chegada, e suas relações sejam consensuais. Mas a homofobia existe, visto que essas pessoas devem evitar dividir cigarros ou copos com os presos heteros para não “contaminá-los”.

A máfia da fila

As visitas da cela evangélica aconteciam às terças-feiras. Os familiares chegavam por volta das 4h da manhã para conseguir entrar por volta das 10h, de pé, sacolinha na mão, faça sol ou faça chuva.

“Mas tem a máfia da fila e dá pra comprar lugar. Minha mina pegou amizade com a mulher de outro preso, que deu a planta toda. Ela ia pra Japeri na noite anterior e dormia numa pousadinha próxima ao presídio. A dona da pousada era fechada com um cara da comissão, então ela tinha um esquema de pegar senha, e daí minha mina já comprava a senha e não precisava chegar de madrugada, ela ia 8h e já tava com um número lá na frente.”

Toda semana a visita podia levar alimentos, e a cada 15 dias podia levar a “sucata”, pasta de dentes, chinelo, roupas, roupa de cama. Muita vezes os presos não usam essa sucata e acabam revendendo.

“A galera passa entre as celas assim: ‘Tá abalando duas bermudas R$ 15’. É uma loja o tempo todo. Tanto de roupa quanto comida, doce, fica passando o tempo todo. Óculos de grau, a sucata entra e a galera faz dinheiro.”

A dança do dinheiro

As visitas também podem levar R$ 100 para os presos, que só podem acumular até R$ 200 mediante risco de ter a grana confiscada pelos guardas.

“Se tu tá com muito dinheiro, tem que ficar esperto, tem que tá mocozado, ou você empresta, divide com os outros… Dinheiro você não perde, porque tem no estatuto que você não pode deixar sua dívida, senão o cara vai te cobrar nem que seja com sua vida. E se você conseguir fazer muito dinheiro, na visita você faz sair o dinheiro”.

“A cela evangélica eles não revistam muito, não, as outras revistam mais por causa de celular, dinheiro e droga, mas é um ciclo, eles dão uma batida, confiscam, aí depois voltam e vendem pra mesma pessoa. Um celular custa R$ 3 mil, cocaína é 20 ou 30 mil o quilo, e entra quilo de pó e de maconha. A galera faz um fermentado de pão numas garrafas pet que tem que ficar abrindo de tempo em tempos senão explode aquela porra. Vira e mexe você escuta um barulho, parece uma dinamite mas é essa aguardente altamente concentrada que eles fazem lá explodindo. Eles pegam essa aguardente e misturam com Ki-Suco, então vira cachaça de vários sabores…”

Cada cela tem seu próprio mercadinho, que é abastecido pela cantina do presídio. Os presos da comissão têm permissão para ir até lá, eles tiram o pedido nas celas e vão lá comprar o que precisa. Volta e meia alguns comissionados passavam pelo corredor entre as celas com um carrinho de compras cheio de refrigerante à venda com preços variando entre R$ 15 e R$ 20 cada.

“O que a gente gastava em comida era regalia mesmo, era refrigerante, doce, era pra ter uma comida diferente de vez em quando. Um chocolate era R$ 10, uma caixa de bombom era tipo R$ 50. Um refrigerante a gente dividia em quatro. Um maço de cigarro valia uns 50. Dependendo do lugar tem outras regalias, tem pizza, tem churrasco, na minha cela não tinha isso, mas na cela dos comissionários lá tem churrasco, geladeira, os caras tem gelo, tem acesso à cantina, que é tipo um supermercado, que abastece as celas. O negócio funciona. Disso aí a galera vende vários subprodutos, entendeu? A galera vende leite em pó fracionado, faz delicinha, faz cachorro quente, faz geladinho, enfim faz um monte de subprodutos. E é uma empresa.”

O caminhão da SOE

Segundo Luan, de toda a experiência no sistema penitenciário fluminense, nenhuma foi mais desumana que o transporte entre unidades e o Fórum realizado dentro do caminhão do Serviço de Operações Externas do Grupamento de Serviço de Escolta. O famoso “caminhão da SOE”.

“Pra começar, os caras são gigantes, vestidos todos de preto, e não têm paciência nenhuma contigo. Imagino que é porque tem muito bandido folgado, então entendo que eles têm que ter uma postura, mas eles são demais. Eles dão choque, dão cassetada, eles impõem uma situação sinistra, e o caminhão lá tem três compartimentos. É um caminhão que normalmente era pra levar umas 20 pessoas, de seis a sete sentadas em cada compartimento.”

“Mas na realidade, ao invés de ir 20 pessoas, vão 70, né, irmão? Ao invés de seis por setor tem 15, 20… Dez sentados e dez em pé, e a galera passa mal, vomita lá dentro, todo mundo algemado. Aí geralmente eles colocam o seguro no meio e as facções de cada lado. Fica separado só por umas gradezinhas lá no alto. Você não vê os outros lados, mas dá pra falar, e a galera vai se estranhando o trajeto todo. E aí, quando o caminhão passa por comunidade, a galera taca coisa, pedra, paralelepípedo, dá tiro. Eu passei por isso na Linha Vermelha, a galera jogando um monte de coisa.”

“É uma parada desumana, total desumana mesmo, você reza pra você ir pro Fórum, mas reza também pra voltar vivo, às vezes o cara sai pra almoçar e te deixa dentro do negócio lá no sol, sem ventilação, sem porra nenhuma, uma, duas horas esperando ele comer. Às vezes tá chovendo e entra água. Enfim, é um sistema fudido, em todos os aspectos, todos. O cara foi em cana tá fudido aqui no Brasil.”

Enquanto o tratamento dado pelos agentes responsáveis pelo transporte era sempre truculento, o dos agentes do presídio em si variava, explica Luan.

“Cara, é como em todo lugar, tem gente ruim e tem gente boa, tem plantão que é uma merda, tem plantão que o cara deixa você sem água, joga gás de pimenta. Tem plantão que, se tem gente doente, o cara não vem dar socorro, e a galera quase bota a cadeia abaixo, pega as garrafas d’agua e bate nas grades pra fazer barulho e a galera acudir. Tem plantão que pode pegar fogo que os caras tão pouco se fudendo. Às vezes te deixa dois dias sem água, sem banho, tu fica revoltado. Eles desligam a luz.”

Quando finalmente chegou o julgamento de Luan, o caminhão da SOE chegou muito atrasado e a audiência foi remarcada. Da segunda vez, o caminhão chegou a tempo, mas a Polícia Civil estava em greve e os responsáveis pela prisão Luan não compareceram para depor. A audiência foi remarcada novamente, dessa vez para dali a seis meses.

Quando a juíza estava prestes a encerrar a sessão, o experiente advogado de Luan conseguiu sensibilizá-la de que seu cliente, réu primário e de bons antecedentes, não merecia esperar mais seis meses por uma falha da polícia. A juíza resolveu lhe conceder a liberdade provisória.

Hoje Luan aguarda ansioso seu veredito. Reconhece a sorte e o privilégio que teve em sair rápido, mas não esquece os horrores que viu e os perrengues que passou.

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“Sim senhor! Não senhor!” – Na Papuda, toda a grana escoa para a cantina

Henrique tinha 21 anos quando foi preso plantando maconha dentro de casa num bairro humilde numa cidade-satélite de Brasília. O delegado teria cobrado propina para não levar sua mãe, uma idosa, como cúmplice. Após ter deixado a carceragem da Polícia Civil, o jovem foi levado ao Complexo da Papuda, onde passou por várias unidades e celas durante dois anos. Quando chegou, recebeu o apelido de “Agricultor”: “Tu não é bandido, não, tu é agricultor. Tu é bandido da onde? Que nunca deu tiro em ninguém, nunca matou ninguém? Não é bandido, não”, disseram os presos da primeira cela de Henrique, todos eles reincidentes.

À diferença das outras histórias, na Papuda não há o controle de facções, os guardas são linha-dura, e durante sua estada, Henrique não viu nem ficou sabendo da existência de nenhum celular. Nas visitas não era permitido levar praticamente nada além de R$ 120 para os presos, e a única alternativa das quentinhas cedidas pelo Estado, apelidadas de “xepa” pelos detentos, era a cantina do presídio, administrada pelo Sesipe, a subsecretaria do sistema penitenciário do Distrito Federal.

“O leite com café que eles servem, nego chama de ‘Chernobil’. Às vezes vem com Toddy e a gente chama de ‘Todão’.”

“A visita não pode levar porra nenhuma, só fruta e três pacotes de biscoito. Pra quê? Pra tu gastar todo teu dinheiro na cantina. E tipo não importa a marca, se é Pomarola ou se é o pior molho do mundo, o preço é o mesmo. Direto começava a vir umas marcas de alimentos desconhecidas… ‘Olha só, os caras já fizeram a própria fábrica, agora eles vendem a comida pra eles mesmos’. É o que eu faria, e os caras são espertos.”

“Todas as cantinas do presídio eram deles, então todo dinheiro que entrava na cadeia de um jeito ou de outro acabava indo pros bichos, né? O cara que vendia droga, o cara que apostava, todo mundo ia gastar esse dinheiro na cantina no final das contas. E é muita gente, e muita cantina.”

Às vezes Henrique trocava sua xepa por dois pães. Quando vinha frango, Henrique separava o frango e jogava o resto fora, para de noite preparar com creme de leite na “paçoqueira”, um pote de paçoca usado como panela que é aquecido no “pato”, que é como os prisioneiros candangos apelidam a gambiarra envolvendo um balde com água com sal e uma fiação feita a partir da quentinha ligado na corrente elétrica.

“Já quase vi um bicho morrer, pisou no molhado, encostou no terra e grudou. Nem fez barulho, sorte que nego viu e empurrou com um pedaço de pau. Mais um pouco ia morrer.”

Antes de chegar na Papuda, Henrique passou por três celas numa carceragem da Polícia Civil, em condições insalubres e vexatórias, segundo ele.

“O banheiro era no meio da cela e não tinha cortina, tinha de cagar com a toalha no joelho.”

Nos dois anos na Papuda, Henrique peregrinou por vários blocos e unidades; quando menos se esperava e sem explicação, levava um “bonde”, que é quando os guardas transferem os presos de cela.

“Aí eu fui pro CDP, bloco 2 e bloco 3, tirei numas oito celas lá, toda hora eles dão bonde pra nego não criar relação, não se organizar. Depois eu fui pro presídio mesmo, PDF-1, bloco E, lá tirei só em três celas, tomei um bonde errado, mas voltei no outro dia. O tráfico fica no mesmo prédio do homicídio, o B. O F é dos caras brabos demais, que já fez merda na cadeia, tá em guerra, ou cometeu um crime escroto demais. Sabem que o cara é brabo.”

Não existiam facções, mas havia alguns desentendimentos entre membros de gangues de cidades ou bairros diferentes. Numa confusão que Henrique testemunhou, os guardas separaram uma briga disparando com munição letal na direção dos presos.

A maioria dos presos é reincidente, é muito raro chegar um “corró”, nome dado aos prisioneiros de primeira viagem, então eles meio que acabam virando atração.

“Quando eu cheguei, os caras ficaram querendo me pegar na pegadinha, tem um milhão de pegadinhas, os caras tem tempo pra pensar nisso. Então um cara foi e disse: ‘Tem uma carta pra tu’. E eu: ‘Que porra é essa? Cabei de chegar ninguém sabe que eu tou aqui’. ‘Ah não sei não, tá ligado? Na cadeia tudo corre rápido.’ Aí eu vou ler e tem lá: ‘Lembra daquela vez que tu me vendeu aquela semente? Tá fudido, mermão! Vou te pegar no pátio amanhã! Já desentoquei a função, vai ser daquele jeito, tava achando que ia me dar um banho?’. E eu: ‘Ih rapaz! que porra é essa? Nunca vendi semente pra ninguém’. Era uma carta que veio de outra cela assinada por um tal de ‘Chibata Preta’. ‘Vixe, do Chibata?’, me falaram. ‘Eita porra, tu tá fudido! Se eu fosse tu, já ia logo ali no ralo desenrolar essa, tentar resolver na ideia!’”

“Eles queriam que eu fosse até uma grade entre as celas, que parece um ralo, e chamasse o cara pra conversar. Na verdade eles queriam que eu fosse lá e gritasse, ‘e aí Chibata Preta?’. Quando a galera ouvisse esse nome, já ia começar a sacanagem geral. Por sorte, um bicho viu que eu tava desconfiado, que eu era mais esperto e disse: ‘Senta aqui, essa porra é brincadeira, não cai na pilha desse moleque, ele tá te sacaneando’. Esse cara que me ensinou como convivia lá dentro.”

O cara que apadrinhou o Agricultor era um “barão” do tráfico, com grana na pista e respeito no pátio.

“Ele virou meu amigo cabuloso, porque eu não era um cara que tava na rua pitando droga, minha vida era outra, eu plantava meu bagulho e conhecia a vida de rave, de sair, de festa, ia pra boates em Goiânia. E o cara conhecia os mesmos bagulhos que eu, tá ligado? Então a gente tinha o que conversar. Ele tinha muito dinheiro, eu não tinha, mas andava nesses lugares aonde o resto dos caras não andavam, o cara que tava ali picando crack de madrugada não conhecia o mesmo lugar que eu. É difícil, vai conversar o que com esse cara? De fatiar, de droga, de matar, ‘quando a gente sair vamo assaltar quem e o quê?’ Tem pouca gente pra levar ideia, aí geralmente são esses caras. Ele me contou a vida inteira dele, como começou no crime, como ele se levantou, ele fez eu parar de fumar maconha um tempo, porque eu ficava na lombra. ‘Quem usa droga é otário, só otário usa droga, esperto é quem vende, quem usa é otário, o cara tá se drogando gastando dinheiro enquanto eu fico rico, mano’. Aí eu falava: ‘Eu planto lá em casa, eu não compro não’. ‘Um dia tu vai comprar, um dia tu já comprou, um dia o teu acaba!’ E eu respondia: ‘Eu planto pra não ficar sem, não ficava sem nunca, nunca fiquei’.”

E aí a discussão entrava em loop. Uma boa conversa é apreciada na cadeia, faz passar o tempo.

Segundo Henrique, os caras mais perigosos da cadeia eram os que pagam penas muito altas, alguns acumulam centenas de anos entre crimes cometidos dentro e fora das grades. Segundo o Código Penal, o cumprimento máximo de uma pena nunca deve ultrapassar 30 anos.

“Eles não tão nem aí, eles sabem que não vão sair vivos. Aí não dá pra viver no convívio com um cara desses, ele quer que se foda, dar facada, sabe que não vai mudar nada na vida dele. Quando chega os 30 anos, tem que fazer um exame psiquiátrico pra sair. E como que um cara psicopata que ficou preso 30 anos vai passar numa porra dessas? Não passa.”

“A gente preso por uma planta e vários aí na rua que roubaram bilhões. Quando eu tava lá no semiaberto, no CPP, eu via o Zé Dirceu direto, todo dia, ele falava comigo. De boa, falava com todo mundo, mas acho que dos policiais ele não gostava, não, porque os policiais queriam revistar ele numa sala separado e ele não: ‘Quero ser revistado que nem os outros’. Ele ficava na fila e mesmo assim revistavam ele separado…”

A hora da novela é sagrada

A rotina durante os banhos de sol se resumia a correr, malhar, fumar maconha, jogar dados e cartas ou apostar. Dentro da cela a rotina girava em torno da televisão, e as apostas continuavam. Tudo é motivo para apostas, desde a corrida de porquinhos-da-índia do Bom dia e companhia até o que vai acontecer na novela, que inclusive é o grande momento da cadeia.

“Ninguém tem nada pra fazer, só dormir e ver televisão. Chegou a hora do JN [Jornal Nacional] é silêncio, a cadeia quebra, conversou nego já xaropa, ninguém ‘passa teresa’, ninguém faz nada. Tá todo mundo fumando seu baseado e assistindo o jornal e a novela. Isso daí ninguém consegue interferir no bagulho. É lei, sempre foi, sempre vai ser. Às vezes, a novela é palha, aí nego chega a um consenso. Mas é tudo no consenso, normalmente novela das nove e JN já quebra.”

“Quando acontece um bagulho emocionante na novela, a galera começa a bater na parede e parece que a cadeia vai desmoronar, todo mundo batendo o pé na parede, imagina, quatro blocos, batendo. Parece que vai cair. Uma das novelas que vi lá era a da Carminha [Avenida Brasil]. Pô, sucesso. Bagulho louco, tio, neguinho ficava doido. Tinha a Malhação também, galera dando pala pra Fatinha. Malhação, Bom dia e companhia, a única parada que tem pra ver é a tela. Esse é um dos únicos presídios do Brasil que é assim, os caras tudo tem DVD, net, celular, a puta que o pariu, lá não tem nada, nem antena tem. Tem que pegar o alumínio da marmita e fazer uma antena.”

“Se alguém achasse um celular lá dentro, nego tava fudido. Não tem, não tem onde esconder, impossível. Tem como tu esconder um espeto, drogas, mas celular não tem não, moleque. Ainda mais os caras faz todo dia revista com pica-pau [ferramenta] procurando os espetos na parede, todo dia. Na hora do banho de sol eles tão procurando nossas coisas entocadas, se eles não tão no pátio tão lá dentro procurando. Mas os caras são artistas, é difícil achar. Já vi faca ali pior do que na rua. Os caras cortam porta de aço com gilete, jacaré que os caras chamam, altas giletes juntas, quebram os dentes delas com outras e vão cortando, demora anos, mas um dia corta. Eles tem que cortar e esconder todo dia. No início eu não entendia porque algumas portas eram altas, tinha um buraco embaixo, normalmente dava rato nessas celas, até que eu me liguei que era porque neguinho já tinha arrancado…”

Por questão de vagas, Henrique, teve a sorte de parar no bloco dos estudantes, bem diferente de outros onde costumava haver brigas. Lá a maioria dos detentos tinha a cabeça virada em ir embora de lá sem se atrasar. A cada três dias trabalhando ou frequentando a escola da cadeia, um era descontado da pena, como a escola nem sempre funcionava, Henrique foi atrás de um trabalho, não remunerado, como faxineiro. Todo dia ele fazia parte de uma equipe que tinha como missão limpar o pátio, munidos apenas de um rodo cada um. Trabalhando um pouco mais de um ano o “Agricultor” conseguiu reduzir 160 dias da pena.

Se virando com pouca grana

Familiares em visita à Papuda tem de se vestir todos de branco, assim como os presos, os poucos produtos que podem entrar (papel higiênico, creme dental, sabonete e desodorante em bastão) também devem ser da cor branca. Eles também podem levar 500 gramas de sabão em pó, até seis frutas e 500 gramas de biscoito, além dos R$ 120.

“Aí ou tu come ou tu fuma, tu escolhe. Ou tu compra 100 de fumo e 20 de comida ou o contrário, os dois não dá. Quando eu entrei, até que tinha maconha boa, mas foi piorando, aí eu nem fumava mais, fumava um, dois becks por semana, só no dia de visita.”

“Quando eu saí dali, tinha estreitado com bagulho de raio-X e ficou triste. Os caras querendo R$ 5 mil em 50 gramas, como que tu vai fumar? Quem não tivesse muita grana moscando não ia fumar.”

Quem conseguia drogas nas visitas traficava para outras celas através da teresa, uma corda feita de plástico trançado usado para levar recados e contrabando entre as celas. Quando é droga, os presos vão gritando “ó a responsa descendo aê!”.

Para burlar as revistas, depois da visita os detentos engolem o contrabando previamente embalado. Dependendo da unidade, dá para vomitar logo depois, em outras o processo de volta à cela demora mais e os detentos precisam defecar a droga.

“Isqueiro é proibido lá, nego engole, cigarro é proibido lá, nego engole. Um isqueiro Bic grande é vendido a R$ 30. Eu mesmo já vi gente entrar com 50 gramas de hash embrulhados em dedos de luva. Aí é só tu beber água igual um animal e vomitar. Na volta da visita o galpão fede a vômito, mais de 30 boi com nego vomitando. O cheiro ia até os canas. Até dinheiro eu já vi a galera engolir, eles fazem uma balinha de dinheiro.”

A relação com os guardas era de “Sim senhor! Não senhor”, sempre de cabeça baixa, mas o respeito também era uma máxima entre os presos. Não se pode pegar nada emprestado sem pedir por favor ou falar obrigado ao devolver.

“Parada simples que na sociedade tu não vê, nego não olha na tua, cara não te dá bom-dia, não tá nem ai pra tu, vê um cara morrendo de fome no chão e não faz nada. Lá o cara que não tem visita come o mesmo que o outro, porque a galera fortalece. O cara lava uma roupa, faz uma faxina, um corre pra todo mundo lá, aí na hora de comer vai deixar ele comendo xepa, fudido? Não, então fortalece e o cara lava os pratos depois, lava a paçoqueira, ou então faz o rango.”

O respeito também se estende à família

“Se tu xingar a mãe de alguém, é morte, é a mesma coisa que te chamar pra uma guerra, xingou a mãe, ‘cê é loco?!’ Se tu levantar uma camisa ou olhar pra mulher do outro em dia de visita, o pátio todo te pega. Os caras levam a sério o bagulho de uma forma que é inacreditável. Aí na sociedade tu vê gente dando golpe em irmão, sendo pilantra, sendo safado.”

Em sua passagem, Henrique nunca chegou a ter sua própria “jega”, que é como eles chamam as camas. Sempre que mudava de cela, tinha que colocar seu nome na fila, quem costumava ter as “jegas” eram os presos mais antigos, que não tinham interesse em vendê-las de jeito nenhum.

“A maioria dorme no chão mesmo, já vi dormirem até no banheiro. Tem nego que dorme nuns pedaços de pano pendurados no teto, fazem umas redes. Ai os canas passam de madrugada e cortam a porra toda, os caras caem e se fodem todos, tá ligado? É triste mano, superlotação é escroto.”

“Se você não tiver uma ideia na cabeça, um objetivo, tu vai desandar e cair de novo. A maioria sai e morre, ou sai e volta de novo. Tinha seis meses que um moleque tinha saído, e rodou, por quê? Porque no mesmo dia em que ele voltou ele já tá fazendo as mesmas coisas. Ou, pior ainda, já conheceu altos caras piores na cadeia, arruma canal, conhece gente. Saí dali querendo pegar logo 2 quilos de crack pra vender.”

Henrique não voltou a plantar depois que saiu, abandonou a maconha e passou a usar cocaína. Um desentendimento com um vizinho o deixou paranoico, e por algumas semanas ele adquiriu uma arma. As balas ficavam com a mãe, para evitar que a usasse contra ele mesmo.

“Ai tu pensa, essa porra não recupera ninguém, só deixa pior, entrei lá eu nunca tinha chegado perto de uma arma, sai de lá sabendo o nome de todas, como monta e desmonta. Eu aprendi a fazer pó, virar crack, a assaltar… Os caras te jogam num lugar aonde os caras falam disso o dia inteiro, os caras não tem o que falar, né? Não conhecem outra coisa.”

A lentidão do processo de progressão de pena torna-se uma tortura extra para os presos. Henrique conta que os detentos aprenderam a adicionar três meses à sua pena, pois é o tempo mínimo que leva para chegar o alvará de soltura.

“Um papel pra sair de uma pilha de uma mesa pra outra pilha na mesa do lado demora meses, tá ligado? Minha cadeia acabou em abril, demorou três meses pra eu sair do galpão. Cara, quando você tá cumprindo, você sabe que não vai embora, que amanhã tu vai acordar e vai estar preso. Mas agora, quando você não sabe o dia que você vai sair, você fica na expectativa todos os dias. Bagulho difícil, é paia.”

O “Agricultor” pagou dois anos em reclusão e o restante no semiaberto. Hoje, três anos depois de ter cumprido a pena toda, seu processo ainda não teve baixa e a cada dois meses ele precisa ir à vara de execuções penais para “assinar”. Essa situação complica sua vida e fecha portas. Hoje Henrique assiste a novela com a mãe, trabalha de forma autônoma prestando serviços como técnico de informática e confessa que, às vezes, sente-se tentado a pôr em prática o que aprendeu na Papuda.

Esta reportagem foi financiada e escolhida pelos 1.134 apoiadores do projeto Reportagem Pública 2017.

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