Nas instalações superlotadas das penitenciárias cearenses, presos com mãos e dedos quebrados e lesões na cabeça denunciam terem sido atingidos por chutes ou golpes de cassetetes. O cenário se divide entre celas alagadas, tomadas por mofo, e as insuportavelmente abafadas, sem ventilação sob o calor de 30º C do nordeste brasileiro. Faltam medicamentos para detentos com tuberculose e hepatite — e para conter um surto de sarna que se espalhou ao menos por dois presídios. Há soropositivos que, além de não terem acesso ao atendimento médico, estão impedidos de receber visita de familiares que poderiam trazer os coquetéis contra o HIV. As fezes de um preso com bolsa de colostomia rompida se espalharam pela cela, bem como as de paraplégicos sem fraldas para higiene. E em uma das alas, a fonte de água para beber e se limpar é um buraco na parede.
Obtido pela Pública, as informações acima são parte do relatório elaborado pela equipe do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) a ser encaminhado aos órgãos responsáveis a nível estadual e federal.
[pdf-embedder url=”https://apublica.org/wp-content/uploads/2019/04/relatario-missa-o-ceara-protegido-sem-isbn-1.pdf” title=”Relatório do MNPCT”]
O mecanismo de combate à tortura é formado por peritos que investigam violações de direitos humanos em situações de privação de liberdade, como penitenciárias, centros de detenção, hospitais psiquiátricos, abrigos de idosos, dentre outros. O órgão faz parte do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (SNPCT), no Ministério dos Direitos Humanos, que havia se desentendido com o grupo em fevereiro, como revelou a Pública.
Luis Gustavo Silva, um dos membros do Mecanismo que participou da fiscalização a três penitenciárias no Ceará entre 25 de fevereiro e 1º de março deste ano afirma que “o governo fechou cerca de noventa cadeias e os presos foram transferidos para a região metropolitana de Fortaleza, criando uma superlotação para além do que já existia”. Segundo o perito, presos com doenças graves ficaram no meio dos outros e com tratamento interrompido. “Imagine você estar com princípio de tuberculose em uma cela com 26 pessoas, dormindo no chão, sem acesso a medicamentos e água”.
O relatório registra que em 2019 o governo estadual fechou 92 cadeias públicas no interior do estado e transferiu 3.866 detentos para presídios já superlotados na região metropolitana de Fortaleza. A fiscalização denuncia que parte das transferências foram irregulares, sem acompanhamento das Varas de Execuções Penais. Além disso, houve suspensão total de visitas — incluindo de advogados — em diversas das prisões fiscalizadas.
“Há presos que ficaram mais de dois meses sem qualquer comunicação, incluindo acesso aos advogados. É muito grave porque, após dois meses, a possibilidade de verificar os fatos e identificar os autores vai ficando menor. Não pode haver um local de privação de liberdade com incomunicabilidade absoluta, isso traz uma suspeita inclusive para os bons funcionários porque não será possível coibir alguma prática irregular feita dentro dele”, explica Silva.
O relatório ainda constata que a superlotação levou à divisão indiscriminada de detentos, com presos provisórios encarcerados junto a sentenciados, o que, na avaliação dos peritos, amplia o poder de atuação e recrutação das facções criminosas. Na maior instalação fiscalizada, a Casa de Privação Provisória de Liberdade Professor José Jucá Neto, há 1.785 detentos para apenas 945 vagas.
Apesar das péssimas condições de salubridade em praticamente todas as celas visitadas, os peritos encontraram uma ala chamada Centro de Triagem e Observação Criminológica (CETOC) na qual os presos estavam em celas com colchões, livros, rádios, ventiladores e mosquiteiros. Segundo o relatório, o perfil dos presos no local é de ex-policiais e filhos de policiais. De acordo com os peritos, esses detentos não tiveram privação de visitas e foi aplicada a redução de pena por trabalho.
O relatório ainda traz relatos de que a nova coordenação da Secretaria de Administração Penitenciária teria endurecido a disciplina nas penitenciárias cearenses neste ano. Segundo o depoimento de diversos detentos, o “novo procedimento” envolve, além das agressões, ficar de pé ou sentado por horas durante o dia e a madrugada, além do uso indiscriminado de spray de pimenta para manutenção da ordem e do silêncio.
A Pública questionou a Secretaria de Administração Penitenciária que respondeu após a publicação da reportagem (leia resposta ao final do texto).
“É importante que esse órgão funcione de forma autônoma e regular”, diz perito
A fiscalização do MNPCT no Ceará foi conturbada desde o início. Em fevereiro, membros do Mecanismo denunciaram que o ministério dos Direitos Humanos havia impedido a viagem dos peritos. O grupo havia recebido denúncias de torturas e prisões arbitrárias pelo Disque Denúncia, no contexto dos ataques de facções criminosas no Ceará no início deste ano, quando ocorreram incêndios, tiros contra prédios públicos e a tentativa de explosão de uma ponte.
Inicialmente, a proposta do Mecanismo era que a viagem fosse realizada entre 17 e 23 de fevereiro, mas, segundo o Comitê, o Ministério afirmou que a pasta “não autorizaria nenhum custeio de visita ao Estado do Ceará se não fosse interesse do Governo Federal”.
À época, o Ministério dos Direitos Humanos respondeu à Pública que “não houve negativa desta Pasta quanto a viagem a ser realizada pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, mas um pedido de readequação de datas”. A pasta acrescentou que os membros do mecanismo “não demonstraram, por meio de documentos, que haveria urgência no atendimento ou mesmo apresentaram as supostas ‘denúncias’ que alegam terem recebido e que demonstrariam risco iminente caso os prazos não fossem respeitados”. O Ministério ainda acrescentou que a viagem custaria R$ 10,5 mil.
Segundo o perito Luis Gustavo Silva, após a denúncia, que foi levada ao Ministério Público Federal (MPF), à Organização das Nações Unidas (ONU) e à Corte Interamericana, foi retomado o diálogo com o Ministério, que garantiu a verba para a ida ao Ceará sem mais dificuldades. Contudo, segundo Silva, o Ministério ainda não recompôs o quadro de peritos já que vários estão com mandato vencido — dos 11 peritos previstos em Lei, o Mecanismo conta apenas com sete.
Por fim, Silva também cobra que o Ministério nomeie os representantes do Comitê eleitos ano passado. O Comitê é formado por 23 membros, que foram eleitos em 2018: são 11 representantes de órgãos do Poder Executivo Federal e 12 de conselhos de classes profissionais e de organizações da sociedade civil.
“É importante para o Estado brasileiro que esse órgão funcione de forma autônoma e regular. As instituições precisam compreender o relatório não como caça às bruxas ou apenas apontar dedos, mas de responsabilização. A gente busca a responsabilização do sistema como um todo e esperamos que o estado do Ceará continue dialogando com a gente para impedir situações de violação aos direitos humanos e tortura”, defende.