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A história do rapaz de 22 anos que, sob custódia do estado de Mato Grosso, implorou por socorro por dias a fio e só foi levado para a UPA quando já estava morto

Reportagem
28 de janeiro de 2020
12:00
Este artigo tem mais de 4 ano

“Nós ficamos quatro dias trancados. Os quatro dias ele pedia socorro para a polícia levar ele no hospital porque ele estava vomitando sangue, mas ninguém deu assistência para ele, nenhum dos policiais. Inclusive, o polícia foi lá dentro, abriu o latão [a cela] e falou que, se ele continuasse gritando para levar ele no hospital, ia entrar lá e ia quebrar a outra costela dele”, contou Paulo Gomes de Lima, testemunha da violência policial que teria sofrido o jovem Marlon Fernando Pereira Campos, de 22 anos, que morreu no dia 19 de dezembro, sob a custódia do estado do Mato Grosso.

Paulo afirmou que já estava preso quando Marlon chegou machucado à delegacia municipal de Poxoréu. Os dois foram detidos no dia 15 de dezembro. Eles se conheciam, mas nesse dia, segundo Paulo, eles não estavam juntos e nem mesmo estavam em contato ou sabiam um do outro, ao contrário da versão dada pela polícia. “Na hora que a gente chegou na delegacia que eles [policiais] me levaram, o outro policial falou para o PM: ‘Pode colocar qualquer coisa aí. É nosso álibi, a nossa palavra vale’”, contou o preso em depoimento gravado pelo advogado da família de Marlon, Carlos Naves, a que a Agência Pública teve acesso.

De acordo com o boletim de ocorrência registrado pela Polícia Militar nesse dia, Paulo Gomes de Lima, flagrado com uma arma de fogo e uma moto roubada, disse que o veículo encontrado com ele era de um amigo de nome Nairton, que estava internado no Hospital e Maternidade São João Batista, em Poxoréu, porque teria sofrido um acidente de moto. Os policiais informaram que encontraram o rapaz [Nairton] na emergência do hospital e que ele foi preso – por porte de arma de fogo e veículo furtado – “após o atendimento, avaliação e alta médica, inclusive após realizar exames de raio-X, em decorrência do acidente de trânsito”.

No dia 17, dois dias depois da prisão, investigadores da Polícia Civil de Poxoréu registraram um novo boletim de ocorrência alegando que Nairton tinha mentido sobre sua identidade e que seu nome verdadeiro era Marlon Fernando Pereira Campos. Em sua ficha criminal tinha um mandado de prisão em aberto por roubo em outra cidade. Por causa desse crime, o juiz determinou a prisão de Marlon.

Ele e Paulo foram transferidos para a penitenciária de Rondonópolis, no dia 19 de dezembro, por volta das 20 horas. Durante o trajeto, Marlon continuou reclamando de dor. “Toda hora ele [Marlon] pedia para ir devagar, mas não foi devagar. A todo momento os caras [policiais] falavam que ele ia morrer, que ele era matador de polícia”, contou Paulo. Não há nenhuma denúncia contra Marlon envolvendo assassinato de policial. Os processos contra ele são de furto, roubo e uso de drogas ilícitas.

Da penitenciária à morte

O preso Manuel Augusto Cardoso dos Santos estava no corredor da penitenciária de Rondonópolis quando os dois chegaram. Ele lembra que Marlon estava passando muito mal. “Ele já chegou, caiu ali no chão e começou a gritar pedindo socorro, que ele não estava aguentando de dor”, disse. Segundo Manuel, os policiais tiraram as algemas de Marlon só depois que ele caiu no chão. “Ele dobrava tudo e gritava, gritava que não aguentava de dor nas costas. Daí, depois ele pediu para sair para fora para vomitar, daí veio e vomitou na grama. Ele só espirrava sangue”, descreveu.

Manuel, que também teve o depoimento gravado pelo advogado Carlos Naves, contou ainda que perguntou para Marlon o que havia acontecido e a resposta foi “que já fazia sete dias que estavam batendo nele, que era para falar que ele tinha caído de moto, mas ele não caiu de moto, não, que era de tanto bater nele”. Segundo Manuel, um dos policiais que chegaram com Marlon gritou: “Morra, desgraça. Isso aí tem que morrer”.

O agente penitenciário Gerson Delmiro Nunes narrou, de acordo com boletim de ocorrência registrado no dia 20 de dezembro, que Marlon chegou ao presídio reclamando de dores na costela e que, depois de ter passado pelos procedimentos burocráticos, foi encaminhado para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Rondonópolis, onde faleceu às 22h17 do dia 19. “A vítima veio transferido de Poxoréu-MT, assim o comunicante não sabe dizer se as dores na costela seriam proveniente de alguma agressão. Diante do fato, o comunicante, servidor do sistema prisional veio comunicar o fato”, diz o documento.

Ao contrário do que afirmou o agente penitenciário, Marlon já chegou à Upa, às 23 horas, morto, conforme o prontuário médico: “Paciente trazido por agentes penitenciários, em viatura, sem profissional de saúde, chega em óbito, pupilas midriáticas fixas, ausência de sinais vitais, sem sinais respiratórios ou de gasping, apresentando escoriações”, descreve o documento. No atestado de óbito foram indicadas como causa da morte “septicemia, peritonite fecal, perfuração intestinal”.

Morte de Marlon e conduta de policiais estão sendo investigadas

A Secretaria de Estado de Segurança Pública do Mato Grosso informou, por meio de nota, que todos os procedimentos para apurar as circunstâncias da morte de Marlon estão sendo tomados. “A Sesp-MT não compactua com atitudes que configuram violência por parte de agentes públicos e irá aplicar as devidas sanções, caso haja comprovação neste e qualquer outro caso. A Secretaria frisa, porém, que é preciso aguardar a conclusão dos procedimentos em curso”, acrescentou.

A Polícia Judiciária Civil comunicou que foi instaurado um auto de investigação preliminar para apurar as condições da morte do preso, assim como a conduta dos policiais civis que tiveram contato com ele. A Polícia Civil declarou também que Marlon foi levado ao hospital depois de preso: “Ao retornar da audiência de custódia, em que foi mantida a prisão, o preso ficou detido na Delegacia de Poxoréu aguardando transferência para o Sistema Penitenciário. Nesse tempo reclamou de dor e foi levado para a Unidade de Saúde da cidade, onde foi atendido, medicado e posteriormente liberado pela equipe de saúde”.

A Polícia Militar informou que a corregedoria “vai instaurar procedimento administrativo investigatório para analisar a conduta dos policiais militares”. De acordo com o Ministério Público do estado, o promotor pediu a abertura de inquérito policial e está aguardando o resultado das investigações para analisar se há elementos suficientes para oferecimento da denúncia.

Na avaliação do advogado Carlos Naves, que representa a família, Marlon sofreu “constrangimento ilegal, tortura e maus-tratos”. Ele pediu à Justiça a prisão preventiva para dois delegados e demais investigadores que mantiveram contato com Marlon do dia 15 ao 19, um escrivão e para quatro policiais militares. Ele solicitou que as testemunhas, advogados e os familiares de Marlon sejam incluídos no Programa de Proteção a Testemunhas e Medidas Protetivas.

Mãe foi impedida de ver o corpo do filho

Marlon Fernando Pereira Campos, de 22 anos, morreu sob a custódia do estado do Mato Grosso

A cozinheira Marciane Pereira Campos estava trabalhando quando recebeu o telefonema de uma pessoa que se identificou como assistente social da cidade de Poxoréu, por volta das 23 horas, comunicando que seu filho estava na UPA, morto. Fazia 30 dias que ela não via Marlon. Ela não ficou sabendo da sua prisão ou que tinha caído de moto. A única notícia que recebeu desde o último encontro foi da sua morte.

“Toda vez que ele ficava preso, ele fazia uma ligação pra gente, ele sabia meu número de cor. Toda vez que ele ficava preso, ele me ligava pedindo comida. Desse dia que ele foi preso a gente não ficou sabendo. E a gente nem ficou sabendo que ele tinha caído de moto nem nada, que ninguém deixou ele ligar. Por isso que a gente estranhou, a gente começou estranhando por aí”, contou em entrevista à Pública, por telefone. Segundo ela, aquela foi a terceira prisão de Marlon.

Naquela noite Marciane deixou tudo para trás, foi correndo ver o filho. Chegando lá, lembra, se surpreendeu com a situação. O corpo do Marlon não estava mais na UPA, já o tinham colocado no carro da funerária, ao lado. “Aí eu perguntei para a assistente social: ‘Por que ele estava lá fora? Ela falou que era porque ele veio a óbito e eles [da UPA] pediram pra tirar”. Ela conseguiu ver apenas o rosto do jovem. Estava escuro, a assistente social e os policiais que a acompanhavam disseram que Marciane não poderia mexer no corpo porque ele seria encaminhado para o Instituto Médico Legal (IML).

Depois de fazer o boletim de ocorrência do falecimento do filho, Marciane foi para casa aguardar o retorno do IML. Às sete horas da manhã do dia seguinte, ela foi novamente correndo para ver o filho, mas, mais uma vez, foi impedida. Disseram para ela que o local estava sem água e que, por isso, estava tudo sujo de sangue e fedorento. “Não nos deixaram ver ele novamente”, lamentou Marciane.

Ainda no IML informaram que ela não poderia velar o corpo de Marlon. “A médica do IML falou assim pra mim: “Olha, mãe, ele não pode velar porque ele não faleceu ontem, não pode velar o corpo, e a senhora tem um horário x para velar. No caso, a senhora vai ter que ir na funerária para poder fazer os procedimentos lá que eles vão falar para a senhora. Ele não pode ficar muito tempo porque ele já está em estado avançado de decomposição”, contou Marciane.

Na funerária repetiram a história contada no IML: não haveria tempo para o velório. E disseram ainda que, se ela chegasse atrasada para o enterro, perderia o sepultamento do filho. Marciane teve 20 minutos para velar Marlon. Segundo a cozinheira, o corpo dele estava todo enrolado em um plástico. “A gente chegou e ele todo plastificado, passaram plástico nele todo, bem grosso.”

A luta de uma mãe contra a impunidade

Marlon era negro, morador da periferia de Rondonópolis, localizado a 219 quilômetros da capital. Foi criado pela mãe, que aos trancos e barrancos cuidou dos quatro filhos. “Na realidade, eu criei o Marlon sem pai, mas eu criei ele muito bem criado. Assim como eu criei os outros, eu criei ele. Até os 18 anos o Marlon não me dava trabalho. O Marlon trabalhava, o Marlon estudava. Ele era um menino que, você pode andar na vila, ninguém acredita que o Marlon entrou nessa vida”, lamenta.

Apesar das dificuldades financeiras, Marciane garante que nunca deixou faltar comida em casa. “Mesmo pouca, sempre teve comida.” Ela sente culpa por não ter conseguido tirar o filho do crime, por ele ter morrido de forma tão cruel. “A gente fica chocada porque nada que fizermos hoje vai trazer meu filho de volta. Na realidade, o que eu queria mesmo é que ele tivesse mudado, para eu não estar passando por isso, mas, como eu não consegui, eu quero que outra mãe não passe por isso, né? Porque é doído você saber que seu filho morreu assim, todo machucado, sofrendo, à míngua, sem socorro, sem comida, sem nada.”

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