A campanha pela descriminalização do aborto na Argentina tem se fortalecido, e a “onda verde” – que ficou conhecida assim pelo uso do pano verde como símbolo – tem ganhado as ruas do país há mais de dez anos. Fruto de muitos encontros, reuniões e assembleias entre diversas frentes do movimento feminista, o lema é “educação sexual para decidir, contraceptivos para não abortar, aborto legal para não morrer” e se refere principalmente ao alto número de mortes de mulheres em abortos ilegais inseguros.
Em uma votação muito dividida em 2018 – 38 votos contra, 31 a favor e 2 abstenções –, o Senado rejeitou o projeto de lei que legalizaria a interrupção da gestação até 14 semanas em hospitais públicos e de forma gratuita para as mulheres. Mas para María Florencia Alcaraz, 2020 será o ano em que o movimento feminista argentino finalmente conquistará o aborto legal, seguro e gratuito.
A jornalista, que é diretora do veículo feminista latino-americano Latfem e autora do livro ¡Qué sea ley!, falou à Agência Pública das preparações para os atos que ocorrerão no dia 8 de março no país e do compromisso firmado pelo presidente Alberto Fernández em encaminhar um projeto de lei do Executivo sobre o tema e citou exemplos de resistência em outros países da América Latina, especialmente os que vivem sob governos autoritários.
Nós teremos agora os atos de 8 de Março. Como estão os preparativos na Argentina? Quem vai para a rua e quais são as pautas principais?
Na Argentina, foram realizadas assembleias durante todo o mês de fevereiro, como vem ocorrendo ao menos desde 2016. As assembleias são o processo para construir as manifestações da “Ni una a menos”, que se tornaram massivas. Agora participam diferentes organizações da sociedade civil, como grupos feministas, de direitos humanos, políticos, partidos políticos, sindicatos, estudantes secundaristas e universitárias, mulheres lésbicas, travestis, mulheres trans e pessoas não binárias.
Como se decidiram as pautas? Como são as assembleias?
As assembleias são um espaço de discussão para acertamos as reivindicações e demandas e para definir o modo como iremos ocupar as ruas. É um processo para a greve internacional feminista do 8 de Março. Realizaram-se de três a quatro assembleias, aproximadamente. Em 8 de março, haverá algumas atividades no território e, no dia 9, uma mobilização até o Congresso, já que a principal pauta está relacionada ao aborto – o presidente Fernández anunciou que irá enviar ao Congresso um projeto de lei do Executivo em relação a esse tema, que é algo urgente, uma dívida da democracia, um compromisso assumido pelo presidente em campanha. É necessário que o Congresso discuta rapidamente neste ano a interrupção voluntária da gravidez e que isso se transforme em lei na Argentina.
Além disso, iremos discutir a crise econômica que deixou o governo de Mauricio Macri, que deixou endividadas sobretudo as mulheres, as lésbicas, travestis e trans. Sabemos que, quando um país atravessa uma situação de pobreza ou crise, as mais afetadas por isso são as identidades feminizadas.
Como está a luta pela descriminalização do aborto na Argentina neste momento?
2020 será o ano do aborto legal, não temos dúvida quanto a isso, é irreversível que se torne lei. Todas as forças do ativismo feminista fizeram muita pressão para isso. E há respostas da política: o presidente anunciar que irá enviar um projeto de lei é histórico, isso nunca havia ocorrido. Assim, unem-se estas duas forças: o ativismo feminista e a política tradicional. Isso pressiona o Senado a decidir a favor de vidas mais dignas para todas. Temos muita esperança que esse processo vá ter reflexos na América Latina, já que a Argentina será o país mais populoso a ter uma lei de aborto na região.
Você faz parte de várias articulações feministas transnacionais e edita o Latfem, que é um veículo que traz agendas de outros países da América Latina. Como você tem visto a articulação do movimento feminista nesses outros países para este 8 de Março? Quais são as pautas comuns?
Vejo o processo latino-americano com muita admiração. O que está acontecendo no Chile, no México. No México, a cobertura da mídia sobre os feminicídios, que foi sexista, misógina e machista, despertou uma reação muito forte das feministas. A mídia compartilhou imagens de Ingrid Escamilla, que foi esquartejada. Em resposta, as feministas publicaram uma série de imagens de paisagens, fotos bonitas, para encher as redes sociais de imagens belas e tirar o foco das fotos de Escamilla esquartejada. O México vem de um processo de mobilização muito grande das feministas, sobretudo desde o ano passado, pelo descontentamento em relação à falta de respostas do governo em um país onde há, ao menos, sete feminicídios por dia. A situação no México é muito encorajadora.
Na Colômbia também. Há pouco, a Corte Constitucional teve de tomar uma jurisprudência em relação ao aborto, porque havia uma possibilidade de retroceder em direitos que já estavam garantidos desde 2006. A Corte teve uma postura histórica e decidiu não dar lugar para a demanda antidireitos. Não se modificou a legislação vigente, e neste contexto em que vivemos, de muita reação fundamentalista e antidireitos, isso foi uma conquista para as colombianas, que se mobilizaram massivamente à porta da Corte, com música, alegria e reggaeton.
Na Argentina, o feminismo foi a principal oposição aos governos à direita, situação que está acontecendo em todo o continente. Foi assim com Trump, nos EUA: as primeiras a se mobilizarem foram as feministas. No Uruguai, onde a direita acaba de conquistar o governo, as feministas também se destacam como um movimento dinamizador da política e da oposição. No Chile, a performance das Las Tesis e a participação do ativismo feminista foram fundamentais para denunciar os abusos do Estado e inoperância do presidente Piñera ante uma situação de crise. No Brasil também houve grandes mobilizações contra Bolsonaro por grupos feministas.
Creio que os feminismos são a principal oposição aos governos de direita e fundamentalistas que temos na região neste momento. Isso porque estamos em uma situação em que há países que não têm estado de direito, como a Bolívia, e isso nos preocupa muito.