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Paulo Lima, motoboy que viralizou com vídeo em que denuncia aplicativos de entrega, lidera movimento que já conta com 30 entregadores; hoje eles estarão juntos pela primeira vez protestando a favor da democracia

Entrevista
7 de junho de 2020
09:00
Este artigo tem mais de 4 ano

Entregadores de aplicativos devem repetir a presença nas manifestações antifascistas, que acontecem  hoje, 7 de junho,  em pelo menos dez capitais brasileiras. Dessa vez, esses trabalhadores, quase sempre solitários com suas mochilas, se organizaram politicamente em um grupo de ‘entregadores antifascistas’, que promete presença nos protestos da Avenida Paulista e Largo da Batata, em São Paulo.

O movimento de entregadores antifascistas foi criado há uma semana. Surgiu depois das manifestações em São Paulo e no Rio de Janeiro, e já tem 30 integrantes, todos da capital paulista. Aos poucos, o grupo está conseguindo reunir uma categoria precarizada, exposta às ruas em plena pandemia sem garantias trabalhistas, em torno da luta comum: a defesa da democracia.

O líder dos entregadores antifascistas é Paulo Lima, 31 anos, conhecido como Galo, morador na periferia de São Paulo. Sua popularidade cresceu depois que denunciou abusos das empresas de aplicativos, em vídeos que viralizaram na internet. Ele também organizou um abaixo-assinado, com mais de 300 mil assinaturas, pedindo que as empresas forneçam alimentação e álcool em gel para os entregadores. Por causa dos posicionamentos, Galo sofreu bloqueios das plataformas.

Com um discurso inflamado, da política que se faz de “punhos cerrados”, como define, Galo quer engajar seus companheiros em uma luta consciente. Fala sobre o fascismo e tenta despertá-los para a luta por direitos trabalhistas. “Não quero gado”, repetiu em vários momentos da entrevista, “quero uma espécie de entregadores Panteras Negras, conscientes”, disse, fazendo referência ao movimento antirracista revolucionário, que lutava por direitos civis nos Estados Unidos. 

 Paulo Lima, 31 anos: “Existe uma mentira que foi contada pra gente que somos empreendedores”

Como surgiu o movimento de entregadores antifascistas? E por que vocês decidiram ir para as ruas neste domingo?

Estava relutando em levar as pessoas pra rua por causa da pandemia. Mas, agora, do mesmo modo que a gente já vivia um pandemônio e a pandemia, mesmo sendo uma tragédia, foi uma ‘desculpa’ para falar desse pandemônio, esses atos antifascistas acontecendo pelo mundo são a ‘desculpa’ pra gente ir pra rua. 

A gente tem esse sentimento antifascista no coração. Por enquanto, somos um grupo muito pequeno, mas estamos nos organizando. Toda hora eu faço discurso, dou uma de Lula (ex-presidente). Vou num grupo de motoboy, faço um discurso. Vou numa manifestação, faço um discurso. E ali consigo, um, dois, três. Porque existe uma mentira que foi contada pra gente que somos empreendedores. Então, primeiro tenho que buscar desconstruir essa mentira do empreendedorismo, para depois explicar para os caras o que é fascismo e conseguir convencer. 

Acredito que o movimento de vocês é a primeira experiência de organização política de entregadores de aplicativos no Brasil. Nesse trabalho de convencimento com os trabalhadores que você falou, há muita resistência ao discurso político? 

A maioria dos meus companheiros, para ser sincero, me mandam para Cuba. Mas tenho sentido que menos companheiros estão me mandando pra Cuba. Acho que estou mobilizando um grupo legal e vamos ficar no Brasil. Quero formar entregadores pensadores. Quem gosta de gado é o rei do gado. Nós sabe [sic] quem é o rei do gado hoje. 

Ainda sinto que as pessoas não entendem realmente o que é essa ideia antifascista. Sempre explico o fascismo da forma mais simples possível. O fascismo é um poder maior que passa por cima de outros poderes menores. Por ele ser um poder maior, ele acha que os poderes menores não têm possibilidade de dialogar. 

Elas falam: isso é um movimento político! E nós [sic] é motoboy. Mas pergunto, só porque nós [sic] é motoboy não pode fazer política? Nós faz [sic] política com a bag (mochila) nas costas. Política do punho cerrado, política do povo na rua. Não tem que ter terno e gravata pra fazer política. 

Mesmo assim, em uma semana você já conseguiu reunir 30 pessoas.

É trabalho de formiguinha para formar um formigueiro. Quero encontrar pessoas pensadoras. Não quero gado. Se você tem outras pessoas pensadoras com esse sentimento antifascista no coração, acho que a chance de acontecer o que aconteceu em 2013 é menor. De uma coisa que era bonita virar ‘zoada’, fascista. 

Se pegarem um cara sozinho, ele vai tá capacitado para agir de forma autônoma. Igual ao movimento dos panteras negras nos Estados Unidos. Quero criar uma espécie de entregadores Panteras Negras, conscientes. Tudo bem que lá tinha um contexto racial, mas acho que aqui a gente também tem um contexto trabalhista racial também para gente se unir. 

A luta antifascista se conecta com as reivindicações dos entregadores de aplicativos? 

Se a gente não tiver o direito de se manifestar, de ter direito de fala, uma democracia para a gente poder votar, que outra luta a gente vai poder travar? Nenhuma. Se você não tiver direito de se expressar, não consegue travar nenhuma outra luta. 

Quero falar que os entregadores estão com fome. Trabalhamos carregando comida nas costas e com fome. Nada mais justo do que um aplicativo que vende comida ceder a alimentação, um café da manhã, almoço, janta. Fome é uma palavra que todo mundo entende, mas antes de comer você precisa dizer que está com fome. 

Não dá para gritar fome, se não tenho o direito de gritar. Se tem um Brasil que acha que quem tá lá de cima tem que mandar quem tá embaixo calar a boca. 

Além disso, quando você tem um aplicativo que coloca um robô para dialogar conosco e coloca uma dívida para o trabalhador. E o trabalhador tenta dialogar com a empresa, mas os caras não querem dialogar, isso é fascismo. O aplicativo é fascista. 

Essa é a primeira manifestação que o grupo vai participar. Qual é a expectativa? 

Como entregadores antifascistas, indo juntos, vai ser a primeira manifestação. Mas fomos para um ato no sábado (6), na Avenida Paulista, que era um protesto dos trabalhadores do Rappi. 

Vi fotos de entregadores atirando pedras (contra as agressões da polícia) nas últimas manifestações. Quero dizer a eles: é muito bonito, mano, o que você fez. Como um poder menor, enfrentou um poder maior. Mas, você sabe por que você fez isso? Porque a ideia dos entregadores antifascistas não é ir pra luta um dia e “pronto, fizemos nossa parte”. É a luta todo dia. Quando a gente acorda de manhã e vai trabalhar é uma luta. Luta não é só quando a gente tá com a pedra na mão.

Algumas pessoas criticam as manifestações que estão acontecendo durante a pandemia por causa do alto risco de contaminação nas aglomerações. Qual é sua opinião?

Ninguém nesse país que tem mais direito de estar na rua protestando que os entregadores, porque a gente já está na rua e aglomerado. Quando sai um pedido no restaurante, junta 20, 30, 40 entregadores para pegar os pedidos. Então, as pessoas que falam que não era pra estar na rua vão ter que lidar primeiro com a hipocrisia. 

A gente é a favor do distanciamento social, do isolamento, porque não tem cura pra doença. Mas, a pandemia chegou e o garoto não parou de cair no elevador, a Ágatha não parou de levar tiro, o João Pedro não parou de levar tiro. Tenho tragédias de violência que aconteceram na minha família durante a pandemia, que não gosto de ficar falando. O vírus é letal, mas a gente já tava morrendo antes, estamos morrendo mais com o vírus, e depois dele vamos continuar morrendo. 

Além da bandeira antifascista, o movimento faz reivindicações específicas para a categoria? 

Queremos que os aplicativos tenham responsabilidade com os trabalhadores. Essa ideia de Bolsonaro de mais empregos e menos direitos está incrustada nos aplicativos. Nos aplicativos isso acontece na prática. 

Não começamos a sofrer ontem. Sofro desde sempre, sou pobre desde criança. Não vou parar de sofrer amanhã. Tem que ir plantando a luta no coração dos companheiros. A minha luta é por alimentação. Acredito que quando a gente conseguir conquistar que os aplicativos paguem a nossa alimentação, os outros companheiros vão dizer: poxa, mano, tem fruto o que esse pessoal antifascista faz. E é onde vamos conseguir chegar nos corações dos caras. 

Há alguma possibilidade de diálogo com empresas de aplicativos para conseguir alimentação dos trabalhadores e outros direitos? 

Não existe diálogo com os aplicativos. Eles não dialogam com você, dialogam com os acionistas. Você imagina quanto que um acionista acha bacana um aplicativo que não tem greve, não tem férias, não paga salário. 

Não tem problema nenhum, só lucro. Eles temem vínculo empregatício como os crentes temem o diabo. Se eles assumem um vínculo empregatício, o valor de mercado deles cai. O valor de mercado deles está estacionado num pensamento fascista que é ‘vamos lucrar e foda-se’. 

Qual é a média de remuneração de um entregador de aplicativo atualmente?

Varia muito. Tem entregador que vai dizer que ganha R$ 300 a R$ 400 por dia, tem uns que ganham R$ 50. Trabalhando de 12h a 14h por dia, eu ganhava R$ 100, mas tinha que tirar daí o plano de celular, a gasolina e a alimentação. Todos os meses botava uns R$ 600 reais de combustível. No final sobrava menos de R$ 1 mil pra viver.

Existe, na sua opinião, um movimento fascista no Brasil? Uma ameaça real à democracia? 

O governo que está estabelecido está aí, a toda hora ameaça o STF (Supremo Tribunal Federal). O STF garante a democracia, não é isso? A toda hora ameaça de fazer intervenção militar. Quando tem bolsonaristas pedindo intervenção militar, o presidente vai para o meio deles montado em um cavalo. 

Existe um movimento fascista. Movimento não, uma onda. Movimento somos nós que estamos nas ruas todos os dias. Os caras são uma onda. A onda cresce e vai embora. Acredito que todos os bolsonaristas que estão neste país não vão durar dez anos. Vão se transformar em outra coisa, talvez pior. Talvez alguns desistam. Mas nós existimos há muito tempo, vamos continuar existindo, porque a verdade permanece. 

O presidente tem muitos apoiadores entre os entregadores de aplicativos? 

Como um trabalhador que está sofrendo apoia Bolsonaro?, você pergunta. Mas se pegar a pauta que Bolsonaro usou pra se eleger, é a mesma que vários políticos sujos utilizaram, a da segurança pública. Em São Paulo, o roubo de motos é um fenômeno, tem muito. Aparece um cara dizendo que vai matar ladrão, que vai dar arma para as pessoas, vários motoqueiros caíram nessa ideia. 

Você fez um abaixo-assinado cobrando alimentação e álcool em gel para os entregadores, que já tem mais de 300 mil assinaturas. Entregadores não têm carteira assinada, nem garantias trabalhistas, mas continuam trabalhando na pandemia. Como isso tem afetado os trabalhadores?

O aplicativo não tem responsabilidade nenhuma para com os trabalhadores. Se ele quiser te bloquear agora, te bloqueia e não tem nenhum problema com isso. Sei de vários casos de entregadores que adoeceram de covid-19, não conheço gente que morreu, mas tem gente infectada que o aplicativo simplesmente abandonou.

Por causa das denúncias que venho fazendo e do abaixo-assinado, os aplicativos me bloquearam. É um bloqueio branco, não aparece como bloqueado, mas você não recebe mais pedido. Faz um mês que não recebo pedido. Agora mesmo, acabei de pegar uma cesta básica porque estamos vivendo do auxílio do governo. Minha esposa está desempregada e temos uma filha de um ano.

O que te motivou a denunciar abusos das empresas de aplicativos de entregas?  

Trabalho como motoboy desde 2012. De 2012 a 2015, sofri dois acidentes que quase custaram minha vida. Então, decidi que não trabalharia mais como motoboy, porque eu achava que não valia a pena arriscar minha vida para enriquecer ninguém. 

Em 2017, quando minha filha nasceu, as coisas ficaram difíceis. Estava desempregado, tive que voltar a ser motoboy. Só que os aplicativos já tinham dominado o mercado. Como todo mundo, tive que me cadastrar nos aplicativos, parcelar uma moto e trabalhar. Passei por muita coisa. Gente me humilhou, maltratou, o aplicativo que colocou dívidas indevidas pra mim, estava revoltado. 

No dia 21 de março, meu aniversário, no meio da pandemia, a Uber, mesmo me garantindo que não faria, me bloqueou porque meu pneu furou e não tive como entregar a comida do cliente. Fui para a porta da TV Globo tentar fazer uma denuncia, mas disseram que “se eu tivesse comida pra entregar, tudo bem, mas denúncia não dava pra fazer”. 

Então, fiz um desabafo na internet e, por sorte, uma companheira tinha contato de jornalistas. O Jornalistas Livres, o The Intercept e o Jornal A Verdade postaram o vídeo, que viralizou. E toda a atenção criada me possibilitou criar um abaixo-assinado que pede alimentação e equipamentos de segurança aos companheiros. 

Qual sua relação com a política? Já se candidatou a algum cargo público? 

Não. Me ofereceram, mas não quero. Minha relação com a política começou ainda quando criança, quando estava voltando com meus pais da casa de um parente e a polícia pediu pra parar o carro. O policial quase quebrou o braço do meu pai, por questão racial, porque ele não quis colocar o braço pra trás. E ali ainda muito novinho entendi que eu tinha um inimigo na vida. Vi meu pai chorar, minha mãe sofrer por conta disso. Isso me deu instinto para lutar contra as injustiças. Fui crescendo, conheci o movimento hip hop, comecei a cantar rap aos 12 anos. 

O movimento hip hop é uma escola de política. Cada música é uma aula. Tive um companheiro que admirava muito e perguntei como fazia pra cantar rap como ele. Ele me disse, “mano, tem que ler. Ler é o combustível de escrever.” Ele me deu um livro, Negras Raízes, do Alex Harley. Comecei a ler, ir nas bibliotecas. Fui conversando com as pessoas, aprendendo, olhando o que meu Brasil é o que eu represento o que meu país representa, e como tenho que me posicionar.

Arquivo Pessoal/Instagram

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