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Medo de sofrer violência sexual, racismo e LGBTfobia além de péssimas condições de transporte são algumas das reclamações ouvidas pela reportagem

Reportagem
27 de novembro de 2020
12:00
Este artigo tem mais de 3 ano

“Eu era mais corajosa quando era mais nova, porque tinha essa ideia de que a cidade precisa ser ocupada, e ocupada  por mulheres. Mas fui assaltada duas vezes e nas duas vezes houve ameaça de estupro. Eu comecei a ter um certo pavor de andar sozinha”, relata Inajara Salles, estudante universitária e moradora da região metropolitana de Salvador.

A estudante de jornalismo e técnica em comunicação visual Í’sis Almeida voltava, em um ônibus lotado, de uma aula noturna da faculdade para o bairro onde mora, o Bonfim, quando presenciou um homem se masturbando enquanto fingia mexer no celular. Ela tentou denunciar, mas foi informada de que não poderia prestar queixa por não ter anotado a placa do ônibus. 

A moradora do Novo Horizonte e agente de endemia Neia Carolina da Silva passou por situação parecida há pelo menos 15 anos, em sua adolescência. “Isso já tem muitos anos. Eu estava num ônibus e não tinha percebido. Mas uma amiga começou a gritar com o cara, dizendo que ele tava se esfregando em mim e ele desceu do ônibus. Não deu em nada.” 

As experiências contadas à reportagem demonstram como a importunação é uma prática recorrente  que atinge todas as mulheres, trans ou cis, em Salvador. Para entendermos como o medo da violência de gênero afeta a relação delas com a cidade, buscamos impressões de diferentes perfis socioeconômicos, de raça e identidade de gênero por meio de um levantamento on-line. Das 50 respostas que tivemos, apenas duas pessoas relataram não ter sofrido importunação sexual ou conhecer alguém que tenha sido vítima desse crime. Ninguém relatou sentir segurança ao transitar sem companhia à noite. 

De acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA), desde 2019, quando o crime de importunação sexual passou a ser registrado no estado, já foram reportadas 18 denúncias em Salvador – 12 cometidas em ônibus, 3 em trem e uma em transporte por aplicativo. Até abril de 2020 havia três registros de importunação ocorridos nos ônibus municipais. Ainda segundo o levantamento feito pela SSP, a capital baiana registrou no total 32 crimes sexuais, com 12 estupros, 4 tentativas de estupro e 15 importunações, todos cometidos no transporte coletivo, entre 2015 e 2020. 

Um problema da lei de importunação sexual é a identificação do agressor. Como geralmente ela é praticada em lugares de maior movimentação, como a rua ou o ônibus, a fuga se torna mais fácil e a obtenção de provas, mais difícil. Além disso, cabe quase que exclusivamente à vítima coletar provas do delito, como tirar fotos do agressor, lembrar o número da linha ou da placa do veículo, embora as autoridades também possam investigar através das câmeras dos ônibus. Mas a advogada do Grupo de Atuação Especial em Defesa da Mulher e da População LGBT (Gedem), Flávia Lima, afirma que, se não há flagrante, é mais provável que haja impunidade. 

A advogada recorda que há ainda outros fatores que podem desencorajar a mulher na hora de denunciar. Se ela tem dinheiro para pagar a passagem até a delegacia, se já tem ficha criminal, se é cis ou trans, tudo isso pode constituir empecilho. “Tem mulher que não quer registrar porque é uma violência você entrar naquela delegacia. Imagine ir registrar que um cara ejaculou em você. O ideal seria que a delegacia fosse até a mulher. Porque, sendo bem sincera, eu trabalho com esse meio, mas eu não gostaria [de ir]”, afirma.

O relatório “Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil”, publicado em 2019 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), retrata a dificuldade de denunciar o crime. Entre as mulheres que relataram ter sofrido algum tipo de violência, 52% afirmaram não ter feito nada, nem mesmo procurado ajuda de familiares e amigos. No levantamento on-line feito para esta reportagem, 41,3% afirmaram ter medo de a denúncia não ser levada a sério. Ainda segundo esse levantamento, alguns fatores que podem impedir vítimas de prestar queixa são o medo de sofrer julgamentos e represálias, não saber onde denunciar e a falta de confiança nas instituições que recebem as denúncias.

Gabriela Leandro Pereira, professora da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e pesquisadora do grupo de estudos Corpo, Discurso e Território, ressalta que há ainda outras questões que atravessam a mobilidade além do gênero, principalmente em Salvador, onde oito em cada dez moradores se autodeclararam de cor preta ou parda, constituindo 82,1% da população da cidade. “Existe um marcador de que não se pertence a determinado espaço da cidade. Essa demarcação do corpo é mais uma interdição se você vai ou não usufruir, e de como você vai ou não usufruir. Há sobre os corpos pretos essa premeditação de que são pessoas que não deveriam estar ali, porque não fazem parte desse cotidiano. As mulheres pretas ainda passam menos violentamente por essas questões, porque são sempre apontadas como pessoas que estão indo prestar serviços. Mas os homens pretos, sobretudo os jovens pretos, são sempre suspeitos.”

Nadine Matos, produtora audiovisual, conhece essa realidade. Ela relata um episódio em que, durante uma batida policial no ônibus em que estava, teve sua nécessaire revirada e foi questionada se os remédios que portava não seriam drogas. Enquanto descia as ladeiras estreitas do Pelourinho, após ter saído do estágio no Centro Histórico de Salvador, ela também sofreu LGBTfobia. Seguia em direção ao ponto de ônibus quando dois homens passaram a persegui-la e proferir ameaças. “Eles diziam: ‘Sapatão e viado tem que apanhar mesmo, esse povo tem que morrer!’. Imagine eu descendo a ladeira para ir até o ponto e tendo que ouvir isso, sendo que a qualquer momento eu poderia sofrer uma agressão física.”

Í’sis conta que o contexto do seu bairro, situado na Cidade Baixa, mais as quatro horas diárias gastas no seu deslocamento em ônibus lotados, afeta até seu sentimento pela cidade. Para ela, que diz odiar Salvador, a cidade não oferece condições dignas de existência para as pessoas negras e periféricas. “Entendo que cada pessoa possa ter sua preferência com relação à cultura, aos modos de viver em Salvador. Mas em termos de dignidade humana e sobrevivência econômica é impossível uma mulher e um homem negro dizerem que hoje vivem uma vida digna em Salvador”, desabafa. 

Aline Prado, engenheira civil e mestranda na área de sistemas de transportes e informações espaciais,  propõe que se olhe a mobilidade de uma maneira nova, para entender como ela afeta a população. “É importante fazer essa reflexão de que forma o transporte afeta a inclusão social no meio urbano e como ele interfere diretamente nas possibilidades de emprego e estudo dessas pessoas que moram longe do centro. Se a pessoa gasta em média quatro horas no deslocamento diário, qual é a qualidade de vida?”

A pesquisadora se questiona também por que no planejamento urbano não há um olhar voltado para os problemas enfrentados pelas mulheres. “Muitas coisas dentro do planejamento precisam ser questionadas. Se nós, mulheres, somos as maiores usuárias do transporte coletivo, por que nós não temos conforto nesse transporte? Por que as barras no ônibus são tão altas para nossa média de altura? Por que é tão complicado passar na catraca com criança? Por que a gente ainda sofre assédio no ônibus?” 

A violência de gênero nos caminhos da capital

Assim como Neia, a produtora audiovisual, jornalista e moradora do bairro de Pernambués Jamile Barbosa, quando mais nova, passou por uma situação de importunação que ainda marca a sua relação com a cidade. Ela estava em um ônibus voltando da aula e conversando com amigos, quando sentiu que um homem a encoxava. Jamile se assustou e ficou paralisada. Voltou a reagir só em casa, quando teve uma crise de choro depois de ter notado uma mancha branca na sua bermuda. “É como se você tivesse feito algo errado e não é você [a culpada]. Ônibus cheio eu não pego, porque dá margem a muita situação, a gente não tem segurança e não sabe o que vai acontecer”, recorda.

Além dessa estratégia, Jamile mudou a própria atitude para lidar com as importunações que sofre em seu trajeto. Parou de frequentar espaços turísticos, onde sente que é mais abordada, e diz ter deixado “de ser simpática na rua”. Ela conta que já ajudou uma adolescente, vítima da importunação sexual. “Já aconteceu uma situação em que eu vi o cara ejaculando na menina. Aí eu fiz escândalo, gritei: ‘Estuprador!’. Era uma menina nova, não tinha nem seus 18 anos. O cara levou porrada e foi colocado para fora do ônibus. A menina começou a chorar, desesperada. O povo queria dar queixa, ela que não quis”, recorda Jamile, que acredita ter sido a mesma vergonha que ela sentiu quando foi vítima de importunação, um dos elementos que fizeram com que a adolescente se recusasse a denunciar.

Para a travesti e coordenadora da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), Keila Simpson, a possibilidade de denunciar essas violências de forma digital ajuda especialmente a população trans a prestar queixa, já que para essa comunidade as delegacias podem ser lugares bastante inóspitos. “Quase que a totalidade, ao chegar para denunciar uma violência ou qualquer coisa que acontecesse, passaram de vítimas a criminosas. Muita gente desistia de denunciar.”

Apesar disso, a ativista ressalta a importância de transexuais e travestis denunciarem qualquer forma de violência contra elas. É, aliás, por meio do número de denúncias que a Antra publica anualmente em seu site o dossiê de violência contra a população trans; segundo Keila Simpson, há atualmente um acréscimo substancial no número de casos. “A gente tem constatado, ano após ano, o aumento da violência e do assassinato contra essas pessoas e, com certeza, esse ano teremos o número recorde de assassinatos, infelizmente.” 

Políticas públicas

Segundo a Associação das Empresas de Transporte de Salvador (Integra), consórcio responsável pelo Sistema de Transporte Coletivo por Ônibus de Salvador  (STCO), não foi feita nenhuma denúncia de “assédio sexual” nos ônibus em seu disque-denúncia. A concessionária CCR Metrô não respondeu se há registros de importunações cometidas nos vagões, mas afirmou que “esclarece que repudia e combate qualquer prática de violação aos direitos humanos, sejam eles relacionados a gênero, etnia, orientação sexual, idade ou religião”. A CCR promove a campanha “Tô de Olho”, que visa estimular a denúncia de “atos obscenos, assédio, vandalismo, brigas e furtos nos trens, plataformas, estações e terminais do sistema metroviário”. 

As secretarias da Mulher do estado e do município já promoveram ações de enfrentamento da importunação sexual. A Secretaria de Políticas para as Mulheres da Bahia (SPM) produziu, em 2017 e 2019, intervenções artísticas nas estações rodoviárias e do metrô e dentro dos vagões, com a participação de artistas circenses, grupos de dança e atores. A ação tinha como objetivo conscientizar a população da gravidade da importunação sexual e fez parte da programação dos “21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres”.

Já a Secretaria de Políticas para Mulheres, Infância e Juventude de Salvador (SPMJ) começou a promover campanhas de conscientização dos rodoviários em 2019. Segundo a secretária Rogéria Santos, mais de mil rodoviários já foram capacitados para dar assistência às vítimas de importunação nos ônibus municipais. Houve também o anúncio da campanha “Pare!”, para informar a população de que a importunação no transporte público passou a ser proibida por lei. Os órgãos também organizaram ações no Carnaval e no Festival da Virada.

Rogéria conta que a SPMJ pretende lançar um programa para incentivar mulheres a se tornarem motoristas de ônibus. “A campanha abriu um leque de atuação com políticas públicas para mulheres pensando na mulher e na mobilidade, não só na proteção integral dos direitos, como também no âmbito da profissionalização de mulheres.” 

De acordo com a Integra, 821 mulheres, entre motoristas e cobradoras, trabalham nas três concessionárias responsáveis pelo STCO da capital. Elas representam cerca de 11% dos rodoviários em atividade. Apenas 13 mulheres dirigem ônibus em Salvador.

Diante das poucas opções de transporte exclusivo, alguns aplicativos foram desenvolvidos para promover segurança, nos moldes da Uber e da 99 Pop. Mas Aline Prado, que estuda a escolha de mobilidade das mulheres pelos aplicativos de transporte exclusivo, afirma que em Salvador todos os apps de transporte voltados apenas para mulher encerraram suas atividades. Um dos problemas enfrentados pelos apps era a baixa quantidade de motoristas cadastradas nas plataformas, que tornava muito longo o tempo de espera para a viagem.

Os próprios aplicativos mais populares, a Uber e a 99, já lançaram iniciativas desse gênero. Os dois apps permitem às motoristas escolher dirigir apenas para as usuárias, mas admitem não haver uma base ampla o suficiente de mulheres dirigindo para oferecer às passageiras a opção de ter uma motorista. Por meio de iniciativas de fomento ao empreendedorismo, as plataformas tentam mudar esse cenário.

A mobilidade e a imobilidade das mulheres

A desigualdade se reflete também na utilização dos diferentes modais de transporte. Segundo a Pesquisa Origem e Destino, mulheres são maioria apenas nas viagens feitas a pé e por ônibus municipais – com taxa de participação de 56,35% e 55,82% respectivamente. Nos meios de transporte individual, a participação delas abaixa: mulheres fazem 13,20% das viagens de moto e 30,71% de carro. Em relação ao transporte por bicicleta, a taxa é ainda menor: 11,80%.

Há queixas também sobre a qualidade dos transportes coletivos. Um dos principais indicadores da qualidade da mobilidade é o tempo de espera. No “Relatório Global sobre Transporte Público do Moovit”, de 2019, feito com base em dados fornecidos por usuários do próprio aplicativo, Salvador é a terceira capital brasileira com o maior tempo de espera durante uma viagem, com média de 22 minutos. A capital baiana fica atrás apenas de Recife e Brasília. Ainda segundo esse levantamento, o tempo médio de deslocamento dos usuários do aplicativo é de 55 minutos. Nesse quesito, Salvador fica em sexto lugar. Em outras metrópoles, o tempo médio pode chegar a uma hora.

Para Neia Carolina da Silva, uma viagem de lazer pode se tornar mais cansativa se feita pelo transporte coletivo, tanto para ela quanto para os seus dois filhos, de 6 e 12 anos. “A gente tem duas opções: ou esperar muito [um ônibus] e descer mais próximo de casa ou esperar um pouco menos e ter que andar mais.”

Neia relata que o ponto de ônibus mais próximo da sua casa mudou. Agora ela precisa andar até a entrada do bairro para chegar à parada. Essa mudança ocorreu após a integração entre as linhas de ônibus e o transporte pelo metrô. Em 2018, a prefeitura retirou linhas de ônibus, alegando que o sistema de ônibus e de metrô de algumas regiões tinham entrado em concorrência, disputando os mesmos usuários. Para 54% das mulheres que responderam à nossa pesquisa, a integração afetou a mobilidade. 

Segundo Grace Gomes, superintendente da Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Urbanismo de Salvador (Sedur), houve um erro estratégico da prefeitura que levou ao corte de linhas. “Em 2013 foi assinado um contrato onde isso [a integração] foi minuciosamente detalhado, dizendo ‘A tarifa a ser cobrada será essa, as linhas a serem modificadas serão essas’. Só que a prefeitura não fez a sua parte de começar a fazer a reestruturação, o replanejamento das linhas. Porque no fundo [o poder municipal] diz que não acreditava que o metrô fosse ficar pronto tão rápido.”

Já entre as calçadas de Salvador, 56,3% precisam de adequação, segundo avaliação formulada para o Plano de Mobilidade Urbana Sustentável de Salvador (Planmob), que pesquisou o calçamento do entorno de pontos de ônibus, escolas e equipamentos de saúde. 

O levantamento “Calçadas do Brasil”, feito pelo portal Mobilize em 2019, criou um ranking de avaliação das calçadas, mantidas diretamente pelo poder público, das capitais nacionais e do Distrito Federal. O estudo marcou como 8 a nota mínima aceitável. Salvador recebeu 4,89, figurando como a 24ª colocada do ranking. A coordenadora da pesquisa em Salvador, Isabella Illana Lopes, avalia: “As administrações vêm tratando com evidente desigualdade o ambiente urbano. Os bairros mais ‘nobres’ da capital recebem maior investimento de qualidade infraestrutural e um cuidado diferenciado por parte do poder público. Já nos bairros ‘periféricos’, a população tem que enfrentar a falta de acessibilidade nos seus deslocamentos diários”. 

No geral, políticas de mobilidade pensadas para a mulher geralmente focam a questão da segurança, mas não se encontra no planejamento pensado para o futuro da cidade nenhuma estratégia que traga a perspectiva de gênero, como aponta Diogo Pires, diretor de planejamento de transportes na Secretaria de Mobilidade de Salvador (Semob). Ele explica que existe uma série de metodologias adotadas por diversos especialistas em mobilidade para planejar a rede de transportes coletivos de uma cidade, mas que, em Salvador, o modelo de planejamento deixa de levar em conta algumas questões, como a mobilidade da mulher.  

“Uma das fragilidades destes modelos é a questão de que, às vezes, eles consideram o deslocamento casa-trabalho como o deslocamento a ser respondido. Aí, dentro desses modelos eles acabam perdendo a informação de que existem outros tipos de deslocamentos”, completa. 

A pesquisa “Caracterização das Diferenças no Padrão de Mobilidade de Mulheres e Homens em Grandes Cidades Brasileiras”, publicada no ano passado no 33° Congresso de Pesquisa e Transporte da Associação Nacional de Pesquisa e Ensino em Transportes (Anpet) apontou a divisão sexual do trabalho, empregabilidade e desigualdade de renda como alguns dos principais fatores que afetam o padrão de mobilidade do gênero feminino. Segundo a pesquisa, as mulheres estão em menor número no mercado de trabalho e possuem renda mensal reduzida quando comparada à dos homens, além de estarem em maior número nos trabalhos domésticos. Dessa forma, o acesso à posse e ao uso de veículos é limitado, impactando a possibilidade de deslocamento pelas grandes cidades. 

O diagnóstico da última Pesquisa Origem e Destino, de 2012, utilizada na elaboração do Planmob, aponta a taxa de imobilidade entre as mulheres. De acordo com o relatório, na região metropolitana de Salvador, o não deslocamento para fora de casa entre elas é de 33,3%, enquanto entre os homens esse percentual fica em 24,1%. 

Daniel Caribé, doutor em arquitetura e urbanismo pela Ufba e ativista do direito à cidade, afirma que os problemas do transporte público já vinham causando isolamento antes mesmo da pandemia. “A gente pode andar apenas dentro de um raio, mas que isso a gente precisa de um transporte público. Numa cidade como Salvador, que tem 700 mil metros quadrados, sem um transporte público de qualidade e de massa, e bem distribuído por território, essas pessoas vão ficar definitivamente isoladas.”

Caribé critica a alocação de recursos em mobilidade feita tanto pela prefeitura quanto pelo governo do estado. Obras como o BRT – um corredor transversal que irá ligar o centro ao Iguatemi, com quatro faixas da pista dedicada aos carros e com previsão de investimento em R$ 820 milhões – e o monotrilho – que irá substituir o trem do Subúrbio Ferroviário de Salvador, com previsão de investimento de R$ 1,5 bilhão para a primeira fase – são criticadas por serem ostensivas, com alto impacto na geografia e na sustentabilidade da cidade. “Esses investimentos não são para melhorar a qualidade, a confiança, para tornar o transporte público mais eficaz, para tornar a tarifa mais em conta. Para fazer investimentos em segurança e iluminação para as mulheres correrem menos perigos, política social de tarifas para a população mais vulnerável e desempregada, por exemplo”, completa

Em uma cidade onde 77% da população se encaixa nas classes sociais de menor renda (C, D E), o valor das passagens pode se tornar um peso. Salvador é reconhecida por ter a tarifa de metrô mais baixa entre as capitais (R$ 3,90), e a integração permite três viagens pelo preço de uma única passagem. Apesar disso, a superintendente de urbanismo do governo da Bahia, Grace Gomes, explica que um terço da população soteropolitana anda a pé (39%, segundo a Pesquisa Origem e Destino de 2012) por não poder pagar a passagem cobrada pelo transporte público.

A emancipação vem de bike

Algumas mulheres têm enxergado na bicicleta a oportunidade de transformar sua experiência de mobilidade no dia a dia em Salvador. Apesar de o modal ter também seus problemas, ciclistas garantem que a autossuficiência oferecida por esse meio de transporte é recompensadora. “É muito bom sentir aquele ventinho no rosto, aquela sensação de liberdade que você tem na bicicleta. Isso me motiva mais do que os problemas que me desestimulavam”, conta a cicloativista do Mobicidade Érica Teles. 

O mesmo sentimento tem a integrante do coletivo Afrociclos Jamile Santana. “Eu me sinto muito livre, me sinto muito dona de mim. A bicicleta me oportuniza isso de fazer várias coisas e estar em vários lugares, não dependendo de um meio de transporte que vai aprisionar muito mais a minha mobilidade do que me libertar.” 

Segundo Jamile, além de a bicicleta ser um meio de transporte econômico, autônomo e acessível, ela proporciona independência e empoderamento por possibilitar a mobilidade física e social. “A partir do momento em que você tem uma emancipação financeira e uma autonomia da sua mobilidade, isso influi na autoestima da mulher e em como ela vai encarar a violência e as situações de agressão”, declara. 

Mesmo diante dessas vantagens, mulheres ainda têm pouca participação nesse modal na maioria das capitais brasileiras. Na última Pesquisa Origem e Destino, elas representavam apenas 11,80% dos ciclistas. No nosso levantamento on-line feito com mulheres trans, cis e pessoas não binárias, 80% disseram achar a bicicleta um transporte interessante, mas não a utilizam. Os motivos vão desde falta de incentivo por machismo e sexismo e falta de qualidade da infraestrutura cicloviária até  insegurança. 

Érica Teles ressalta que, em Salvador, as iniciativas de aumentar o número de ciclistas do gênero feminino ainda são das próprias mulheres. Ela destaca também que para muitas a oportunidade só surge em idade adulta, geralmente após os 20 anos. “As mulheres são muito cerceadas do direito de aprender a pedalar. Eu sou uma pessoa privilegiada e tive acesso. Mas mesmo meninas da mesma situação e faixa etária que eu não foram tão estimuladas assim.”

Para mulheres negras, Jamile Santana, que já fez parte também do La Frida Bike, uma das principais ONGs cicloativistas de Salvador, promoveu com suas colegas na época o projeto “Preta Vem de Bike!”, com o objetivo de incluir mais mulheres negras no modal e levar a locomoção por bicicleta para além da orla de Salvador, uma das regiões mais elitizadas e que detém as melhores  infraestruturas cicloviárias da cidade. 

Das 91 estruturas listadas que compõem os 281,8 km da rede cicloviária (ciclovias, ciclorrotas e ciclofaixas), cerca de 63% estão localizadas em áreas nobres. E dessas áreas nobres pelo menos 74% são na região da orla, segundo levantamento feito pela reportagem com dados disponibilizados pela Superintendência de Trânsito do Salvador (Transalvador). Jamile lembra que foi nesse espaço que aprendeu a dar as primeiras voltas na bike, já adulta. “Aos meus 22 anos, meu irmão me chamou para aprender a pedalar na orla, com toda aquela relação de falta de cuidado: ‘Ah, você é burra! Você é lerda!’. A queda já virava chacota. No fim, eu consegui dar umas pedaladas, apesar de ter caído no lixo e de ter me ralado.”

A moradora da Costa Azul e psicóloga Angélica Vitoriano conta que só aprendeu a andar de bike aos 57 anos, depois de ter superado a crença de que só poderia ter aprendido quando criança. Ela revela que os medos internalizados sobre o papel social da mulher também foram um bloqueio e que aprendeu a pedalar depois da morte do pai. “Tem um link muito grande da minha história com essa força do patriarcado, essa força masculina na minha vida”, afirma.

Nascida em Salvador, mas criada por um tempo no interior de Sergipe, a psicóloga lembra que em sua infância era raro haver mulheres pedalando. A única que conhecia na época era a sua xará, a também Angélica, uma moça que enfrentava frequente discriminação por ser negra, pobre e homossexual. “Eu via que tinha coisas que diferenciavam a forma como ela era tratada da forma como outras mulheres eram tratadas. Primeiro que ela era chamada de Angélica preta, para diferenciar que ela era Angélica, mas não era branca.”

Hoje, a psicóloga busca incentivar outras mulheres e meninas a pedalar e buscar a própria autonomia e, especialmente, o autoconhecimento. “A partir da bicicleta eu pude acessar medos e inseguranças que eu tinha, mas também como eu sou capaz, corajosa e forte. Eu fui descobrindo em mim coisas que eu não conhecia que eu era tão capaz. Eu não sabia nem que eu tinha força física para levantar uma bicicleta.” 

Pelo direito à cidade

Para Aline Prado, uma cidade acolhedora para mulheres conta com a atuação delas na gestão, não apenas no trânsito. “Acho que o principal é ter mulheres atuando na gestão da cidade. Uma cidade segura, que ela possa escolher o modo de transporte, com locais gratuitos e arborizados onde ela possa ficar com ou sem os filhos. Uma cidade sem a hegemonia do automóvel, que ela possa usar a calçada com tranquilidade, mesmo sozinha à noite ou sendo cadeirante, ou uma mãe com carrinho de bebê, e que exista uma coexistência harmônica entre os homens e as mulheres no espaço urbano.” 

A pesquisadora ressalta que políticas voltadas para melhorar a mobilidade dessa parte da população ajudam todos que precisam transitar pela cidade. “Um olhar voltado para minorias transforma e pode melhorar a qualidade de vida de grande parte da população, não só no dia a dia, mas no futuro. com uma qualificação profissional melhor, qualidade de vida e saúde”, completa. 

Gabriela Pereira cita a capital austríaca, Viena, como uma experiência de urbanismo reconhecida pelo tratamento da questão de gênero. Como exemplo, houve a preocupação em não construir “espaços cegos” na cidade, onde as mulheres podem ser vítimas de maiores violências. “No caso do Brasil, a gente tem problemas maiores ainda, não minimizando a questão da violência. Mas, no nosso caso, parece que pensar uma perspectiva de gênero no planejamento estaria mais vinculado a questões estruturais que a gente tem que lidar. Como isso, a questão da regularização fundiária, a questão de creche integral para que as mulheres consigam ir e voltar do trabalho.” 

Há também estratégias como a micromobilidade. Gabriela lembra que, em discussões com o grupo de pesquisa Lugar Comum, da Faculdade de Arquitetura da Ufba, se pensava o uso de vans e micro-ônibus para poder conectar os bairros por dentro. Em Salvador, o que há é o uso do Sistema de Transporte Especial Complementar, como os Amarelinhos, que entram em ruas mais estreitas não alcançadas pelo ônibus comum.

Ela sintetiza a ideia de pensar a mobilidade urbana por diferentes ângulos : “Acho que a ideia de uma cidade para todos é uma ideia que sustenta as assimetrias que nós temos. Então, inverter a lógica do investimento no espaço urbano, para uma distribuição de investimentos que privilegie a população mais afetada com as precariedades urbanas”, completa.

Essa reportagem é resultado das Microbolsas Mobilidade, realizado pela Agência Pública e o Instituto Clima e Sociedade. A 11ª edição do concurso selecionou estudantes para investigar a mobilidade urbana nas capitais brasileiras.

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