Um militar aliado de alunos de Olavo de Carvalho; um advogado católico crítico das decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre células-tronco, homofobia e aborto em casos de anencefalia; uma ex-assessora parlamentar contrária ao aborto mesmo em casos de estupro. São esses alguns dos nomeados por Damares Alves, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), para um grupo de trabalho que vai rever a Política Nacional de Direitos Humanos ao longo dos próximos meses.
Publicada em 10 de fevereiro, a Portaria nº 457 definiu que o grupo de trabalho irá “analisar aspectos atinentes à formulação, desenho, governança, monitoramento e avaliação da Política Nacional de Direitos Humanos, com vistas a oferecer recomendações para seu aprimoramento e de seus programas”. Damares definiu que o GT se reunirá semanalmente, com prazo de duração até 1º de novembro.
A atual Política Nacional de Direitos Humanos foi instituída pelo Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), discutido e aprovado durante o segundo governo Lula, em 2009. Entre os eixos orientadores do PNDH-3 estão a universalização de direitos “em um contexto de desigualdades”, o direito à memória e à verdade e a “interação democrática entre Estado e sociedade civil”, com “garantia da participação e do controle social das políticas públicas em Direitos Humanos”.
O ato da ministra que formou o grupo de trabalho definiu, ainda que o colegiado possa convidar, “representantes de entidades públicas e privadas com atuação na temática de direitos humanos”, mas que estes não terão direito a voto. O texto causou perplexidade nas organizações que atuam na defesa dos direitos humanos. Na quinta-feira (18), mais de 570 entidades assinaram um documento em repúdio à publicação e pedindo a anulação do grupo de trabalho criado por Damares.
A organização Human Rights Watch afirma que a medida do MMFDH fere o princípio da participação social e da transparência. De acordo com Maria Laura Canineu, diretora da entidade no Brasil, o texto da portaria não está alinhado com normativas do direito internacional, do qual o país é signatário.
“O governo é obrigado a fornecer ao público acesso amplo à informação e, além disso, consultar comunidades interessadas quando formula políticas públicas que vão afetá-las. Então, qualquer política que possa ter impacto sobre direitos, por exemplo, de populações indígenas, deve ser feita em consulta com essas populações e outras minorias”, afirma.
Além disso, a portaria veda “a divulgação de discussões em curso pelos membros do grupo de trabalho antes do encerramento de suas atividades”. Na prática, o dispositivo impede que a sociedade civil e a imprensa tenham acesso ao conteúdo discutido por intermédio de instrumentos como a Lei de Acesso à Informação (LAI).
A Portaria nº 458, publicada no mesmo dia, definiu os 14 titulares do grupo de trabalho, além de 28 suplentes. Todos os indicados são assessores ou servidores do MMFDH, entre representantes de secretarias e outros setores da pasta, como a Diretoria de Planejamento e Gestão Estratégica e a de Projetos, Parcerias e Integração Institucional.
Militar católico
O escolhido para coordenar o grupo de trabalho é o secretário adjunto da Secretaria Nacional de Proteção Global do MMFDH, Eduardo Miranda Freire de Melo. Oficial superior da Marinha, Melo está no cargo desde dezembro de 2020, mas sua atuação no governo de Jair Bolsonaro (sem partido) começou ainda no período de transição, em 2018. O militar participou das discussões acerca do Ministério da Educação (MEC), iniciando o mandato de Bolsonaro como secretário executivo adjunto da pasta.
Menos de três meses após o início do governo, porém, Melo foi exonerado do cargo no ministério, que vivia uma batalha entre o grupo de militares e o de apoiadores do ideólogo Olavo de Carvalho. Apesar da formação militar, a exoneração do oficial da Marinha foi apontada como parte de um “expurgo” de olavistas do MEC. Nas duas principais crises do ministério, na transição entre Ricardo Vélez Rodríguez e Abraham Weintraub e, depois, entre Weintraub e Milton Ribeiro, o nome de Melo foi defendido por alunos de Olavo de Carvalho para o cargo de ministro.
Após a saída da pasta, ele passou a ser diretor-geral adjunto da Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), uma organização social (OS) que esteve ligada ao governo federal até dezembro de 2019. A Acerp é a responsável pela TV Escola e, até meados de 2020, geria a Cinemateca.
Sua experiência prévia aos cargos públicos é principalmente na área da educação: entre 2002 e 2009, foi diretor nacional da Mission Network, uma rede internacional católica que promove programas de formação e voluntariado, e da Catholic Youth World Network, voltada para jovens católicos. Em seguida, entre 2010 e 2013, esteve à frente do Everest International School, em Curitiba. As três organizações são ligadas ao movimento de apostolado Regnum Christi, associado à congregação católica Legionários de Cristo.
O militar é ainda coordenador do curso de extensão “Pensamento conservador: fundamentos e prática”, oferecido pela Faculdade Inspirar, em Brasília. Entre os docentes do curso estão bolsonaristas e olavistas destacados, como o assessor para assuntos internacionais de Bolsonaro, Filipe Martins, o youtuber Bernardo Küster e a deputada federal Chris Tonietto (PSL-RJ). Além de conceitos e da história do conservadorismo, a ementa do curso inclui temas como “Mídias sociais e conservadorismo” e “O pensamento conservador frente ao globalismo”.
O currículo de Melo aponta que ele foi diretor-presidente do Instituto de Biopolítica Zenith e membro do Observatório Interamericano de Biopolítica, “onde atuou na Defesa da Vida e da Família”.
Pauta antiaborto
Também católico, o advogado Rodrigo Rodrigues Pedroso será o representante titular do gabinete ministerial no grupo de trabalho. Assessor especial da ministra desde janeiro de 2019, ele é membro da União dos Juristas Católicos de São Paulo (Ujucasp). Antes do cargo comissionado no MMFDH, Pedroso atuou na Procuradoria Judicial Trabalhista e fez parte do corpo jurídico da Universidade de São Paulo (USP).
Em mais de uma ocasião, o advogado defendeu posicionamentos contrários ao aborto. Em um debate acerca da decisão do STF sobre o uso de células-tronco em pesquisas, em 2008, ele apontou que a autorização era “um pretexto para a liberalização do aborto”. Anos depois, em 2016, Pedroso foi o responsável pela formulação da minuta de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) com o objetivo de reduzir o poder do STF, propondo que o Congresso possa invalidar decisões do Supremo quanto à inconstitucionalidade de leis. A proposta do advogado, motivada pelas decisões do STF sobre células-tronco, união homoafetiva e aborto em casos de anencefalia, estabelece que é “vedado ao Supremo Tribunal Federal atuar como legislador positivo”.
Também contrária ao aborto, mesmo nas situações previstas em lei, a advogada Teresinha de Almeida Ramos Neves é a representante da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres no grupo de trabalho. Ex-assessora parlamentar do deputado federal Gilberto Nascimento (PSC-SP) e dos vereadores paulistanos Pastor Edemilson Chaves (PTB), Gabriel Chalita (PDT) e Eduardo Tuma (PSDB), ela está na secretaria desde maio de 2020. Atualmente, ocupa o cargo de diretora do Departamento de Promoção da Dignidade da Mulher.
Candidata a vereadora em São Paulo pelo PSC em 2012, ela já comparou o aborto, mesmo em casos de estupro, a infanticídio: “Imaginem se todos que, a princípio, não têm condições financeiras para criar seus filhos optassem por matá-los, como se fazia antigamente… Ainda que o feto seja especial, resultado de estupro, a vida sobrepõe! Há vida desde a concepção, portanto, aborto é infanticídio!”. Em seu blog pessoal, Teresinha apontou o combate à homofobia como “perseguição religiosa” e questionou se “o Homossexualismo [sic] tem relação com abuso sexual ou rejeições na área sentimental”.
Entre os críticos da descriminalização do aborto, há pelo menos mais dois titulares do grupo de trabalho: Viviane Petinelli e Silva, representante do gabinete da secretaria-executiva, e Marcelo Couto Dias, da Secretaria Nacional da Família.
Número dois da secretaria-executiva desde julho de 2019, Viviane já defendeu, em uma audiência pública no STF, que a descriminalização do aborto até a 12ª semana pode afetar a dinâmica populacional e reduzir a arrecadação da Previdência. Na ocasião, representando o Instituto de Políticas Governamentais (IPG), ela afirmou que a descriminalização seria onerosa para os cofres públicos.
Doutora em ciência política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Viviane foi secretária nacional adjunta dos Direitos da Criança e do Adolescente do MMFDH entre janeiro e julho de 2019. Além disso, atuou como coordenadora de conteúdo da Rede Estadual de Ação pela Família, organização que atua “em defesa da vida e da família”.
Já Marcelo Couto Dias, diretor do Departamento de Formação, Desenvolvimento e Fortalecimento da Família, tem uma série de posts com posicionamento contrário ao aborto em sua página pessoal no Facebook. No ministério desde janeiro de 2019, ele passou por diferentes cargos na pasta, ocupando a posição atual desde fevereiro de 2020. Doutor em família na sociedade contemporânea pela Universidade Católica do Salvador (UCSal), é pesquisador na área de família e professor no Pontifício Instituto Teológico João Paulo II para as Ciências do Matrimônio e da Família.
Falta de experiência na área
Além de quadros contrários ao aborto, chama atenção a escolha de servidores sem relação prévia com a área de direitos humanos. Um deles é Wendel Benevides Matos, representante da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos no grupo de trabalho. Agente de carreira da Polícia Rodoviária Federal (PRF), com passagem pela Corregedoria do órgão, ele não tem experiência anterior com o tema. Coordenador-geral da Ouvidoria desde fevereiro de 2019, Matos foi um dos assessores enviados por Damares a São Mateus (ES) para tentar impedir o aborto da menina de 10 anos, segundo a Folha de S.Paulo. O superior dele, Fernando Cesar Pereira Ferreira, que ocupa o cargo de ouvidor nacional, também é servidor de carreira da PRF.
Outra das nomeadas para discutir a Política Nacional de Direitos Humanos, a representante da Secretaria Nacional da Juventude, Sarah de Rezende Antônio, também não tem no currículo ligação com o tema. Formada em direito, com especialização em direito empresarial, desde setembro de 2020 é coordenadora-geral de Desenvolvimento do Departamento de Políticas Temáticas dos Direitos da Juventude. Antes, passou pela Assessoria Especial de Controle Interno do ministério de Damares.
Dois dos representantes do gabinete da secretaria-executiva, de perfil técnico, também não têm experiência anterior na área. Gustavo Teixeira Amorim Gonçalves, coordenador-geral de Planejamento e Gestão Estratégica desde maio de 2019, tem foco na área de planejamento, com passagens pelos antigos ministérios do Planejamento e do Esporte. Já Pedro Paulo Teófilo Magalhães de Hollanda, que desde dezembro de 2019 é diretor de Projetos, Parcerias e Integração Institucional, tem doutorado em administração pela Universidade de Brasília (UnB). Ele foi secretário adjunto da Secretaria Nacional da Família e teve passagens pelos ministérios do Planejamento (2017-2018) e da Fazenda (2014-2015).
Há ainda mais cinco servidores do ministério nomeados como titulares do grupo de trabalho: Milton Nunes Toledo Junior, Luciana Dantas da Costa Oliveira, Rodrigo Abreu de Freitas Machado, Renato da Silva Gomes e Esequiel Roque do Espírito Santo.
Toledo Junior é chefe da Assessoria Especial de Assuntos Internacionais desde janeiro de 2019. Mestre em direito, com foco em direito internacional, foi advogado da União e atuou na Controladoria-Geral da União (CGU) e no Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).
Luciana é diretora de Promoção e Fortalecimento da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente desde novembro de 2019. Antes, passou quatro meses como secretária adjunta do mesmo setor. Formada em direito e em serviço social, ela atuou quase três décadas como assistente social do Sesi do Rio Grande do Norte, além de ter atuado como advogada.
Freitas Machado é diretor do Departamento de Políticas Temáticas da Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência desde julho de 2020. Formado em arquitetura e urbanismo, ele ocupa cargos na secretaria desde 2013, tendo passado também pelos governos Dilma e Temer.
Representante da Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa, Silva Gomes ocupa cargo no Departamento de Políticas Temáticas da Secretaria desde julho de 2019. Graduado em enfermagem, com especialização e mestrado na área de gestão de saúde e em tópicos da administração pública, ele é servidor de carreira do governo federal. Foi analista técnico de políticas sociais do Ministério da Saúde entre 2013 e 2018 e desde 2018 passou por vários cargos na secretaria do MMFDH voltada para a população idosa.
O titular do grupo de trabalho com perfil mais relacionado à área de direitos humanos vem da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Número dois do setor desde janeiro de 2019, o advogado Esequiel Roque do Espírito Santo foi presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da OAB de Rondônia e do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do mesmo estado. Ele foi membro de conselhos de direitos da criança e do adolescente em Rondônia. Formado e especializado em direito, com foco nos direitos de crianças indígenas, Espírito Santo foi secretário nacional interino durante três meses, após a exoneração de Sandra Terena, esposa do blogueiro bolsonarista Oswaldo Eustáquio.
Falta de pluralidade
Entre as entidades que se posicionaram contra a medida do governo, o Movimento Negro Unificado (MNU) também assinou o documento que pede a anulação da portaria.
Até o ano passado, o coletivo integrava o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH). Coordenadora do MNU, Iêda Leal tem receio de que a exclusão da sociedade civil e um grupo de trabalho inexperiente resultem em medidas sem embasamento técnico. Para ela, a nomeação de militantes antiaborto a militares olavistas expõe a falta de pluralidade da escolha, com integrantes que “rezam a cartilha” do ministério.
“Quando a gente trabalha com direitos humanos e faz determinações para melhoria de vidas, de pertencimento racial e sexual, a gente tem que tomar cuidado porque não é a vida particular, não estamos legislando para dentro de casa. As pessoas têm que ter comprometimento com o outro”, critica.
Para ela, a medida mostra incompreensão do governo da importância do controle social. “A sociedade civil não cabe em lugar nenhum neste governo”, afirma.
Já Monica Alkmim, coordenadora do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) e e integrante da mesa diretora do CNDH, diz que a convocação de um grupo de trabalho para reestruturar o programa atropela as competências do conselho.
Integrado por entidades não governamentais e órgãos do governo, o colegiado já tem entre suas atividades o acompanhamento e monitoramento das políticas públicas sobre direitos humanos. “O próprio ministério faz parte do conselho. Qual a necessidade da criação desse grupo de trabalho, se nós já temos um espaço institucional cuja função deveria ser exercida?”, questiona.
Para a integrante do CNDH, o ministério não se baseou em escolha técnica nem política para a nomeação de seus membros. “Esse grupo de trabalho não foi formado com base em um diagnóstico, em saberes técnicos e normativos nem foi formado com base em uma produção de políticas preexistentes”, analisa. “É uma escolha de amigos dos amigos. Quem segue o discurso que é imposto pela atual gestão é convidado para participação neste e em outros grupos de trabalho.”
O jornal Folha de S.Paulo apurou que o ministério propõe aprimoramento do PNDH com o argumento de que o texto atual tem “metas inatingíveis e pouco focadas em ações efetivas e de impacto social”.
No entanto, Monica Alkmim avalia que o momento não favorece uma revisão do programa. A coordenadora do MNDH lembra outras medidas do governo que minaram a participação da sociedade civil na gestão governamental, como o decreto presidencial 9.759, de abril de 2019, que limitou o espaço dos conselhos participativos. “Esses sinais nos deixam claro que não é uma preocupação com o PNDH, mas com a participação social”, argumenta.
O texto atual do PNDH foi constituído depois de 137 encontros prévios à conferência em que foi redigido. Na época, a Secretaria de Direitos Humanos estimou que aproximadamente 14 mil pessoas se envolveram na elaboração do programa, por meio dessas iniciativas territoriais. “Esse processo de participação democrática não pode ser extinto em uma canetada. Não pode ser extinto em um grupo de trabalho dentro de um gabinete”, defende.
Outro lado
A Pública questionou o MMFDH sobre a composição do grupo de trabalho, seus objetivos e as críticas de falta de transparência e de participação da sociedade civil feitas por organizações de direitos humanos. A assessoria de comunicação da pasta respondeu com o link de duas notas já publicadas sobre o assunto, que não esclarecem a totalidade dos questionamentos enviados pela reportagem. As notas podem ser lidas aqui e aqui. Leia a íntegra das perguntas enviadas.