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Em entrevista à Pública, filósofa italiana fala sobre o acúmulo de trabalho para as mulheres durante a pandemia, a caça às bruxas realizada pela igreja e um novo feminismo que vê nascer

Entrevista
22 de março de 2021
16:47
Este artigo tem mais de 3 ano

A filósofa, escritora e professora italiana Silvia Federici ficou conhecida no Brasil por seus livros “Calibã e a Bruxa”, “O Ponto Zero da Revolução” (Editora Elefante) e “Mulheres e Caça às Bruxas” (Editora Boitempo). Nascida na Itália e radicada nos Estados Unidos desde a década de 1960, Silvia lança agora um novo livro pela Boitempo, “O patriarcado do salário – notas sobre Marx, gênero e feminismo” que traz uma série de artigos sobre como o trabalho não remunerado das mulheres – como o doméstico e o de cuidados com a reprodução – teve e tem um papel importante na consolidação e na sustentação do sistema capitalista. Silvia também reivindica espaço para o que chama de “trabalho reprodutivo” nas pautas da esquerda como mostra esse trecho do livro: “De Lênin a Gramsci, toda a tradição da esquerda concordou com a ‘marginalidade’ do trabalho doméstico para a reprodução do capital e com a marginalidade da dona de casa para a luta revolucionária. Para a esquerda, na condição de donas de casa, as mulheres não sofrem por causa da evolução capitalista, mas pela ausência dela. Nosso problema, ao que parece, é que o capital não organizou nossas cozinhas e nossos quartos, o que gera uma dupla consequência: a de que nós aparentemente trabalhamos em um estágio pré-capitalista e a de que qualquer coisa que fazemos nesses espaços é irrelevante para a transformação social. Pela lógica, se o trabalho doméstico é externo ao capital, nossa luta nunca causará sua derrocada”.

Na década de 1970, a filósofa defendeu um salário para o trabalho doméstico e um relatório da Oxfam de março de 2020 estimou que as mulheres dedicam 12,5 bilhões de horas, a cada dia, para limpar a casa, cozinhar e cuidar de crianças e idosos. Algo que temos visto escalar durante a pandemia de coronavírus com a sobreposição do trabalho remunerado – seja ele remoto ou não – com o não remunerado como o cuidado com os enfermos, com a casa e os filhos fora da escola, disse Silvia em uma conversa por vídeo com a Agência Pública. “Muitas mulheres estão ficando loucas e estão dizendo isso. Essa é uma crise muito forte. Eu espero que esse seja um momento que impulsione uma forte mobilização de movimentos feministas. Que não se torne uma situação permanente porque as mulheres não irão permitir”, refletiu. 

Federici disse também ter esperança em um novo feminismo “dissidente, alternativo, popular como o que existe na América Latina” que se encontra com outros movimentos sociais como o antirracista, anticapitalista, indígena, campesino, “a luta sobre o controle dos nossos corpos e a defesa da natureza, a luta contra a contaminação das águas pelo agro”, algo que ela chama de “um feminismo mais amplo, enfocado em combater a supremacia masculina, a dominação das mulheres pelos homens e também aberto a outras atividades e lutas que são fundamentais para uma transformação real da sociedade”. 

Sobre governo Bolsonaro, a ascensão de uma nova extrema-direita no mundo e o fundamentalismo religioso que coloca feministas e população LGBT como principais inimigos, Silvia Federici fala em uma nova caça às bruxas: “Não existe o desejo de proteger a vida mas sim o de controlar os corpos das mulheres, assegurar-se de que as mulheres sejam subordinadas, sacrificadas, que possam ser exploradas por suas famílias e pelo capitalismo. É uma questão econômica também, a igreja com essa aparência da defesa da vida, da família, na verdade está defendendo a produção do trabalho não assalariado das mulheres. E quando a igreja vê que não pode mais nos convencer de tudo isso então nos trata como inimigas, cria novas divisões entre mulheres e homens e entre mulheres também. Porque colocam algumas mulheres como aliadas do diabo”.

A filósofa italiana, Silvia Federici, é autora dos livros “Calibã e a Bruxa”, “O Ponto Zero da Revolução” (Editora Elefante) e “Mulheres e Caça às Bruxas” (Editora Boitempo)

Em debate com Sonia Guajajara no último dia 11, você disse que o feminismo não é isso que a mídia tem mostrado ao longo dos anos e nem o que a indústria tem tentado cooptar e fala de um novo feminismo. Que feminismo é esse que você vê surgir e como você vê essa apropriação?

A tentativa das mídias, do Capital, das instituições em cooptar o feminismo vem de longa data, uma história que começa nos anos 1980, quando as Nações Unidas e vários governos começam a celebrar o desejo das mulheres por emancipação através do trabalho assalariado. E em um momento de forte crise do capitalismo, que era também um momento de muita luta, de protestos, o capitalismo abre as portas para as mulheres e celebra suas iniciativas e seu desejo de emancipação. Então para muitos o feminismo é somente o desejo de ter oportunidades e de ser igual aos homens e essa é uma visão muito reducionista. Claro que ninguém deve ser discriminado, claro que as mulheres não devem receber tratamento diferente dos homens mas o feminismo pode muito mais do que isso! Denuncia a desvalorização de toda uma esfera de atividades, denuncia que as mulheres produzam, cuidem de toda a infraestrutura da casa antes de sair para trabalhar e nunca tenham sido devidamente recompensadas, denuncia essa desvalorização do trabalho não pago com a reprodução. E nos últimos anos temos visto esse enfoque do movimento feminista sobre a reprodução, sobre o corpo, esse enfoque é muito importante. Podemos ver também as conexões entre a luta sobre o controle dos nossos corpos e a defesa da natureza, a luta contra a contaminação das águas pelo agro. Esse me parece que é o aspecto mais importante dessa nova forma de feminismo, que vem sobretudo do sul, da América Latina, Chile, Brasil, de movimentos que se encontram. Movimento de mulheres campesinas, por exemplo, das mulheres indígenas com o movimento feminista que parece mais clássico, contra as relações patriarcais. Existe hoje então um feminismo que é contra a dominação patriarcal e quer criar um mundo diferente, um mundo que não é governado pela lógica capitalista, de mercado, um mundo em que não sejamos controladas pelas grandes corporações capitalistas. Isso me parece importante. Um mundo crítico ao racismo. Essa capacidade de ver conexão entre diferentes movimentos, um feminismo mais amplo, enfocado em combater a supremacia masculina, a dominação das mulheres pelos homens e também aberto a outras atividades e lutas que são fundamentais para uma transformação real da sociedade. 

Em setembro de 2019, Silvia Federici veio ao Brasil para participar do ciclo de debates “Democracia em Colapso?”. O evento contou também com a participação de Angela Davis e Patricia Hill Collins

Nós sabemos que historicamente o feminismo tem sido visto como uma luta secundária por outros movimentos sociais e por grande parte da esquerda. Eu gostaria que você falasse um pouco sobre como o feminismo atravessa e é atravessado por todas essas lutas e como podemos fazer essa conversa? 

Sim, eu espero que a esquerda e os movimentos sociais comecem a compreender a importância disso para a mudança social. Porque por muito tempo a luta das mulheres era considerada como uma luta de suporte a outras lutas. É esquecida toda uma esfera muito importante, da reprodução social, a esfera da reprodução da força de trabalho. Um feminismo dissidente, alternativo, popular como o que existe na América Latina tem sido capaz de abrir os horizontes da visão da esquerda, da visão que Marx nos propôs, que segue sendo fundamental, segue sendo muito importante, nos trouxe repertório, nos trouxe categorias que nos ajuda a compreender a lógica da sociedade capitalista mas que também tem nos dado uma visão muito reducionista do que é esse trabalho, do que é essa exploração, quem somos os sujeitos revolucionários, justamente por esse enfoque somente à fábrica, ao trabalho industrial, ao trabalho assalariado. Marx viveu em um período particular, da Revolução Industrial e apesar de toda a sua crítica à sociedade capitalista, sempre olhou para o capitalismo como um sistema que explora mas todavia cria condições materiais para a criação do comunismo. Essa visão da indústria, sobre como é fundamental também para libertar o trabalho humano, reduzir o trabalho necessário para que possamos fazer coisas mais importantes, tudo isso tem um impacto muito negativo sobre todas as atividades reprodutivas. Muitas das quais não se pode mecanizar, não se pode industrializar! Reproduzir pessoas, reproduzir a vida não é a mesma coisa que fazer um carro! O movimento feminismo é capaz de recuperar a crítica ao sistema capitalista de Marx mas também de se distanciar de alguns aspectos do marxismo que privilegia um setor particular de trabalho e um setor particular de sujeitos políticos, os privilegia e assim confirma as divisões nas hierarquias de trabalho construídas pelo capitalismo. Assim os partidos comunistas, os partidos de esquerda têm reproduzido a mesma hierarquia que se encontra na organização capitalista do trabalho e essa é nossa crítica. Não é uma rejeição a Marx ou ao anticapitalismo, é uma rejeição a uma visão que privilegia alguns setores, algumas formas de trabalho e vê as outras como marginais.

Nós temos vivido hoje no Brasil, com o governo Bolsonaro que é tomado por militares e religiosos, uma ameaça muito grande aos direitos das mulheres e população LGBT. Mas sabemos que a tentativa de dominação dos corpos por parte da igreja definitivamente não é algo novo. Você poderia falar um pouco sobre isso?

Sim, claro, a igreja tem toda uma história, na idade média, na inquisição, de caça às bruxas e não só de caça às bruxas mas a igreja tem sido uma presença fundamental, importante, de controle e restrição à vida das mulheres. É só olharmos para os textos sagrados em que as mulheres são as causas da perdição da humanidade! São as que introduziram o pecado no mundo! Hoje segue assim, temos visto uma intervenção fanática do Vaticano sobre a luta das mulheres na Argentina pelo direito ao aborto. A igreja é uma parte do Estado, é um poder político e hoje segue disciplinando as mulheres na vida cotidiana, na reprodução. E isso é muito preocupante, essa nova cruzada liderada pelo Vaticano e pelos protestantes, é uma nova caça às bruxas! Não é somente uma metáfora é uma realidade. E várias pesquisas acadêmicas e produções jornalísticas sempre observam a conexão entre a nova caça às bruxas por exemplo na África, em Papua-Nova Guiné, com a presença muito forte a partir dos anos 1980 do desenvolvimento dessa crise neoliberal do capitalismo que tem desmantelado a organização comunitária da vida. Os novos missionários ajudam nesse processo de conquista e são financiados por instituições como o Banco Mundial. Fazem um trabalho de neutralizar protestos, são contra as vacinas e dizem que a pobreza, os traumas da vida são causados pelo demônio. É muito preocupante porque há uma inversão de fundos e energia nessa nova cruzada, nessa nova presença da religião sobre a vida cotidiana, o impacto que isso tem na fragmentação de comunidades minando sua capacidade de existir. 

Com a ascensão desses movimentos de extrema-direita e governos autoritários no mundo hoje, as mulheres feministas (assim como os comunistas e a população LGBT) são apontadas cada vez mais como as grandes inimigas, as que irão destruir as famílias heteronormativas o próprio Bolsonaro se elegeu muito baseado neste discurso e mantém grande parte de sua base de apoio, especialmente entre religiosos dessa forma. Como as acusações e a punição de ‘bruxas’ se repetem na atualidade, nesse contexto?

Sim, tentam culpabilizar as mulheres de tudo. Eu acredito que é importante denunciar isso e mostrar o quanto é falso e mentiroso o que esses senhores estão fazendo. Porque, por exemplo, dizem que estão defendendo a vida, que a mulher não pode controlar sua sexualidade, que não pode controlar seu corpo em nome de uma defesa da vida. Mas isso é na verdade uma grande mentira porque se preocupam com os fetos somente enquanto estão dentro dos ventres das mulheres. Quando nascem essa preocupação acaba. É muito claro que isso na verdade é só para controlar os corpos das mulheres. Por exemplo proibindo a contracepção ou o aborto. Não existe o desejo de proteger a vida mas, sim, o de controlar os corpos das mulheres, assegurar-se de que as mulheres sejam subordinadas, sacrificadas, que possam ser exploradas por suas famílias e pelo capitalismo. É uma questão econômica também, a igreja com essa aparência da defesa da vida, da família, na verdade está defendendo a produção do trabalho não assalariado das mulheres. E quando a igreja vê que não pode mais nos convencer de tudo isso então nos trata como inimigas, cria novas divisões entre mulheres e homens e entre mulheres também. Porque colocam algumas mulheres como aliadas do diabo. Por isso é muito importante que as mulheres se organizem, que prestem atenção ao que está acontecendo na África, por exemplo em que muitas têm sido acusadas de bruxaria e mortas, expulsas de suas famílias, de seus povoados. Praticam exorcismos não só em mulheres, mas também em rapazes que protestam contra a precarização, o empobrecimento. Por isso eu acredito que este é um tema que merece atenção dos movimentos feministas e dos movimentos sociais como um todo. 

“Não existe o desejo de proteger a vida mas, sim, o de controlar os corpos das mulheres”, avalia Federici

Pensando no cenário pandêmico que tem feito as mulheres trabalharem em casa e acumularem suas funções de trabalho remunerado com as de trabalho não-remunerado, ou naquelas mulheres cujo trabalho remunerado as obriga a sair de casa e se expor a riscos de saúde e ainda cuidar dos enfermos, dos velhos e das crianças em casa. Você acha que as mudanças no trabalho das mulheres causadas pela pandemia serão permanentes? 

Hoje existe uma tensão, uma tensão geral sobre o trabalho doméstico. A razão é que há uma explosão de crise de muitas mulheres que se encontram em casa com o trabalho remoto e o cuidado com os filhos que hoje é muito grande porque além de tudo precisam ajudá-los com os estudos porque as escolas estão fechadas. E também com os traumas porque as crianças estão fechadas em casa, há traumas, problemas psicológicos. E tem o trabalho doméstico, a comida, sair para comprar coisas e tudo isso neste momento com a pandemia de Covid. Muitas mulheres estão ficando loucas e estão dizendo isso. Essa é uma crise muito forte. Eu espero que esse seja um momento que impulsione uma forte mobilização de movimentos feministas. Que não se torne uma situação permanente porque as mulheres não irão permitir. Essa é minha esperança. No entanto, sei que muitos empregadores irão [após a pandemia] usar a Covid para tentar trancar de vez as mulheres em casa porque vão se dar conta de que é mais econômico. O trabalho remoto é muito útil aos empregadores porque lhes permite economizar dinheiro. E se não houver uma luta forte, uma forte mobilização, que foque na problemática da reprodução, que foque em uma mudança qualitativa significativa de como se organiza a reprodução, iremos viver um pesadelo. Vamos ter uma semana laboral de 24 horas. Dizem que o trabalho da mulher nunca acaba e agora estamos vivendo isso de fato. E isso também é verdade para as mulheres que são obrigadas a trabalhar fora de casa, correndo grande perigo, sobretudo as que trabalham em lugares essenciais como hospitais, lojas, mercado. E voltam pra casa e continuar trabalhando. É uma situação insustentável. E os empregadores e os governos vão desfrutar, usar como desculpa para que a mulher esteja cada vez mais sobrecarregada, a custos reduzidos, é um momento de grande perigo. É um momento decisivo, uma encruzilhada, ainda não é claro como será o futuro. O que vai decidir esse futuro é se haverá uma grande mobilização, se os movimentos serão capazes de pôr de lado as diferenças e criar um interesse comum, se unir. Isso para mim é uma questão aberta.

*Colaborou Clarissa Levy

Marina Valeriano
Taba Benedicto
Artur Renzo

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