Ouça agora o podcast Caso K – A história oculta do fundador da Casas Bahia.
Tramita desde o fim de abril na Procuradoria do Trabalho no Município de São Bernardo do Campo (MPT São Bernardo do Campo) um inquérito civil para apurar possíveis responsabilidades da empresa Casas Bahia após denúncia de exploração sexual de crianças e adolescentes pelo seu fundador, Samuel Klein, feita pela Agência Pública em 15 de abril.
A Pública apurou que o inquérito — que corre sob sigilo por envolver crianças e adolescentes — pretende ouvir testemunhas que teriam conhecimento sobre os fatos revelados, incluindo seguranças, ex-funcionários, motoristas de táxi e secretárias pessoais.
Além disso, a fase de inquérito prevê a coleta de material que possa substanciar uma eventual ação contra a empresa perante a justiça do trabalho.
A reportagem da Pública contou em detalhes a história oculta de Klein — falecido em 2014. Conhecido como “o rei do varejo”, Samuel teria usado seu poder como empresário bem-sucedido para manter durante décadas um esquema de aliciamento de crianças e adolescentes para a prática de exploração sexual dentro da icônica sede da empresa, em São Caetano do Sul, além de outros locais em Santos, São Vicente, Guarujá e Angra dos Reis.
Novo relato de ex-funcionário cita “valinho” em loja de São Paulo
A Pública ouviu mais de 35 fontes, entre mulheres que o acusam de crimes sexuais, advogados e ex-funcionários da Casas Bahia e da família, consultou processos judiciais e inquéritos policiais, teve acesso a documentos, fotos, vídeos de festas com conotação sexual e declarações de próprio punho das denunciantes, além de gravações em áudio que indicam que, ao menos entre o início de 1989 e 2010, Samuel Klein teria sustentado uma rotina de exploração sexual de meninas entre 9 e 17 anos dentro da própria sede da Casas Bahia, no centro de São Caetano do Sul, e em imóveis de sua propriedade situados na Baixada Santista e no município de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro. O empresário teria organizado um esquema de recrutamento e transporte de meninas, com uso de seus helicópteros particulares, que teria contado até mesmo com a participação de seus funcionários, para festas e orgias acobertadas com pagamentos às meninas e familiares com dinheiro e produtos das lojas espalhadas pelo país.
Após a publicação da reportagem, José*, um ex-funcionário da empresa, entrou em contato com a Pública para contar o que testemunhou enquanto trabalhava no setor de venda de celulares na loja das Casas Bahia no Shopping Aricanduva, zona leste da cidade de São Paulo. Ele reforça o que outros funcionários já haviam contado à reportagem e diz que presenciou uma dezena de meninas pagarem celulares com o “valinho”.
José diz que na primeira vez que escutou a expressão, perguntou ao gerente da loja o que o termo significava. “Ele explicou abertamente ser o pagamento que o Samuel fazia a meninas, ‘em troca de’ festas e viagens”, lembrou. Nestes casos, o vendedor afirma que foi orientado a inserir um código na hora do pagamento para liberar a compra, o que ficou conhecido entre os vendedores da loja como “o vale do Samuel”. Ainda segundo o relato de José, as meninas que procuravam a loja eram “simples e humildes” e às vezes iam sozinhas, outras acompanhadas de adultos responsáveis.
Andamento do inquérito
O inquérito do MPT ainda não tem prazo de conclusão. Fontes da área jurídica explicaram à reportagem que por não ter competência criminal, o MPT teria alguns caminhos se o resultado do inquérito apontar irregularidades: firmar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a empresa e neste termo ela poderia firmar um acordo de indenização por dano moral coletivo ou, caso a empresa não concorde com um TAC, o MPT poderia ajuizar uma ação civil pública contra a gigante do varejo nacional. Se ao fina, irregularidades não forem detectadas pode haver também o arquivamento do inquérito.
Também o MPT da cidade de Barueri abriu inquérito para apurar as denúncias de estupro e aliciamento de mulheres já publicadas contra Saul Klein, filho de Samuel Klein.
“Piores formas de trabalho infantil”
Segundo Ana Maria Villa Real Ferreira Ramos, Procuradora do Trabalho e Coordenadora Nacional da Coordenadoria de Combate à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes (Coordinfância) do Ministério Público do Trabalho, a exploração sexual de crianças e adolescentes “é uma das piores formas de trabalho infantil”. Ela cita o Decreto 6.481/08 que regulamentou artigos da Convenção nº 182 da OIT, ratificada pelo Estado Brasileiro. O texto do decreto cita como trabalho infantil “a utilização, demanda, oferta, tráfico ou aliciamento para fins de exploração sexual comercial, produção de pornografia ou atuações pornográficas”.
A coordenadora da Coordinfância explica que o MPT atua preventiva e repressivamente no combate ao trabalho infantil. “Na atuação repressiva, busca-se a responsabilização daqueles que exploram o trabalho infantil em atividades econômicas (verbas trabalhistas, danos morais individuais e coletivos), bem como a cessação da prática e da repetição ou reiteração do ilícito”, diz.
Ela explica também que há uma diferenciação entre abuso sexual e exploração sexual. “No abuso, o sexo é obtido mediante força, manipulação emocional, ameaça, coação. Na exploração, há uma troca ou uma promessa de troca. Então, esse bem é oferecido como recompensa, pode ser dinheiro, pode ser viagem, celular etc”, diz.
Ela cita ainda que mais de 75% do trabalho infantil no Brasil está concentrado na faixa etária entre 14 e 17 anos. Por isso, “a aprendizagem profissional é um importante instrumento de prevenção e erradicação do trabalho infantil”.
Tanto casos de abuso quanto de exploração sexual de crianças e adolescentes são violências punidas pela legislação brasileira. Ter relação sexual com menor de 14 anos é considerado estupro de vulnerável, com pena de oito a quinze anos de reclusão. Se a vítima tiver entre 14 e 18 anos e o ato envolver algum tipo de troca — que pode ser dinheiro ou outra recompensa, como um brinquedo, uma roupa ou até comida —, ficará caracterizado o crime de exploração sexual de criança ou adolescente. Nesses casos, as penas vão de quatro a dez anos de prisão.