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Lideranças do Cordão de Ouro teriam cometido abusos contra crianças e adolescentes desde a década de 1970, segundo relatos e informações de promotora de justiça do Ceará

Reportagem
1 de junho de 2021
14:59
Este artigo tem mais de 3 ano

Mestres de um dos maiores grupos de capoeira do país, o Cordão de Ouro, são denunciados por ao menos 15 pessoas de abusar sexualmente de crianças e adolescentes entre 11 e 18 anos. A Agência Pública teve acesso exclusivo a procedimentos criminais e conversou com homens e mulheres que teriam presenciado ou sofrido abusos em Fortaleza (CE), São Paulo (SP) e Taubaté (SP). 

O grupo Cordão de Ouro tem academias de capoeira credenciadas em mais de 30 países. 

Relatos e documentos colhidos pela reportagem revelam que mestres teriam se aproveitado da vulnerabilidade, admiração e confiança de seus alunos, que os viam como ídolos ou até como figuras paternas, para praticar violências sexuais. Mensagens e áudios aos quais tivemos acesso indicam que alguns casos teriam sido acobertados por membros da direção do grupo. A Pública teve acesso também a um vídeo no qual aparece um dos mestres se masturbando em um ônibus. 

Desde o ano passado, o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) investiga lideranças do Cordão de Ouro por denúncias de abusos e estupro de vulnerável – como a lei brasileira tipifica a relação sexual com menores de 14 anos. De acordo com a promotora de justiça do MPCE Joseana França, cinco vítimas fizeram acusações “contra vários mestres”. Os nomes de todos os envolvidos não foram divulgados pelo órgão para não comprometer as investigações, mas o fundador do grupo, Reinaldo Ramos Suassuna, mais conhecido como mestre Suassuna, estaria entre os acusados, segundo vítimas que relataram à Pública ter prestado depoimento. 

 Mestre Suassuna, fundador do Cordão de Ouro, é citado por pessoas que prestaram depoimento ao MPCE

“Os relatos são horríveis. Uma pessoa que a gente ouviu começou a sofrer abusos quando tinha entre 10 e 11 anos”, detalhou a promotora. “Acreditamos que a quantidade de vítimas pode ser muito maior. Tem pessoas que não querem falar por medo. Também porque existe uma relação de lealdade entre o aluno e o mestre de capoeira.” 

Crianças e adolescentes, segundo ela, eram cooptados por mestres do Cordão de Ouro com a promessa de viagens para outros estados e/ou para o exterior. “Eles se submetiam a uma espécie de teste, que era chamado de ‘carimbar o passaporte’, que na verdade era o abuso sexual”, explicou. 

O capoeirista Rildo da Silva, o mestre Penteado, contou à Pública detalhes de como o suposto esquema funcionaria. Hoje com 50 anos, ele diz ter tomado coragem para denunciar a violência que viveu por tantos anos ao saber das investigações da promotoria do Ceará. “Não quero que outras crianças passem pelo que eu passei.”  

Segundo Rildo, aos 15 anos ele começou a treinar o esporte com uma das maiores lideranças do grupo, Marcos Antônio Lopes de Souza, apelidado de mestre Espirro Mirim, em Fortaleza. 

De família pobre, Rildo enxergava na capoeira uma forma de melhorar de vida e ajudar a família. De acordo com ele, aproveitando-se da situação de sua vulnerabilidade, Espirro Mirim prometia levá-lo para viajar o mundo. Em troca, no entanto, o menino teria que ser submetido a fazer sexo com ele.

“Ele falava que se fizesse sexo com ele a gente ia ter graduação [na capoeira], ia ser famoso, ia viajar para o mundo inteiro. E sei lá, a gente, criança, se deixa levar, sonhava em viajar, sonhava em chegar em algum lugar pra poder ajudar a nossa família. A gente não tinha maturidade, e ele assediou. Ele ficava passando a mão nas partes íntimas”, lembrou em entrevista à reportagem. 

Os abusos, segundo Rildo, aconteciam também em troca de comida. “Ele comprava as coisas pra gente. Comprava comida porque a gente não tinha dinheiro pra comprar comida. A gente veio de família pobre.”

O mestre, relata, ameaçava expulsá-lo do grupo caso não fizesse o que ele pedia. “A gente era obrigado a dormir na casa dele e ele tentava muita coisa. Ele queria que a gente penetrasse nele, e ele queria fazer as coisas com a gente.”

Afastado da capoeira há cinco anos, Rildo disse que “ficou nas mãos” de Espirro Mirim dos 15 aos 32 anos, quando foi para os Estados Unidos pelo grupo Cordão de Ouro. “Não existe ‘passaporte carimbado’. Existe passaporte onde eu te uso, você me usa e eu te mando para fora do país, ou para outras cidades do Brasil, como todos passaram. Só que ninguém tem coragem de abrir a boca.” 

Primeiras denúncias 

O depoimento de Luciana* à Procuradoria Especial da Mulher da Assembleia Legislativa do Ceará, em setembro de 2019, foi um dos relatos que motivaram a abertura de investigação do MPCE. Luciana é casada com um mestre que faz parte do Cordão de Ouro desde a infância e, por isso, recebia em sua casa muitos capoeiristas. Ela denunciou ao órgão dois mestres que teriam assediado suas filhas, ainda crianças, em ocasiões diferentes, sendo um deles do Cordão de Ouro. 

Em 13 de agosto de 2017, mestres de capoeira de outros estados teriam se hospedado em sua casa para um evento em Fortaleza. Segundo Luciana, sua filha mais velha flagrou um mestre  – que não pertence ao Cordão de Ouro e não será identificado na reportagem por questões processuais – tentando estuprar a irmã mais nova, na época com 5 anos. 

“Ela viu a irmã dela parada na frente do quarto desse cara e ele pegando no braço dela e dizendo a seguinte frase: ‘Vamos brincar? Uma brincadeira de menino e menina, você vai gostar, eu vou fazer um furinho em você’. E a minha filha já ouvindo aquilo e tremendo”. A família relatou à Procuradoria Especial da Mulher que entrou com ação criminal contra este mestre em 2020 e aguarda audiência. O mestre, por consequência, teria movido, segundo o relato de Luciana à procuradoria, processo contra o pai da menina por calúnia e difamação.   

Depois do ocorrido, a filha mais velha, já casada e com 22 anos, decidiu contar à família que havia vivenciado algo parecido, em 2009, envolvendo o mestre do Cordão de Ouro do Ceará Paiakan (Eliomar Vale de Lima). 

À época com 13 anos, Denise* acompanhou Paiakan à casa dele, de moto, para buscar instrumentos encomendados pelo pai. O mestre, no entanto, teria desviado o caminho para um matagal, onde começou a assediá-la “dizendo que ela era muito gostosa e que ficava pensando nela sambando”, denunciou a mãe. De acordo com Luciana, Denise correu, mas o mestre a ameaçou para ela não contar à família. 

Família acusa Mestre Paiakan de assediar menina de 13 anos

Depois desse dia, segundo Luciana, a filha abandonou a capoeira e desenvolveu vários problemas relacionados à saúde mental. 

Assim como Denise, o capoeirista Gabriel* contou à Procuradoria Especial da Mulher que demorou anos para conseguir retomar a vida e chegou a se envolver com drogas depois de ter sido abusado pelo mestre Espirro Mirim – o mesmo que teria violentado Rildo – quando criança. 

Gabriel repetiu à Pública o que disse à Procuradoria: que viveu momentos de horror, ficando preso por três horas em um quarto – das 21 até meia-noite – com Espirro Mirim. “Só deixou eu sair da casa dele quando disse que, se não me deixasse sair, a minha mãe ia lá.” À reportagem, contou que tinha apenas 12 anos quando o mestre tentou estuprá-lo, em janeiro de 1997. 

Segundo seu relato, a violência havia começado horas antes, no início da tarde, depois de uma roda de capoeira na porta da casa de Espirro Mirim. O mestre teria convidado Gabriel para assistir a um vídeo. No momento em que ficaram sozinhos na cozinha, o homem, à época com 32 anos, teria forçado sexo oral. Gabriel disse que ficou em estado de choque e sem reação. “Meu sentimento foi de nojo misturado com medo.” Segundo ele, naquela época Espirro Mirim já era reconhecido mundialmente na capoeira. 

Dois anos depois, em 1999, mestre Suassuna, precursor do Cordão de Ouro, também teria tentado abusar sexualmente de Gabriel. “Tinha acabado um evento. Fui com uns amigos pra frente da casa do Espirro Mirim falar com uns mestres e, quando eu passei pelo Suassuna, ele tentou passar a mão em mim. Eu saí rapidamente de perto.” Naquela ocasião, Suassuna estava em Fortaleza para a comemoração dos 20 anos de capoeira de Espirro Mirim.

A promotora Joseana França revelou que está investigando casos em que o “passaporte carimbado” – os abusos com promessas de viagens e, consequentemente, progressão na capoeira – levava os capoeiristas do Ceará para aulas com Suassuna em São Paulo. “Esses meninos eram enviados ao sítio dele, onde sofriam novos abusos.” 

Mestre Espirro Mirim foi filmado se masturbando em um ônibus

Denúncias contra o fundador do Cordão de Ouro

Nascido em Itabuna (BA), Reinaldo Ramos Suassuna, o mestre Suassuna, mudou-se para São Paulo na década de 1960, onde fundou o Cordão de Ouro. Atualmente, o grupo tem academias em quase todos os estados brasileiros, além de filiais em cinco continentes. 

A internacionalização se iniciou na década de 1980, quando alunos da Bahia começaram a ser enviados para divulgar a capoeira em outros países. O Cordão de Ouro mantém também projetos sociais que atendem a crianças e adolescentes de comunidades carentes. 

Mestre Suassuna é considerado um dos maiores capoeiristas do país. Ele criou o “jogo miudinho”, um estilo distinto da modalidade brasileira, que é símbolo da resistência dos escravos e em 2014 se tornou Patrimônio Imaterial da Humanidade. 

O mestre já gravou discos, participou de programas de televisão famosos e recebeu o título de Cidadão Paulistano, concedido pela Câmara de Vereadores de São Paulo. 

Suassuna vive hoje em um sítio apelidado de “Sítio do Vovô” no distrito de Parelheiros, em São Paulo. De acordo com as pessoas ouvidas pela Pública, que prestaram depoimento também à promotoria do Ceará, ele utilizaria o espaço – a pelo menos 30 km do centro da cidade – para abusar sexualmente dos alunos. 

“Eu vi cenas deprimentes do Suassuna. Eu vi ele beber com meninos, crianças, e depois ir para a cama de casal com eles”, afirmou à Pública Bernardo*, ex-aluno. Ele relata ter flagrado Suassuna tentando abusar de um menino durante evento de capoeira em Caraguatatuba (SP), em 1971. “Ele pulou em cima do moleque, fingindo de bêbado, e o cara empurrando e ele em cima”, relatou indignado. “Ele abusou de muitos meninos, estragou a vida de muitos jovens. Precisa pagar por isso”, disse Bernardo, que conhece Suassuna desde o início de sua carreira na capoeira. 

Saulo* diz ter vivido uma situação parecida aos 14 anos, quando treinava com Suassuna. Ele estava havia cerca de três meses no Cordão de Ouro quando o mestre o convidou para dormir em sua casa. À época, em 1978, Suassuna morava em um apartamento perto de sua academia, na capital paulista. “Era uma sexta-feira que treinamos, e teria um treino no sábado. Aí o mestre [Suassuna] falou: ‘Ah, como tem treino no sábado, dorme lá em casa’. Eu estava com um amigo.”  

De acordo com ele, o mestre pediu que os três dormissem juntos em sua cama de casal. Durante a noite, diz Saulo – que deitou entre Suassuna e o amigo –, o mestre tentou tocar sua coxa três vezes. Incomodado com a situação, ele aproveitou que a chave do carro do instrutor estava em cima da mesa e foi dormir nele. 

Vídeo encorajou denúncias

As primeiras denúncias de violência sexual no Cordão de Ouro vieram à público em 2019, depois que um vídeo do mestre Espirro Mirim se masturbando em um ônibus em São Paulo foi parar nas redes sociais – a reportagem teve acesso ao vídeo mas decidiu não publicá-lo por seu conteúdo explícito. 

A Pública conversou com o jovem que fez as imagens. Ele não imaginava a repercussão que elas causariam, pois não conhecia o homem nem sabia da sua fama na capoeira. 

Pedro* contou que assim que entrou no coletivo se sentiu desconfortável com o olhar insistente de Espirro Mirim. “Passei para o fundo do ônibus e me assentei no último banco. Logo em seguida, ele [Espirro Mirim] saiu do lugar que estava e veio atrás. Foi quando ele começou a se tocar. Eu não estava acreditando no que estava acontecendo e que só eu estava conseguindo ver aquilo. O ônibus estava com muitas pessoas e ninguém conseguia ver. A única saída que eu tive foi gravar.” 

O jovem, à época com 18 anos, chegou a registrar um boletim de ocorrência no 33° Distrito Policial, no bairro Vila Mangalot, na capital paulista. “Pra mim, parece que eles [os policiais] nem deram a mínima”, recorda. “E o que mais constrange uma vítima no meio disso tudo não é simplesmente o ato, o fato, mas você querer buscar uma ajuda e você não conseguir porque as pessoas não demonstram que podem te ajudar e que você pode contar com elas.” 

Segundo Pedro, depois de ter postado o vídeo do ônibus, outras vítimas de Espirro Mirim começaram a procurá-lo pelas redes sociais e por WhatsApp. “Não só aqui no Brasil como em vários lugares do mundo. Várias pessoas que ele levou para campeonatos e que na hora de dormir ele tocava.” 

“Ele era meu guardião”

Também foi em 2019 que Aline Hidalgo de Faria e Jorge* decidiram denunciar ao Ministério Público de São Paulo (MPSP) o antigo professor, Lúcio Flávio Campos Torres, conhecido como mestre Quebrinha, por estupro e abusos sexuais. 

Aline tinha apenas nove anos quando começou a frequentar a academia da Cordão de Ouro, em Taubaté. Quebrinha, líder da unidade, se tornou uma figura paterna para a menina, filha de pais separados. “Ele era meu guardião.” Ela acompanhava o mestre em eventos e apresentações e dedicava muitas horas aos treinos, porque queria seguir na carreira de capoeirista no exterior – sonho que Quebrinha incentivava.

As rodas de capoeira aconteciam na academia, e os alunos mais dedicados eram convidados ao sítio do mestre, em Taubaté. Lá ele mantinha um projeto social chamado Ginga no Cais, que ensinava capoeira a crianças e adolescentes de comunidades vulneráveis. 

Dois ex-alunos abriram processos contra o mestre Quebrinha por abusos sexuais e estupro

Era comum os alunos mais promissores, como Aline, ajudarem na organização dos treinos e até na limpeza da pequena propriedade rural. Então a adolescente, na época com 18 anos, não estranhou o convite para confeccionar berimbaus em um fim de semana. “Quando cheguei, percebi que estava sozinha com ele.” Ela conta ter sido estuprada pelo mestre nesse dia. “Ele me levou para o quarto, onde estava um computador, pedindo ajuda para aprender a usar a internet. Só desconfiei quando fechou a porta. Fiquei sem reação. Dizia que não queria, mas ele não parou.”

Era 2012. Aline diz que por medo e vergonha não contou a ninguém sobre a violência que tinha sofrido. Continuou indo à capoeira, que via como um compromisso profissional, mas não se sentia segura nos treinos. “Vestia um short e um maiô porque achava que usar mais camadas de roupas tornaria mais difícil de tirar. Me esquivava dele o tempo todo.” Ela diz que mestre Quebrinha passou a ameaçá-la. “Dizia que eu devia ficar calada porque conhecia minha família, sabia onde eu morava. Estava em um estresse tão grande que cheguei a fugir de casa. Saí sem nada, só com o celular. Fui parar em Tremembé (SP) [aproximadamente 8 km de Taubaté] andando.” 

A jovem confidenciou o caso a outro professor do Cordão de Ouro, esperando receber apoio, mas ouviu que ela provavelmente “tinha provocado a situação”. Os traumas e as perseguições fizeram Aline cair em forte depressão, e ela chegou a tentar suicídio. Em 2013, decidiu se mudar para o Rio de Janeiro, tentando refazer a vida. “Queria voltar para a capoeira, mas não conseguia. Só em 2016 encontrei um grupo que me fez sentir segura. Um ano depois, o filho de Quebrinha apareceu em uma roda e ficou olhando meu treino. Isso me desestabilizou demais.”

Quebrinha voltou a rondar Aline algum tempo depois, quando ela sofreu um acidente que causou traumatismo facial e perda de memória temporária. “Fui para a casa da minha família, em Taubaté, durante o tratamento, e ele viu aí uma oportunidade. Fez um fake [conta falsa] no Facebook para tentar uma reaproximação, mas aos poucos fui lembrando de tudo.” Em 2019, Aline se sentiu encorajada a denunciar o ex-professor com outro ex-aluno, Jorge*, que frequentava os treinos na mesma época. 

Embora as denúncias de crimes sexuais tenham sido apresentadas simultaneamente por eles, contra a mesma pessoa, os casos resultaram em inquéritos policiais distintos. Sem considerar o silenciamento em razão das ameaças, o caso de Aline foi arquivado pela Justiça de São Paulo em outubro do ano passado, sob alegação de prescrição do crime. “[…] o delito praticado em setembro do ano de 2012, data em que a ofendida era maior de 18 anos de idade […] a representação deveria ter ocorrido em meados de março de 2013, previamente à denúncia”, diz um trecho da decisão. 

“É frustrante. Eu me prejudiquei completamente, atrasei minha faculdade por causa do que aconteceu comigo”, desabafou Aline.

As denúncias de estupro e abusos feitas por Jorge também foram arquivadas.

Mestre teria se aproximado da mãe para abusar do filho

Aos cinco anos, Jorge começou a ter aulas de capoeira com o mestre Quebrinha, na academia da Cordão de Ouro de Taubaté. Quando os pais dele se separaram e a mãe, Andressa*, foi diagnosticada com lúpus, o professor se aproximou da família. “Parecia acolhimento. Ele dizia que Jorge era como um filho”, disse Andressa à Pública. 

Segundo Andressa, o mestre fazia apresentações de capoeira no exterior e prometia viagens a Jorge. Ela diz que o menino se tornou uma espécie de braço-direito de Quebrinha, a quem ele confiava a academia quando viajava, mesmo tendo Jorge apenas 15 anos. O mestre se aproximou também de Andressa, com quem teve um relacionamento amoroso por quatro anos. 

Quando tinha 11 anos, em 2011, Jorge se hospedou no sítio de Quebrinha com outros alunos e mestres, que participaram de um batizado de capoeira. Em depoimento ao Ministério Público de São Paulo (MPSP), ao qual a reportagem teve acesso, ele contou que, nesse dia, o mestre o convidou para se deitar numa rede e passou a tocar suas partes íntimas. “Enquanto lhe acariciava, Lúcio [Quebrinha] dizia que gostava da vítima como um filho, que só queria seu bem e que o que estava fazendo era porque ele queria seu melhor”, diz um trecho do depoimento de Jorge. O estudante não quis conceder entrevista porque prefere evitar o assunto, mas autorizou a reprodução dos registros policiais com a ressalva de que sua identidade fosse protegida.

Jorge continuou frequentando os treinos com a presença de outros alunos, mas disse, em depoimento ao MPSP, que o mestre sempre arrumava uma forma de ficar a sós com ele e usava o relacionamento amoroso com Andressa e a confiança dela para fazer o garoto dormir frequentemente no sítio. Ainda segundo o depoimento, Quebrinha teria usado uma dessas oportunidades para o violentar sexualmente.

À época, o estudante tinha apenas 14 anos. De acordo com seu relato, os estupros e abusos se estenderam por toda a adolescência. Jorge diz que, quando tentava se desvencilhar, o mestre se tornava violento. O ciclo só se encerrou quando, já com 17 anos, ele parou de ir aos treinos no sítio. Quebrinha ainda namorava a mãe dele e frequentava sua casa. 

“Nessa época, Lúcio começou a sugerir que morássemos juntos. Quando contei da decisão, vi meu filho, sempre calmo, se desestruturar. Só ali percebi que havia alguma coisa errada”, conta Andressa. “Quando ele [Jorge] finalmente me contou, nunca senti uma dor tão grande na vida. Ele [Lúcio] chantageava. Dizia ao meu filho que não podia me contar nada porque minha saúde era frágil.” 

O inquérito policial na 1a Vara Criminal da Comarca de Taubaté, que apurava as denúncias de estupro feitas por Jorge contra Lúcio, foi arquivado em outubro de 2019. O promotor de justiça criminal de Taubaté, Osvaldo de Oliveira Coelho, alegou que o “conjunto probatório revela mais dúvidas do que certezas”, embora “diversas testemunhas corroborem com o depoimento do ofendido”. O promotor considerou que os depoimentos das testemunhas eram falhos porque “nenhuma delas presenciou os fatos”. Disse também não haver comprovação de que Jorge não tenha consentido com a prática sexual. 

“Tem que fazer a linha”

Wilton Rocha, ou mestre Caboclin, também relatou à Pública ter sido vítima do mestre Espirro Mirim, aos 16 anos. Ele treinou capoeira no Cordão de Ouro dos 13 aos 22 anos, onde se tornou professor. 

Wilton contou que o instrutor sempre convidava os alunos para dormir em sua casa, mas ele nunca ia, apesar de não acreditar nas conversas que circulavam no Cordão de Ouro de que Espirro Mirim abusava dos alunos. Sua admiração pelo professor – que tinha livre acesso à sua casa na época – era tão grande que, segundo ele, “brigava com quem dizia que o mestre gostava de abusar de crianças”. 

Uma noite, no entanto, Wilton teria aceitado o convite para pernoitar na casa de Espirro Mirim. Naquele dia, vários outros capoeiristas também foram, segundo ele. Ele lembra que foi dormir no chão da sala, quando o mestre se deitou ao seu lado e tentou tocá-lo. “Ele foi logo pondo a mão mesmo. Esperou todo mundo dormir, ficar escuro, e foi logo querendo colocar a mão no meu órgão genital. Eu dei um soco nele.”

Ele lembra que tinha ido deitar “cismado” porque horas antes um colega havia relatado ter sido abusado por Espirro Mirim no banheiro.

Depois de ter contado o episódio ao pai na manhã seguinte, Wilton Rocha se afastou do mestre, mas continuou no Cordão de Ouro e, aos 22 anos, chegou sua hora de se tornar professor. Foi quando Espirro Mirim lhe teria dito que, para ganhar o cordão de mestre, “tinha que ‘fazer a linha’”. “Eu não aceitei ‘fazer a linha’ com ele, que era para passar uma noite com ele lá.” Depois disso, Wilton decidiu sair do Cordão de Ouro. 

O capoeirista Joaquim* acredita que até hoje não ganhou a corda de professor – que é a graduação na capoeira – porque não quis ser submetido a sexo com Espirro Mirim. Ele disse que já tem 12 anos de corda azul, que é de instrutor. “Pessoas que eu ensinei a gingar são mais formadas que eu hoje em dia.” A sua aproximação com Espirro Mirim, segundo Joaquim, foi parecida com a descrita por outras vítimas. Os dois estavam no mesmo evento e, na hora de dormir, “ele [Espirro Mirim] veio para cima com tudo, querendo alguma coisa”, afirmou Joaquim, que tinha 17 anos à época. 

A Pública ouviu ainda outras denúncias contra os mestres Espirro Mirim e Suassuna, todas parecidas: alunos, geralmente menores de idade em situação de vulnerabilidade social e que pretendiam seguir carreira na capoeira, eram assediados, sofriam abusos ou eram levados a acreditar que só viajariam e se tornariam professores se aceitassem entrar para o esquema de exploração sexual.

Silêncio na capoeira 

O silêncio no Cordão de Ouro diante das denúncias de violência sexual praticadas pelos mestres foi abordado por todas as pessoas com as quais a Pública conversou. “As pessoas que eu procurei falavam: ‘O mestre é doido, não liga para isso aí, não, não mexe com isso, não’”, contou Gabriel, referindo-se ao mestre Espirro Mirim. Ele afirma que passou a sofrer ameaças de outros membros do grupo depois de ter prestado depoimento ao MPCE.

Já Joaquim relatou ter falado com o mestre Suassuna sobre os abusos praticados por Espirro Mirim contra ele. “Ele ficou calado e me disse que o Espirro me devia desculpas”, lembra. 

Aluno e professor do Cordão de Ouro por aproximadamente 15 anos, Thiago Ferreira afirmou que depois de ter visto o vídeo de Espirro Mirim se masturbando no ônibus, alertou aos pais dos alunos que tivessem cuidado com os filhos. “Então Suassuna me procurou para tentar me convencer a não falar mais. Ele inclusive insinuou que o silêncio poderia garantir minha graduação como mestre. Foi quando decidi sair”, contou à Pública, acrescentando que deixou o grupo em 2019. A partir de então, Thiago afirma que passou a sofrer perseguição e ameaças de membros do grupo. “Já fui inclusive ameaçado de morte”, denuncia. 

“A capoeira é uma luta contra a opressão. Não se pode lutar contra a opressão racista e silenciar contra outras formas de opressão, como a sexista”, diz Christine Zonzon, do Marias Felipas – Grupo de Estudos e Intervenção Feminista na Capoeira. Ela ressalta que os casos de violência sexual na capoeira não têm relação com a prática tradicional, mas com estruturas de poder e machismo. “O corporativismo, que muitas vezes existe na estrutura hierárquica dos grupos, permite que os crimes sejam abafados e que lideranças se coloquem como intocáveis.”

Presidente da União das Federações da Capoeira do Brasil – UFCB, Hugo Narciso, mestre Gavião, ressaltou que a “capoeira é uma luta de expressão e de liberdade”. “Essa liberdade não pode ferir o próximo”, disse. Para ele, é importante valorizar o trabalho das entidades representativas da capoeira para prevenir abusos. “A Constituição Federal diz que as filiações não devem ser obrigatórias. No entanto, as confederações e federações de capoeira precisam ser fortalecidas, até por meio de criação de leis, para que possam atuar mais junto de grupos e escolas, com uma supervisão orientadora.”

Outro lado

Procurado pela reportagem, Reinaldo Ramos Suassuna, o mestre Suassuna, diz que nunca integrantes do Cordão de Ouro o procuraram para denunciar abusos sexuais envolvendo mestres do grupo. Sobre as denúncias de abuso sexual envolvendo seu nome, afirmou que “sempre tem esses boatos” e acrescentou: “Porque eu dou aula para muitos jovens, sou muito envolvido com eles, eles comigo, então, pessoal tem essa impressão”, justificou, acrescentando que não poderia falar mais sobre o assunto e que iria procurar seu advogado. Posteriormente, desligou o telefone. 

Após tomar conhecimento das investigações do Ministério Público do Ceará e antes da publicação da reportagem, Suassuna gravou um vídeo com uma mensagem direcionada aos membros do Cordão de Ouro, ao qual a Pública teve acesso.  “Diante de acontecimentos que vocês já vinham ouvindo, eu venho aqui só dizer que eu agradeço todo o apoio de vocês, de todos que têm me acompanhado nesses eventos da Cordão de Ouro, nos eventos do grupo, os filiados do grupo,  e dizer também que vocês não se acanhem em montar o seu próprio trabalho, o seu logo, se todos esses acontecimentos estiverem incomodando vocês”, disse. 

“Não vou ficar nada, nada aborrecido. Continuo sendo amigo de vocês, mas se tiver atrapalhando o trabalho de vocês, por favor, monte um logo e um novo nome e siga em frente”, completou. 

Também foi compartilhado com membros do grupo, no domingo (30/05), uma “nota oficial” da Associação de Capoeira Cordão de Ouro, assinada por Suassuna, sobre as investigações do MPCE. “De antemão, mesmo sem conhecimento do referido processo que estaria ocorrendo em segredo de justiça, o Grupo repudia de forma veemente toda e qualquer prática relacionada à pedofilia e, no caso de eventual notificação, se coloca à disposição das autoridades para qualquer esclarecimento”, diz o texto.  Na nota, o grupo também informa que “os supostos envolvidos estarão com suas atividades suspensas até o final das apurações”.  

A reportagem tentou falar com Marcos Antônio Lopes de Souza, o mestre Espirro Mirim, em dois telefones, mas não obteve retorno.

Procurado, Lúcio Flávio Campos Torres, o mestre Quebrinha, informou que passaria os questionamentos para o seu advogado, mas posteriormente não atendeu mais a reportagem e nem respondeu as mensagens enviadas.  

Eliomar Vale de Lima, o mestre Paiakan, negou as acusações e disse que nunca foi comunicado oficialmente de investigações em curso na Justiça. 

Os crimes de violência sexual contra crianças e adolescentes

Tanto o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), quanto a Constituição Federal e o Código Penal brasileiro são dispositivos legais de combate à violência sexual contra crianças e adolescentes. Segundo o Código Penal, ter relação sexual ou praticar ato libidinoso com menor de 14 anos é estupro de vulnerável, crime com pena de oito a 15 anos de reclusão. A exploração sexual ocorre quando há algum tipo de troca, que pode ser dinheiro, presentes ou viagens, por exemplo. As penas nesses casos variam de quatro a dez anos de prisão. 

Em seu artigo 227, a Constituição Federal diz que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-lo a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

Já o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ressalta: “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punindo na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.”

Segundo a ANDI (Agência de Notícias de Direitos da Infância), “a legislação é taxativa: qualquer ato sexual envolvendo criança ou adolescente é considerado crime e quem deve estabelecer o limite de uma relação que possa resultar em prática sexual é o adulto. Em nenhuma circunstância a situação de vulnerabilidade pode ser relativizada.” 

Para denunciar casos de abuso, violência ou exploração sexual de crianças e adolescentes procure qualquer delegacia, o Conselho Tutelar ou CREAS de sua cidade. Vítimas ou testemunhas também podem denunciar anonimamente casos de violência pelo Disque 100.

*Os nomes foram trocados a pedido dos entrevistados

Ilustração: Guilherme Peters/Agência Pública
Ilustração: Guilherme Peters/Agência Pública - Foto: Reprodução/Facebook
Ilustração: Guilherme Peters/Agência Pública - Foto: Reprodução/Facebook
Ilustração: Guilherme Peters/Agência Pública - Foto: Reprodução/Facebook

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