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Documentos obtidos pela Pública comprovam que Saúde e Exército combinaram distribuição de 2,5 milhões de comprimidos pelo país nas gestões de Mandetta, Teich e Pazuello

Reportagem
24 de junho de 2021
13:17
Este artigo tem mais de 2 ano

O Ministério da Saúde pediu diretamente ao da Defesa a distribuição da cloroquina produzida pelo Exército e coordenou o envio do medicamento a todo o Brasil, revelam documentos inéditos a que a Agência Pública teve acesso.

Segundo ofícios que a reportagem obteve por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), o  Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde (DAF/SCTIE) pediu em março, abril, julho e agosto de 2020 que o Exército enviasse cloroquina a todos os estados brasileiros, questionou a produção de mais comprimidos e ainda ordenou que a distribuição do remédio ocorresse em caráter de emergência e urgência.

Ao todo, as trocas de mensagens entre Saúde e Defesa requisitaram o envio de cerca de 2,5 milhões de comprimidos de cloroquina. O número é próximo ao que a Pública revelou ter sido distribuído pelo governo federal em um ano de pandemia.

Inicialmente, a distribuição de cloroquina a pedido do Ministério da Saúde foi indicada para atender pacientes hospitalizados. Contudo, após a posse de Eduardo Pazuello, as requisições passaram a indicar o medicamento para o tratamento precoce da Covid-19.

Governo organizou primeira distribuição de cloroquina no SUS uma semana após Exército ter fechado contrato

O documento mais antigo a que a Pública teve acesso foi assinado em 27 de março de 2020 pelo Ministério da Saúde, apenas uma semana após o Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército (LQFEx) ter iniciado o processo de contratação de insumos para a produção de cloroquina.

Na nota, a pasta descreveu os critérios do que chamou de “a primeira distribuição de cloroquina na rede SUS”. O governo definiu que esse envio seria calculado de acordo com o número de casos de Covid-19 do boletim epidemiológico do dia 25 de março e que já se deveria definir um “estoque de reserva” suficiente para atender quem já estivesse hospitalizado e também novos casos. No ofício, o Ministério da Saúde definiu o uso da cloroquina como “terapia adjuvante” no tratamento de formas graves da Covid-19 em pacientes hospitalizados.

O LQFEx iniciou o processo para três dispensas de licitação para a aquisição de cloroquina no dia 20 de março, que resultou na compra de 207 kg dos insumos da empresa Sul Minas Suplementos e Nutrição. As dispensas de licitação tinham como objetivo a “aquisição emergencial de insumos para a produção de cloroquina a fim de tratar o COVID-19”. A assessoria do Exército divulgou na época que o aumento na produção do medicamento se deu pelo seu uso contra o coronavírus. Em 2020, o LQFEx fechou ainda mais duas dispensas de licitação para produção de cloroquina, uma em 6 de maio e outra no dia 20 do mesmo mês.

Em março de 2020, o Ministério da Saúde definiu critérios para o envio da cloroquina produzida pelo Exército e organizou sua distribuição via SUS

A nota do Ministério da Saúde, que se baseou nos estudos do pesquisador francês Philippe Gautret – ligado ao microbiologista francês Didier Raoult –, apontou a cloroquina como “um tratamento de baixo custo, de fácil acesso e também facilmente administrada” e ressaltou a “capacidade nacional de produção de cloroquina pelos laboratórios públicos brasileiros em larga escala”. A pesquisa de Gautret, publicada em 19 de março e focada em hidroxicloroquina, foi posteriormente questionada: parecer científico da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI) apontou que o estudo teve poucos participantes, três esquemas de tratamento diferentes e sem um grupo placebo (que receberia um comprimido sem efeitos em vez de hidroxicloroquina). Além disso, houve abandono de participantes sem a inclusão deles nos resultados finais, e o autor não forneceu os dados brutos do estudo, o que aumentou a desconfiança na qualidade do experimento. 

O documento do Ministério da Saúde apontou os riscos de retinopatia (problemas na retina) e distúrbios cardiovasculares pelo uso da cloroquina, afirmou que o tratamento deveria seguir regras estritas e contraindicou a automedicação. O ofício ainda destacou que “essa medida poderá ser modificada a qualquer momento, a depender de novas evidências científicas”.

A nota foi assinada por Sandra de Castro Barros, diretora do DAF/SCTIE, e Denizar Vianna de Araújo, secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde (SCTIE). Na época, Luiz Henrique Mandetta era o ministro da Saúde.

A Pública procurou o Ministério da Saúde e a diretora, mas não obteve resposta até a publicação da reportagem. A assessoria do ex-ministro Mandetta também foi questionada, sem retorno.

A reportagem  procurou também a assessoria do Exército, que respondeu que não compete ao LQFEx “deliberar ou decidir a respeito da produção de medicamentos, tampouco avaliar sua demanda”. O órgão confirmou que as quantidades de cloroquina produzidas “foram distribuídas de acordo com as pautas de distribuição dos Ministérios da Saúde e da Defesa”.

Portaria do Ministério da Defesa no início da pandemia definiu que laboratórios farmacêuticos militares deveriam apoiar as ações dos órgãos de saúde – produção de cloroquina foi recorde histórico

Em abril, Ministério da Saúde pediu envio de 830 mil comprimidos de cloroquina para todos os estados brasileiros

Após a primeira nota, o Ministério da Saúde enviou um ofício ao Exército ainda na gestão de Mandetta. Em 13 de abril, Alvimar Botega, coordenador-geral do DAF/SCTIE, escreveu ao coronel Haroldo Paiva Galvão, diretor do LQFEx, dando instruções de como a cloroquina deveria ser distribuída a todo o Brasil. Segundo o documento, os 26 estados do país e o Distrito Federal deveriam receber 830 mil comprimidos de cloroquina produzidos pelo Exército.

O comunicado, que também foi assinado pela diretora do DAF/SCTIE, Sandra de Castro Barros, foi resposta a uma solicitação do coronel Paiva Galvão sobre qual seria a pauta de entrega da cloroquina. Na época, o Exército informou ao Ministério da Saúde que havia cerca de 1 milhão de comprimidos em estoque.

Segundo dados enviados pelo Exército à Pública, em abril de 2020 o LQFEx já havia produzido 1.251.030 comprimidos de cloroquina. Mais comprimidos seriam produzidos apenas em maio, e uma terceira leva em junho.

Nesse ofício, o Ministério da Saúde pediu ao coronel do Exército que a cloroquina fosse entregue aos almoxarifados estaduais de medicamentos. Segundo o governo, a quantidade foi calculada de acordo com o número de casos de Covid-19, e definiu uma quantidade mínima mesmo para os estados que registravam poucos casos da doença. A Saúde solicitou que os militares informassem o saldo restante de cloroquina para uma nova distribuição.

O coronel Paiva Galvão, diretor do LQFEx desde maio de 2018, foi o responsável por assinar todas as dispensas de licitação para compra de insumos na produção de cloroquina. Ele saiu do cargo em janeiro deste ano, quando foi substituído pelo coronel Anderson Berenguer e nomeado gerente do Departamento de Saúde e Assistência Social da Secretaria de Pessoal, Ensino, Saúde e Desporto da Secretaria-Geral do Ministério da Defesa. Antes disso, o militar trabalhou por um curto período no Hospital das Forças Armadas, em Brasília, desde fevereiro de 2018.

O coronel Paiva Galvão chegou a ser incluído na lista de possíveis convocados a depor na CPI da pandemia do Senado Federal, mas sua convocação ainda não foi aprovada pelos senadores.

A Pública apurou que, em junho de 2020, deputados federais requisitaram informações sobre a produção de cloroquina ao coronel Paiva Galvão. Em julho, a assessoria do Ministério da Defesa respondeu que a produção foi amparada pela Portaria nº 1.232, de 18 de março de 2020, que determinou disponibilizar “os laboratórios farmacêuticos militares para apoiar as ações dos órgãos de saúde, quando demandados, sem prejuízo para o Sistema Militar de Saúde”.

Governo enviou cloroquina “emergencial” para o Amazonas no primeiro pico da pandemia

No final de abril, quando na região Norte e especialmente no estado do Amazonas se iniciou o primeiro pico de casos e mortes pela covid-19, o Ministério da Saúde enviou um terceiro comunicado ao Exército. Dessa vez, o governo orientou que o estoque de cloroquina fosse encaminhado estritamente aos estados do Norte, exceto Pará e Tocantins.

De acordo com o pedido do ministério de 28 de abril, feito novamente pela DAF/SCTIE ao coronel Paiva Galvão, um estoque de 170 mil comprimidos deveria ser enviado aos almoxarifados dos estados da região. O pedido ressaltou “Considerando que o estado do Amazonas é hoje o estado com maior incidência de casos da covid-19 da Região Norte, solicitamos que a entrega no estado supracitado seja realizada em caráter emergencial”. O pico de óbitos por Covid-19 em 2020 no Amazonas ocorreu logo após o pedido de envio, entre os dias 6 e 15 de maio.

No comunicado, o governo ainda questionou o LQFEx sobre a possibilidade de compra de insumos internacionais para produção de mais cloroquina para fornecer ao Ministério da Saúde. Na época,  Nelson Teich era o ministro da Saúde.

Segundo a Pública apurou, de fato o Ministério da Saúde tratou de importação de insumos para produção de cloroquina. De acordo com documento assinado pelo Ministério das Relações Exteriores, a embaixada brasileira em Nova Délhi, na Índia, intermediou o processo consultando três empresas do país sobre a disponibilidade do produto: Srini Pharmaceuticals, Zydus Cadila e Alcon Biosciences PVT. Apenas a Alcon informou ter disponibilidade para envio de 3 toneladas de difosfato de cloroquina em junho de 2020. O comunicado foi direcionado a Fernanda Martins Torres Matsumoto, na época chefe substituta da Assessoria de Assuntos Internacionais em Saúde e membro do Grupo de Trabalho de Apoio aos Brasileiros no Exterior no âmbito da pandemia.

A troca diplomática não informa se houve de fato a importação de cloroquina do país e menciona que havia a oferta anterior da Índia de fornecer hidroxicloroquina ao Brasil. Documentos revelados pela agência Fiquem Sabendo já haviam mostrado que o governo brasileiro intercedeu junto ao governo da Índia pela importação do medicamento. Procurados, o Ministério das Relações Exteriores e o da Saúde não responderam se o Brasil importou cloroquina da Índia.

Na gestão de Pazuello, os pedidos do Ministério da Saúde para que o Exército enviasse cloroquina foram todos em caráter de urgência

Com Pazuello, Ministério da Saúde pediu à Defesa 1,5 milhão de comprimidos de cloroquina para tratamento precoce

Em 7 de julho, já na gestão do general Eduardo Pazuello, o Ministério da Saúde acertou a maior distribuição de cloroquina registrada nos comunicados com o Exército: mais de 1 milhão de comprimidos.

Dessa vez, diferentemente dos comunicados anteriores, o documento cita o uso de cloroquina para “manuseio medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da covid-19”. Em 20 de maio de 2020, o Ministério da Saúde publicou a Nota 09/2020, que incluiu a cloroquina nas recomendações de tratamento precoce de pacientes com Covid-19. A nota foi publicada após a saída de Teich do governo. 

O pedido, mais uma vez assinado pela DAF/SCTIE, comunicou ao Ministério da Defesa que viabilizasse junto ao LQFEX a distribuição da cloroquina em quantidades indicadas para estados e capitais do país. O estado que mais deveria receber segundo o pedido do governo era o Rio Grande do Sul, com mais de 323 mil comprimidos. Assim como na requisição anterior, o Ministério da Saúde alegou urgência no envio de cloroquina: “Solicita-se que as distribuições sejam realizadas em caráter de emergência”.

Com Pazuello, os comunicados da Saúde passaram a ter outro destinatário: o general Manoel Luiz Narvaz Pafiadache, ex-secretário de Pessoal, Ensino, Saúde e Desporto do Ministério da Defesa. Pafiadache, além de ter proximidade com militares que atuam na Saúde, foi superintendente de administração do Instituto Hospital de Base (IHBDF), em Brasília.

Ainda em julho, no dia 31, o Ministério enviou um novo comunicado ao general Pafiadache, dessa vez coordenando o envio de mais de 443 mil comprimidos de cloroquina para Alagoas, Bahia, Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. No texto, a Saúde afirma não ter mais estoque do medicamento e pede que o LQFEx envie o que possuía de pronta entrega, reforçando mais uma vez que as distribuições fossem feitas em caráter de urgência.

O comunicado estipulou não apenas a quantidade que cada estado receberia, mas também os municípios. O que mais deveria receber, segundo os cálculos do governo, seria Vitória da Conquista, na Bahia.

A Saúde emitiu ainda um terceiro comunicado na gestão Pazuello, de 7 de agosto, organizando a distribuição de mais 38,5 mil comprimidos de cloroquina, dessa vez para cidades do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Rio de Janeiro. A pasta pediu novamente urgência no envio do medicamento, e, assim como nos pedidos anteriores, o comunicado foi direcionado ao general Pafiadache.

Esse último pedido na gestão Pazuello também menciona que a cloroquina seria utilizada no tratamento precoce de pacientes com Covid-19. O texto, assinado pelo diretor substituto do DAF/SCTIE, Alexandre Martins de Lima, novamente ressaltou que o Ministério não possuía estoque de cloroquina.

A reportagem questionou o Ministério da Saúde sobre quando foram a primeira e a última solicitação da pasta para a Defesa referente à distribuição de cloroquina, mas não obteve resposta até o momento.

Bruno Fonseca/Agência Pública
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Senado Federal
Bruno Fonseca/Agência Pública
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