Jovens católicos seguram cruzes, terços, imagens de santos e cartazes, e rezam pelo fim do aborto em frente ao Hospital Pérola Byington em São Paulo, considerado referência no serviço de abortamento legal no Brasil. Eles fazem parte de uma espécie de cruzada internacional chamada “40 dias pela vida”, que começou no último dia 22 com mobilizações em alguns estados brasileiros. “O aborto é o maior destruidor do amor e da paz”, diz a freira Maria Âncora da Confiança, 19 anos, formadora do noviciado do Instituto do Senhor e das Virgens de Matará, um dos grupos que participam da manifestação.
A cena em frente ao hospital reprisa outros ataques a serviços de saúde que realizam abortamento legal no Brasil, protagonizados por grupos religiosos fundamentalistas. No governo Bolsonaro, “a mentalidade conservadora religiosa foi institucionalizada, mesmo com uma Constituição que garante a laicidade do Estado”, argumenta a psicóloga e mestra em Ciências da Religião, Rosângela Talib, coordenadora da ONG Católicas pelo Direito de Decidir, um grupo feminista de origem latinoamericana com atuação internacional e que está no Brasil há 23 anos. Ela diz que os avanços do conservadorismo e do fundamentalismo religioso desde as últimas eleições fizeram o Brasil andar para trás, enquanto outros países da América Latina progrediram nos direitos reprodutivos e sexuais.
Na Argentina e no México, por exemplo, a interrupção da gravidez foi legalizada recentemente, durante a pandemia. Por aqui, um congresso conservador, ancorado no apoio do Executivo, aproveita a crise de saúde para tentar emplacar pautas antiaborto. Bolsonaro já disse inclusive que “não haverá aborto no Brasil” enquanto for presidente. Para tanto, ele conta com apoio da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, a principal porta-bandeira da militância autointitulada ‘pró-vida’. Esses grupos tentam não apenas impedir avanços legislativos, mas regredir direitos, impedindo o acesso aos serviços mesmo quando o abortamento é permitido pela lei brasileira, ou seja, em situações de violência sexual, de risco de vida para a gestante e/ou de anencefalia do feto, como no caso da menina capixaba que quase foi impedida de interromper uma gravidez aos 10 anos ou ainda no caso de outra menina, de 15 anos, que também foi perseguida e teve o aborto legal negado por uma juíza, como mostrou essa reportagem da Agência Pública.
“Este é um governo que pensa a família como homem, mulher e filhos, uma visão patriarcal da sociedade, que não trata dessa questão (do aborto) como sendo de saúde pública”, comentou Rosângela em entrevista à Pública. Conversamos com ela por ocasião do Dia Latino Americano e Caribenho pela Descriminalização e Legalização do Aborto, celebrado nesta terça-feira (28). Para as Católicas pelo Direito de Decidir, é preciso “superar uma cultura conservadora religiosa que fere diretamente a autonomia das mulheres e defender o Estado Laico como “base fundamental para uma sociedade democrática”. Na data marco para o calendário feminista, elas lançam a campanha #LegalizarParaAvançar pela descriminalização do aborto e em resposta aos projetos de lei do governo federal e de administrações municipais que tentam dificultar o acesso ao procedimento, garantido por lei desde 1940.
México e Argentina legalizaram recentemente o aborto. No Brasil, a prática ainda é crime. Mesmo nos casos onde o abortamento é permitido por lei, como em situações de violência sexual, brasileiras têm seu direito legal negado e/ou ameaçado. Você diria que, enquanto a América Latina avança na descriminalização do aborto, o Brasil anda para trás?
A gente teve avanços muito importantes no México e na Argentina, também conquistas significativas nas legislações do Chile, da Bolívia e de outros países da região. Na América Latina o debate sobre o aborto tem sido visto como uma questão de direitos humanos e reprodutivos. Mas, ao contrário de outros países latinoamericanos, aqui no Brasil o que a gente tem são parlamentares federais, estaduais e municipais insituindo semanas de combate ao aborto, celebrando o dia do nascituro. Estamos indo no sentido contrário dos avanços, vivendo retrocessos.
Podemos dizer que estamos vivendo o pior momento para a descriminalização do aborto no Brasil?
Existe atualmente uma pressão do governo federal, via Ministério da Saúde e do Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos, de Damares Alves sobre o acesso ao aborto. Este é um governo que pensa a família como homem, mulher e filhos, uma visão patriarcal da sociedade. Não trata essa questão como sendo de saúde pública. As pessoas têm o direito de ser contrárias ao aborto, mas não de impor sua visão como política pública. Isso fere a laicidade do Estado. A maternidade tem que ser de livre escolha, não uma imposição.
Contudo, apesar de todos os retrocessos em termos de políticas federais, a gente ainda tem serviços de saúde e profissionais comprometidos com a saúde da mulher. Existe um sistema que foi implementado e políticas que já existiam, que não pode ser desfeito de uma hora pra outra. São políticas de acesso a contraceptivos, ao aborto legal, profissionais e serviços comprometidos.
Vou insistir porque você falou do ativismo antiaborto do governo de Bolsonaro, com a ministra Damares e outros atores. Vimos grupos fundamentalistas religiosos fazendo orações e tentando invadir hospitais para impedir abortos legais na pandemia. A própria pandemia dificultou ainda mais o acesso aos serviços de abortamento. Não acha que o momento é muito ruim para as mulheres?
É um momento bastante crítico, realmente. A gente teve um comprometimento significativo dos serviços de saúde na pandemia. Muitas maternidades foram fechadas, houve uma significativa desestruturação do sistema de atendimento, tudo virou de cabeça pra baixo, por assim dizer.
Por outro lado, a pandemia também favoreceu a criação do primeiro serviço de aborto legal por telemedicina, no Hospital das Clínicas de Uberlândia (MG). Ele está se expandindo, apesar das ofensivas. As Católicas pelo direito de decidir entraram inclusive como amicus curiae no processo que a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão de Minas Gerais moveu para interromper o serviço, com objetivo de defender a manutenção do atendimento, que continua funcionando. É um procedimento que não precisa de internação, pode ser feito em casa de modo seguro e menos traumático, um grande avanço nesse campo.
Qual o peso da moralidade religiosa e conservadora para o avanço dos direitos das mulheres no Brasil?
Muito grande. Somos uma sociedade patriarcal onde a mulher deve servir ao marido e à família. Essa visão bastante conservadora do papel da mulher, da submissão da mulher é muito ligada à visão cristã. Costumo dizer que o casamento é um ato simbólico do poder do homem sobre a mulher. No casamento cristão, o pai entrega a filha para outro homem, que passa a ser seu senhor, a quem ela deve obediência até que a morte os separe. Na educação e no discurso religioso de muitas igrejas a violência doméstica ainda é um tabu. A mulher tem que ser obediente, os estupros são encobertos.
Essa mentalidade conservadora religiosa foi institucionalizada no país, mesmo com uma constituição que garante a laicidade do Estado. O estado não professa nenhuma religião, não deve professar. Ele deve fazer valer a pluralidade. O resultado dessa mentalidade conservadora institucionalizada é o crescimento da maternidade na adolescência, dados estarrecedores sobre casamentos infantis. A gente precisa de educação sexual nas escolas, não de um governo que prega abstinência. É preciso acesso irrestrito a medicamentos contraceptivos. Considero uma hipocrisia um adolescente ter que pedir autorização de um maior para ter acesso a contraceptivos.
A gente fala muito dos evangélicos quando discutimos conservadorismos no Brasil, mas há um grande ativismo católico entre grupos antiaborto, que se autointitulam ‘pró-vida’. Isso é muito ligado ao Vaticano. O Papa Francisco, que parece mais progressista, silenciou sobre a descriminalização do aborto na Argentina. Como você vê o papel da igreja católica nessa questão?
Para a igreja catolica o aborto é considerado um assassinato, um pecado mortal. A concepção católica é da maternidade como o ato mais sublime da vida de uma mulher. Tanto é que as mulheres que morreram mantendo uma gravidez, mesmo sabendo que isso poderia ocorrer, foram canonizadas pela igreja.
O pano de fundo é claro machista e patriarcal. É uma questão de gênero, do controle do corpo feminino. É Eva como mulher pecadora que propiciou a expulsão do paraíso. Nessa concepção cristã, não é por acaso que nós somos consideradas as tentadoras: a mulher foi estuprada porque ela estava vestida de um determinado modo. Somos vistas como as culpadas pela tentação dos homens.
Nessa perspectiva a luta contra o aborto é, na verdade, mais uma tentativa de controle do corpo das mulheres?
Sim. Nossa sexualidade tem que ser controlada porque os homens não conseguem controlar e nós somos culpadas por isso. A autonomia do corpo da mulher nos é negada o tempo todo.
É tão verdade que este ano vimos convênios médicos exigindo autorização do homem para colocar DIU na mulher. Na lei do planejamento familiar, até hoje, se a mulher quiser fazer laqueadura precisa que o marido autorize. Existem as questões sociais, mas de modo geral a sociedade brasileira é extremamente patriarcal e machista. E não permitir o aborto é controlar a sexualidade feminina.
Alguns pesquisadores que temos entrevistado têm dito que há uma nova onda conservadora no mundo todo, inclusive em organizações que mudam de nome, se modernizam, se tornam transnacionais, como por exemplo a HazteOir e a CitizenGo, que partem principalmente do fundamentalismo cristão, do neoconservadorismo católico e da união com partidos e organizações de extrema-direita. Como você vê isso?
Com a queda de Trump (EUA) muitas organizações que eram expoentes perderam força. Muitos têm sofrido perdas também nos parlamentos europeus, perdendo espaço. Governos de extrema direita também têm perdido força. A pandemia escancarou muito que eles não souberam gerenciar o caos social.
Você diria que os serviços de abortamento legal e os avanços de saúde que citou incluem todas as mulheres de forma igualitária no Brasil?
Apesar da legislação ser uma, as mulheres que têm dinheiro vão acessar clínicas particulares para fazer abortos seguros. Quem morre são as pobres, as negras e as mulheres indígenas. Morrem desnecessariamente. Se a tecnologia permite hoje fazer a interrupção de uma gravidez de forma medicamentosa e domiciliar, nada justifica uma mulher morrer numa clínica clandestina de aborto.
Indígenas e quilombolas, por exemplo, têm acesso a esses serviços tanto quanto outras mulheres?
Mulheres indígenas e quilombolas têm vivências específicas que não estão sendo levadas em conta nas discussões sobre acesso ao aborto legal no Brasil, porém as discussões vêm amadurecendo. A gente tem que incluir as particularidades dos vários grupos e territórios quando falamos de direitos humanos. O debate do direito ao aborto também é sobre o direito à maternidade, sobre a possibilidade das mulheres terem a vivência da maternidade de forma digna, com condições de sobrevivência e existência.
As Católicas pelo direito de decidir atuam no Brasil desde 1993, se posicionando contra fundamentalismos religiosos e a favor da descriminalização do aborto. O que mudou no país desde então, na sua percepção?
A gente (movimentos feministas) tem conseguido segurar retrocessos. Conseguimos, por exemplo, sustar o estatuto do nascituro (proposta parlamentar que busca dar poderes legais ao feto). Não tivemos tantos avanços legislativos na descriminalização do aborto, mas conquistamos alguns avanços em políticas públicas de saúde para as mulheres, como por exemplo a possibilidade de interrupção da gravidez em casos de anencefalia e a norma técnica de atendimento à violência sexual, que aboliu a exigência do boletim de ocorrência e permitiu o acesso abortamento em qualquer serviço de saúde como profilaxia.
Pelo posicionamento, vocês têm sido perseguidas, processadas e ameaçadas?
A gente tá respondendo a um processo que o Centro Dom Bosco (instituição católica ultraconservadora) moveu e fomos impedidas de usar o nome ‘católicas’. Dizem que não somos católicas. É a primeira vez que tem um processo, mas conseguimos recorrer da decisão do TJSP, que agora aguarda julgamento em instâncias superiores.