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Moradores de Aurora do Tocantins, onde o rebanho bovino é maior do que a população, nem sempre têm acesso à carne vermelha, mas precisam lidar com impactos ambientais

Reportagem
19 de agosto de 2022
08:00
Este artigo tem mais de 1 ano

Nas margens do rio Sobrado, a chácara Curva do Rio Presente de Deus Família Feliz, no município de Aurora do Tocantins (TO), é cercada por terras de grandes fazendeiros produtores de gado que chegaram principalmente a partir da década de 1980. A família de nove pessoas que vive ali, numa pequena propriedade, se sustenta trabalhando nos abates. Os miúdos ganhos no corte da carne bovina das grandes fazendas são, muitas vezes, o alimento disponível para eles. 

Aloisia Amorim, a Dona Ló, é uma mulher de 54 anos, parda, com cabelos e olhos escuros.
Aloisia Amorim, 54 anos, conhecida como dona Ló

“Estão querendo ir lá no rio agora? É que tô indo lavar o bucho, e o cheiro não é muito agradável”, disse Aloisia Amorim, 54 anos, conhecida como dona Ló, enquanto equilibrava um tacho com cerca de 40 metros de tripa de boi em cima da cabeça. A sobrinha-neta, Lávia, de 12 anos, a acompanhava com uma peça de 7 quilos do abdome do animal pela ribanceira. 

As partes da cabeça do boi são aproveitadas no preparo da carne de panela. Dos pés escaldados, tiram-se os cascos e o couro para fazer caldo de mocotó. O bucho, depois de um longo processo de lavagem, escaldações e raspagem, é cozido com caldo e servido com arroz. Os intestinos bem limpos são recheados com carne de porco, galinha ou boi para produção de linguiças. Depois de pelo menos um dia de trabalho, as entranhas e extremidades do animal são totalmente aproveitadas para alimentar a família.

Dona Ló, com metade das canelas molhada, lavou as tripas cuidadosamente para não furá-las. Lávia entrou de corpo inteiro no rio, mexendo o rúmen de um lado para outro. A peça de bucho flutuava e a água levava parte dos odores e impurezas das vísceras rio abaixo. O mesmo fogão a lenha que cozinha o feijão para o almoço é o que ferve a água para escaldar o bucho e os pés. “Gás tá caro”, diz dona Ló. Criada na roça, dona Ló aprendeu o ofício com a mãe, que fazia a limpeza das vísceras ganhas pelo pai, trabalhando nos abates das grandes fazendas da região. Aos 17 anos, ela precisou cuidar dos irmãos sozinha quando perdeu os pais. Muitas vezes deixou de comer o que seus patrões ofereciam para alimentar os irmãos. Lávia, agora destímida, conta que gosta de comer galinha, arroz, bala, fruta. Não é muito chegada em vegetais. A menina lembra, com um sorriso que antecede a fala, que ama churrasco. É sua comida preferida, apesar de não ser um prato frequente para eles.

Para a família de dona Ló, que vive sem renda fixa, com dinheiro dos bicos nos abates, o consumo de partes mais nobres do boi não é acessível. Geralmente, os açougues locais pagam R$ 50 por abate, enquanto 1 quilo de coxão mole custa aproximadamente R$ 38. Por isso, quando eles comem carne vermelha, geralmente são os pedaços que o marido da sobrinha de dona Ló ganha nos abates das fazendas do entorno. Dona Ló ainda aproveita as partes menos nobres para tirar uma renda com a venda das linguiças. Ultimamente, com a carne mais cara, ela tem preferido ficar com elas para comer.

O consumo de vegetais depende da sazonalidade e não é muito diversificado. Os mais comuns são: abóbora, feijão e mandioca, que eles mesmos plantam. Se não der para plantar o feijão, cultiva-se o andu, um tipo de feijão utilizado para alimentação de gado. A ideia de comercializar o que é cultivado pelas famílias das áreas rurais não é corrente nem muito incentivada pelo setor público do município. No máximo se vende para amigos, sendo o mais comum doações e trocas entre conterrâneos.

Aurora do Tocantins, onde eles vivem, é mais uma das quase 3 mil cidades brasileiras que têm mais boi do que gente. A população de bovinos é quase 12 vezes maior que a de seres humanos. São 3.809 habitantes, segundo o IBGE, e 45.350 cabeças de gado, de acordo com o Censo Pecuário de 2020. A média de cabeças de gado per capita, de 11,9, é cerca de 11 vezes maior que a média nacional, 1,06 cabeça. Dos 696,194 quilômetros quadrados de área da cidade, 632,79 são ocupados por estabelecimentos agropecuários, mais de 90% do município. 

Trata-se de uma das muitas cidades que ajudam o país a manter o título de segundo maior produtor de carne do mundo, embora a população local nem sempre tenha acesso ao produto. Segundo dados da Agência de Defesa Agropecuária do Estado do Tocantins, no primeiro semestre de 2022, 1.199 bovinos saíram de Aurora para outros estados, geralmente Bahia e Goiás. Dos frigoríficos, a produção é distribuída pelo Brasil e, eventualmente, para outros países. Para outros municípios dentro de Tocantins foram enviadas 4.265 cabeças de gado nos últimos três meses. 

O que fica no município nem sempre é acessível para consumo da população local, por causa do preço da carne vermelha, que subiu mais do que o dobro da inflação nos últimos dois anos. Em Aurora do Tocantins, apenas 6,9% da população tem ocupação formal, de acordo com o IBGE. Anos atrás, o setor pecuário ocupava uma parte maior dos moradores. Atualmente a demanda por mão de obra está menor por conta da automatização da produção. Na cidade há um pequeno número de comerciantes, mas a maior fonte de empregos são os cargos públicos municipais.

Território de contrastes

A poucos quilômetros da chácara da família de dona Ló vive João José de Oliveira, mais conhecido como João Mineiro, que mantém uma das maiores criações bovinas da cidade. A casa, mais abastada do que a de dona Ló, tem uma varanda, onde a reportagem foi recebida com biscoitos, queijo e café. A caminhonete do fazendeiro estava estacionada bem próxima dali. João diz não saber exatamente quantas cabeças possui no pasto, entre os soltos e confinados, nos 500 hectares da propriedade. Ele chegou a Aurora em 1980, junto com o sogro. Viram lá a oportunidade de crescer economicamente, pois, “com a venda de 1 hectare em Minas Gerais, conseguia comprar 6 ali”.

Segundo o fazendeiro, não havia pastos naquela região, apenas uns gados soltos no mato. Inspirado nas produções mineiras, logo que chegou, começou a desmatar a área. De acordo com seu João, ele e a família serviram de espelho para que algumas poucas pessoas da cidade fizessem o mesmo com as terras que tinham. Assim como os demais grandes produtores de bovinos da região, ele vende principalmente para frigoríficos, que pagam melhor e compram em grande quantidade. “Pagando melhor, vendo pra qualquer canto”, diz.

No centro da cidade, atualmente funcionam sete açougues, mas ainda assim ocasionalmente falta carne, por causa do escoamento da produção para outras localidades, e os habitantes de Aurora precisam comprar na cidade vizinha. Segundo Rafael de Oliveira, açougueiro local, a maior parte da carne consumida internamente vem dos produtores menores da região. “Os maiores vendem mais para frigorífico. Os de carreta [que transportam grandes quantidades], os compradores do frigorífico selecionam mesmo, são mais rígidos. De repente um boi que eles não gostam, deixam. Aí chamam a gente e vamos lá fazer o abate”, relata. 

Na cidade pacata e silenciosa, o maior ruído rodoviário que se escuta é causado por carretas boiadeiras. O fluxo é intenso. A depender do tamanho, cada veículo leva de 10 a 40 cabeças de gado. Rafael trabalha com o açougue há dez anos. Nesse período, notou a inflação do produto e o consequente aumento no consumo de ossos e miúdos. “Comecei a ‘açougar’ quando a arroba era R$ 60, 70, 80. Hoje é entre R$ 260 e 350.” 

Miúdos, como o rúmen e o mocotó, muitas vezes nem chegam ao açougue de Rafael. “Para falar a verdade, ninguém gosta que saibam que consomem isso. Tem uns aí que são mais necessitados, aí pegam. O cabra chega lá e pergunto: ‘Quer o bucho? Te dou”. Ele diz que é mais comum o abate de vacas para o consumo interno porque o preço da arroba da vaca costuma ser inferior ao do boi. 

Criação de bois faz município ter poluição de grande metrópole

Vão-se os bois, ficam os danos. Mesmo não sendo um dos maiores produtores de bovinos do estado, por causa da pecuária o índice per capita de emissões de gases de efeito estufa do município é quase três vezes maior que a média do país. 

Aurora do Tocantins ocupa a 74ª posição em volume total de produção de carne do estado, que tem um dos maiores rebanhos do país, com 8 milhões de animais. Contudo, o índice de emissões de gases poluentes per capita do município é muito maior que o de grandes metrópoles brasileiras. De acordo com dados do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (Seeg), do Observatório do Clima, em 2019 o índice de emissão de poluentes foi de 27 tCO2e/hab, enquanto, em São Paulo, a maior cidade do país, o mesmo índice foi de 1 tCO2e/hab.

De acordo com o Seeg, entre as emissões de gases que contribuem para o aquecimento global de Aurora do Tocantins, 90% vêm do setor agropecuário, sendo quase 80% da fermentação entérica e 16,4% do manejo de solos para a pecuária. 

Rebanho de bois em Aurora do Tocantins.
Aurora do Tocantins é cercada por terras de grandes fazendeiros produtores de gado

O metano, substância produzida pelas vacas e bois durante a digestão, tem sido responsável por cerca de 30% do aquecimento global desde a época pré-industrial. Um bovino produz em média 100 quilos de metano por ano, segundo estudo da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Considerando esse dado, na cidade de Aurora, com 45.350 bovinos, pode haver emissão de 4,535 toneladas de metano por ano. Segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), durante os 20 anos que se seguem à sua liberação na atmosfera, a substância tem potencial de aquecimento mais de 80 vezes maior do que o dióxido de carbono.

O Brasil é o quinto país mais poluidor climático, responsável por cerca de 3,2% do total mundial, ficando atrás apenas da China, EUA, Rússia e Índia. As emissões de metano geradas pela digestão dos ruminantes produzem quase dois terços das emissões do setor. No total, a produção de bovinos domina as emissões da agropecuária: a criação de bois e vacas responde por 75% das 577 milhões de toneladas emitidas pelo setor, divididas entre gado de corte (65,6%) e de leite (9,3%). A pecuária bovina no Brasil sozinha emite mais do que todos os setores de países como a Itália e a Argentina. 

Falta incentivo para alternativas sustentáveis

Mesmo com a região sendo rica em água, que poderia facilitar o desenvolvimento de iniciativas mais sustentáveis de agricultura, a produção de hortaliças não é grande e o consumo tampouco. De acordo com a agência da RuralTins na cidade, são 307 agricultores familiares cadastrados. Segundo o secretário municipal de Agricultura, Lucas Santos, “a produção é mais para consumo interno”.

Para Wagner Moura, ativista ambiental que trabalha com ecoturismo e já foi secretário municipal de Turismo e Meio Ambiente, falta incentivo a alternativas de menor impacto ambiental como a agricultura familiar. “Já me disseram que não dá pra plantar aqui porque não valorizam o trabalho deles.” Ele conta que as escolas da cidade tiveram problemas quando tentaram comprar da agricultura familiar pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), pela falta de fluxo constante na região. “Há plantações periódicas, uma vez por ano, depois da colheita apenas no seguinte. As escolas não conseguem depender disso, porque precisam comprar toda semana, e o pessoal não dá continuidade na plantação.”

Assim, o que chega de legumes e hortaliças na região vem majoritariamente de fora. Osmane Silva, chefe de cozinha proprietário de um restaurante e pousada na região do rio Azuis, relata que, apesar de tentar comprar mais localmente, a maioria dos ingredientes verdes utilizados em sua cozinha vem de Goiás. Da mesma forma, nos mercados locais os vegetais vêm principalmente de Barreiras, na Bahia, e de Anápolis, em Goiás.

Para o pequeno agricultor Geovane da Silva Torres, desenvolver a agricultura familiar no município seria importante. Ele se lembra da grande importância para nutrição das famílias: “Quem sustenta a base da alimentação verde no Brasil é a agricultura familiar. Grandes investidores não investem nisso, investem em grãos, soja, milho.”

A paisagem em Aurora do Tocantins é marcada pelo grande volume de cavernas, grutas e dolinas, depressões no solo conhecidas popularmente como sumidouros. O rio Azuis, menor rio da América Latina e terceiro menor do mundo, é um dos atrativos hídricos do município, que é cercado por mais de 200 cavernas. Atividades ligadas à produção pecuária, como o pisoteio do gado, podem empobrecer e compactar o solo, comprometendo a fixação de nutrientes e a infiltração da água e aumentando processos erosivos.

Assim, o turismo, como o fortalecimento da agricultura familiar, poderia ser “um caminho mais sustentável economicamente e ecologicamente para a cidade”, diz a secretária municipal de Turismo e Meio Ambiente, Thais Senna, para barrar a degradação ambiental causada pela pecuária. No ano passado, a gestão de Aurora foi alvo de ação do Ministério Público do Estado de Tocantins (MPTO), que cobrava a adoção de medidas para conter a degradação progressiva da Área de Preservação Permanente que envolve os rios Azuis e Sobrado. 

O MPTO alegou que a gestão municipal teria “contribuído para os danos ambientais por liberar alvarás de funcionamento e permitir construções irregulares de estabelecimentos comerciais e residenciais às margens dos rios, indo contra a legislação ambiental”. O órgão determinou que a gestão municipal se abstenha de fornecer alvarás de construção e funcionamento em Áreas de Proteção Permanente. 

Ambientalistas e entusiastas pelo desenvolvimento do turismo na região, o agricultor Geovane Torres e Anselmo Rodrigues, artista plástico e espeleólogo (que se dedica ao estudo de cavernas), têm um projeto para desenvolver o turismo local, com valorização da arte, gastronomia, história e cultura da região. Um dos principais desafios, dizem, é a própria população, que ainda não enxerga outros potenciais para além da produção pecuária e que também enfrenta dificuldades econômicas. “No atual cenário, os cidadãos mal conseguem se alimentar de forma ideal, portanto realizar investimentos torna-se algo ainda mais complexo”, diz Anselmo. 

Há ainda o receio de que o investimento em turismo possa causar um aumento de índices de criminalidade e gravidez precoce, com o maior fluxo de pessoas na região. Também há preocupação com pessoas de fora comprarem terras por preços baixos e se beneficiarem mais economicamente do que os nativos. Por isso, para a secretária de Turismo e Meio Ambiente, Thais Senna, é importante priorizar o turismo de base comunitária. Para ela, existem outras alternativas para Aurora do Tocantins, que não dependem necessariamente da produção de carne vermelha. “O plano municipal precisa ser focado em educação, turismo e meio ambiente, de forma que essas três coisas estejam aliadas.”

Fotógrafo:

Essa reportagem é resultado das Microbolsas Alimentação e Mudanças Climáticas realizada pela Agência Pública, Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) e a Cátedra Josué de Castro. A 14ª edição do concurso selecionou jornalistas para investigar os diferentes aspectos desse tema no Brasil.

* Colaborou Yuri Marques

Juliana Uepa/Agência Pública
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