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Uma liminar beneficiou, indiretamente, réus então representados pelo governador do Distrito Federal

Reportagem
26 de setembro de 2022
15:00
Este artigo tem mais de 1 ano

Em junho de 2021, um desembargador concedeu durante seu plantão uma liminar favorável a réus que respondem a um caso de grilagem no sul do Piauí. Na prática, a liminar liberou aos réus uma área do tamanho do Rio de Janeiro (RJ) inteiro em pleno Cerrado.

A decisão que anulou todas as medidas já tomadas pelo juizado responsável pelo caso, a Vara Agrária de Bom Jesus (PI), foi motivada após o pedido de um advogado suspeito de ter cometido grilagem na região.

Segundo a justiça, o suposto esquema de grilagem desta imensa área já teria movimentado quase R$200 bilhões. Entre os abarcados pela liminar favorável, havia três réus representados pelo advogado e o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB).

Materiais obtidos pela Agência Pública mostram que o candidato à reeleição no DF deixou este mesmo processo pouco depois da decisão judicial – que segue válida, segundo relatado pelo Ministério Público (MP) à reportagem. Também os impactos dessa liminar nas terras supostamente griladas, entre Bertolínia e Santa Filomena, sul do Piauí, tem gerado conflitos na região.

Desde a decisão em junho de 2021, já foram registrados desmatamentos ilegais em fazendas envolvidas no caso. Por exemplo: a AidEnvironment, que monitora o comércio global de commodities agrícolas, flagrou desmatamentos em terras ligadas ao caso entre junho e julho passados, o que inclui as fazendas ligadas ao finado empresário Euclides de Carli, tido como um dos maiores grileiros do país, e um dos réus representados por Ibaneis Rocha e seu escritório à época da concessão da liminar. O governador do DF e sua firma representavam legalmente no caso, além de Euclides, os réus Maria Cecília Prata de Carli, esposa do suposto grileiro, e Solo Sagrado Colonização e Negócios Ltda, uma empresa supostamente usada no esquema.

Os três seriam, segundo as investigações, peças-chave na grilagem, por meio da qual teriam sido fraudados registros de mais de 124 mil hectares de terra no sul do Piauí, segundo denúncia do Ministério Público consultada pela reportagem.

“Ainda no início desse ano [2022] soubemos da vinda de um dos filhos dos grileiros na região, ele teria avisado aos capatazes ‘para desmatar a área, sem conversa’, e que se alguém reclamasse ‘era para meter chumbo’ mesmo”, disse à Pública um membro de organização social que atua na região. Como outras fontes, ele foi ouvido em anonimato por questão de segurança, dada a presença de pistoleiros de aluguel na região.

Área de floresta desmatada no Cerrado.
Liminar liberou aos réus uma área do tamanho do Rio de Janeiro (RJ) inteiro em pleno Cerrado

Menos de três meses após a concessão da controversa liminar já havia registros de desmatamentos ilegais em parte das áreas supostamente griladas. Em outubro de 2021, satélites identificaram a derrubada de mais de dois mil hectares de terras na fazenda Pedrinhas, em Santa Filomena, uma das mais de vinte envolvidas no suposto esquema de grilagem, como já reportado pela Pública.

A suposta grilagem atinge ainda comunidades tradicionais próximas, como Brejo das Meninas, Chupé e Barra da Lagoa, todas em Santa Filomena.

Organizações sociais como a Rede Social de Justiça e Direitos Humanos têm registrado o aumento da violência contra camponeses na região, com ataques e intimidações ligados à disputa por terras no sul do Piauí – supervalorizado por estar em plena fronteira da soja no país.

“Parece que, antes, os grileiros avançavam de pouco em pouco sobre as comunidades, mas desde o ano passado [2021] a coisa piorou, estão intimidando as pessoas abertamente, passando o ‘correntão’ nas áreas de Cerrado… antes, só ameaçavam, mas agora estão indo nas casas das pessoas, botando terror mesmo”, disse o membro de organização social ouvido anonimamente pela Pública.

Supostos assassinatos, medo e pistolagem

Mantida anônima também por motivos de segurança, uma pessoa familiarizada com o suposto esquema de Euclides de Carli no Piauí conversou sobre o caso com a Pública. Esta pessoa diz que um dos réus no processo da Vara Agrária teria sido responsável por firmar acordos fraudulentos com proprietários de imóveis no sul do estado.

A fonte anônima refere-se ao falecido João Emídio de Sousa Marques, o João ‘Orelhinha’ –“dono de quase o Piauí inteiro juntamente com Euclides de Carli”, segundo uma sentença da Vara Agrária.

“Muitos que foram prejudicados pelo esquema nunca mais puderam voltar para a região, por risco de morte”, disse a fonte. “Faz tempo que sabemos que tem gente importante envolvida, algo que deixa todo mundo com muito medo e indignado”, afirmou.

Investigações do Grupo de Atuação Especial de Regularização Fundiária e de Combate à Grilagem (Gercog), do MP do Piauí, corroboram o suposto envolvimento de João ‘Orelhinha’, e também sua ligação com o ex-cliente de Ibaneis Rocha e seu escritório.

Para os promotores do Gercog, o acusado “falsificou procurações públicas para adquirir propriedades” no sul do Piauí em nome de Euclides de Carli, como seu sócio e procurador constituído da empresa Solo Sagrado. Ainda segundo o MP, ‘Orelhinha’ teria usado procurações forjadas “com o auxílio de três cartórios”, de Bertolínia, Gilbués (PI) e Santa Filomena, para transferir registros de terras para os acusados.

À época das investigações, promotores receberam denúncias ainda mais graves. Entre os supostos crimes denunciados, constam o uso de pistoleiros de aluguel para coagir pessoas e até mesmo assassinatos – como em 1998, com as mortes de João ‘Orelhinha’ e outras duas pessoas, definidas como “queima de arquivo” em um material obtido pela Pública.

A violência ligada à disputa pelas terras no Piauí persiste, segundo o membro de uma organização social ouvido anonimamente pela reportagem. “Aqui é complicado: primeiro, enviam gente para se aproximar das comunidades e, depois, tomar as terras. Se não conseguem, partem para a violência, com uso de milícias rurais e seguranças privados para intimidar quem quer que seja”, disse à reportagem.

A Pública tentou contato com os atuais responsáveis pela defesa do grupo de Euclides de Carli no caso, para ouvi-los sobre as acusações do MP, mas não obteve sucesso até o fechamento deste texto. Caso se manifestem, a matéria será atualizada. 

Liminar não foi oficialmente comunicada ao MP nem à Vara Agrária 

Detalhes do processo e sua cronologia ajudam na compreensão da história. A liminar que desbloqueou as fazendas supostamente griladas teve origem em um pedido de “desbloqueio parcial”, referente a apenas uma das fazendas envolvidas no suposto esquema.

Mas, ao invés de atender somente ao pedido de “desbloqueio parcial”, o desembargador de plantão – José James Gomes Pereira, da 2ª Câmara Especializada Cível do Tribunal de Justiça – decidiu “suspender todos os efeitos da decisão” inicial, “inclusive no ponto em que determinou o bloqueio das matrículas de outros imóveis”. Por extensão, a liminar concedida beneficiou os então clientes de Ibaneis Rocha e seu escritório.

Ibaneis Rocha (MDB), é um homem branco calvo com olhos escuros. Ele veste terno azul e gravata lilás.
Após a liminar que beneficiou clientes de Ibaneis, devastação e pistolagem explodiram na área em disputa

Surpreso, o MP disse à reportagem que, “bem como o Judiciário [Vara Agrária] de Bom Jesus”, “não foi tecnicamente informado da decisão do TJ [Tribunal de Justiça]” – a liminar em favor de todos os réus.  Conforme apurado pela Pública, a decisão do desembargador foi avisada diretamente aos cartórios de Bertolínia e Santa Filomena, onde ficam as fazendas supostamente griladas.

A Pública procurou o Tribunal de Justiça do Piauí, para entender o motivo da decisão do desembargador José James Gomes Pereira não ter sido oficialmente comunicada aos responsáveis pelo caso, mas não houve retorno. Caso haja, a reportagem será atualizada.

O procedimento foi considerado incomum por advogados com experiência em disputas fundiárias, ouvidos reservadamente pela reportagem, e surpreendeu até mesmo o advogado responsável pelo pedido que motivou a decisão. “Fiquei surpreso com a decisão liminar”, disse à Pública Lincon Hermes Saraiva Guerra, que advoga por seis réus no caso.

“Após tomar conhecimento de tal decisão [a liminar que liberou as terras], o Ministério Público peticionou nos autos originários, pedindo celeridade no julgamento” do caso, disse o MP à Pública. Tal pedido foi protocolado em 17 de maio passado, mas ainda não foi julgado pelo Tribunal de Justiça.

Segundo o material obtido pela Pública, a polêmica decisão liminar do desembargador José James Gomes Pereira coincide com o fim da passagem do governador do DF pelo processo.

Em julho, um mês após a liberação das terras, a viúva de Euclides de Carli – já como representante legal do seu espólio – mudou de advogado, nomeando Marlúcio Lustosa Bonfim, um dos sócios de Ibaneis Rocha, para a causa. Trata-se de um dos herdeiros de uma tradicional família do sul do Piauí, mesma região onde ocorreu a suposta grilagem. Mas, questionado pela Pública, Rocha disse que “desligou-se em março de 2022” do caso.

A fatídica liminar acabou referendada pela turma da 2ª Vara Especializada Cível do Tribunal de Justiça do Piauí no início de 2022, em fevereiro. Este novo julgamento também chama a atenção, pois o MP não se opôs ao desbloqueio das terras – mesmo sendo a parte acusadora no caso.

Um documento obtido pela reportagem mostra que, mesmo “devidamente notificado”, o Ministério Público “deixou transcorrer o prazo sem apresentar qualquer manifestação” contrária à liminar concedida pelo desembargador José James Gomes Pereira.

Perguntado sobre o motivo de não manifestar-se contra a liberação das terras ao grupo de réus, o MP do Piauí não respondeu. Caso se manifeste, a reportagem será atualizada.

“Todos sabem que quem grilou terras foi o Euclides de Carli”

O desbloqueio de 124 mil hectares supostamente grilados teve origem em um pedido do réu João Augusto Phillipsen, fazendeiro suspeito de envolvimento no caso. Seu advogado, Lincon Guerra, pediu pela liberação “de sua propriedade, da matrícula nº 769, do RGI [Registro Geral de Imóveis] de Santa Filomena”, bloqueada havia cinco anos.

À Pública, Guerra disse que seu cliente, conhecido como ‘Guto’ no sul do Piauí, teria adquirido as terras de João ‘Orelhinha’ – suposto sócio de Euclides de Carli no esquema, segundo o MP – há mais de vinte anos atrás e que teria relação pacífica com as comunidades tradicionais mais próximas.

“Lá na região todos sabem que quem grilou terras foi o Euclides de Carli, que já morreu”, disse o advogado.

“Pedimos a liberação das terras do ‘Guto’ porque ele vive lá e não consegue financiamento para sua produção agrícola”, afirma Guerra. Ele declarou ainda que as terras de Phillipsen e de seus outros cinco clientes no caso seguem bloqueadas por conta de outro caso, também em julgamento na Vara Agrária. “Não tenho informações quanto às terras de outros acusados, não tenho como dizer se foram liberadas ou não”, disse à Pública.

Vale o registro: o advogado de ‘Guto’ Phillipsen foi acusado e preso, em 2017, por suposto envolvimento em outro esquema similar na mesma região. Lincon Guerra foi um dos alvos da operação Sesmaria, do MP estadual, por suposta ligação com uma grilagem de 24 mil hectares no extremo sul do Piauí.

Lincon Guerra, advogado é um homem branco com cabelos e olhos escuros. Ele veste terno preto e camiseta listrada.
Lincon Guerra, advogado de seis réus do caso

Um dos promotores responsáveis pela operação Sesmaria apontava Lincon Guerra como “um dos mentores intelectuais” deste outro esquema. Porém, a prisão do advogado durou menos de uma semana, deixando um dos membros do MP “perplexo”, conforme relato no veículo local Cidade Verde.

“Respeito o trabalho do Ministério Público, mas não tenho nada a comentar sobre estas acusações”, disse Guerra à reportagem.

À Pública, Ibaneis Rocha disse que seu escritório “foi contratado para atuar no referido processo no ano de 2016”, mas que “sequer apresentou defesa em nome dos constituintes, sendo substituído por outro escritório, que efetivamente apresentou defesa nos autos”. O governador do DF disse ainda que “desligou-se em março de 2022” do caso, que se “licenciou perante a Ordem dos Advogados do Brasil no final do ano de 2018”, e que, desde então, “não mais pratica qualquer ato privativo de advogado”.

Reprodução
Marcelo Camargo/Agência Brasil
Reprodução Jéssica Kamila/OitoMeia

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