Assédio moral, censura, clima de medo por perseguição no trabalho, desvalorização e falta de diálogo. Dezesseis jornalistas, dos quais onze são mulheres, da empresa do governo federal EBC (Empresa Brasileira de Comunicação) entregaram declarações por escrito descrevendo situações humilhantes e constrangedoras no dia a dia da empresa a partir da chegada de Jair Bolsonaro à Presidência da República.
De um total de 35 depoimentos assinados e por escrito, entregues a uma comissão de sindicância interna da EBC – aos quais a Agência Pública teve acesso –, 15 trazem relatos do gênero. Procurada na última quarta-feira (14) para explicar esses relatos, a empresa respondeu com apenas uma frase: “A EBC não se manifestará”.
Os depoimentos dos empregados foram anexados a uma sindicância aberta pela EBC contra a jornalista Kariane Costa, contratada por meio de concurso público em 2012 e eleita em 2016 e 2021, pelos colegas da redação, representante dos empregados no Conselho de Administração da estatal.
Após receber de seus colegas inúmeras queixas com conteúdo semelhante, em 2021 Kariane fez uma comunicação à Ouvidoria da EBC para pedir que tudo fosse apurado. Porém, ela rapidamente passou de denunciante a investigada, sob a acusação de 12 gestores, justamente os mesmos sobre os quais ela pediu uma apuração. Eles pediram providências contra Kariane por supostos “ataques”. Seis deles foram à Justiça comum para fazer uma interpelação criminal contra Kariane. Em 18 de agosto último, a comissão sugeriu a demissão da jornalista. A decisão final caberá ao diretor-presidente da EBC, o publicitário Glen Lopes Valente.
“Não houve qualquer ofensa por parte da sra. Kariane, que agiu no estrito cumprimento do seu dever legal. A denúncia não era um ataque aos gestores, mas um pedido de investigação diante das inúmeras reclamações recebidas pela empregada pública”, escreveu a advogada da jornalista, Tuane Farias, do escritório Advocacia Riedel, na defesa apresentada à comissão da EBC.
Em uma reunião realizada no último dia 5 sobre o tema, o Ministério Público do Trabalho recomendou à EBC “a imediata suspensão de todos os processos administrativos disciplinares em face de empregados que tenham relatado à empresa ou ao Poder Judiciário possíveis situações de assédio moral”. Da reunião participaram representantes da EBC, da comissão dos empregados da empresa, do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal e do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Radiodifusão e Televisão do DF.
As procuradoras do Trabalho Caroline Pereira Mercante e Andrea da Rocha Carvalho Godim querem que os processos sejam paralisados para que seja analisado se a EBC está descumprindo uma decisão tomada pelo TRT (Tribunal Regional do Trabalho) da 10ª Região. Em março passado, os juízes da Primeira Turma do TRT condenaram a EBC por assédio moral e fixaram uma multa de R$ 200 mil por “danos morais coletivos”. Também ordenaram que a EBC estabeleça canais de diálogo para receber e processar denúncias do gênero sob sigilo e sem que o denunciante sofra retaliações, entre outras medidas.
Comissão da EBC diz sobre sua empregada: “Assédio moral ascendente”
Na peça que protocolou na Comissão de Sindicância, a defesa de Kariane mencionou que uma outra área da própria EBC, o Setor de Correição, emitiu uma nota técnica que reconheceu: “Prevalecem indícios de irregularidades relacionados a i) possível assédio por parte de gestores da Dijor [diretoria de jornalismo]”.
Mais tarde, ao encerrar sua atividade, a comissão afirmou que não houve assédio dos gestores, mas sim o contrário: de Kariane contra eles. A comissão disse o seguinte: “Assédio moral vertical ascendente, por meio de ações indiretas realizadas pela indiciada em desfavor de seus gestores”.
A defesa de Kariane apontou que uma eventual punição da jornalista “contribuirá para a formação de um cenário de desestímulo e de temor quanto a demandas de servidores junto à Ouvidoria, ao Conselho de Ética ou à Correição, pois já não se sentirão seguros quanto à resposta institucional frente a denúncias legítimas e no âmbito adequado da institucionalidade”.
A defesa de Kariane anexou os 35 depoimentos de seus colegas para demonstrar que, ao contrário do afirmado pelos atuais gestores da empresa, ela sempre teve um bom relacionamento e era elogiada pelos colegas, incluindo ex-chefes em cargos de edição e de coordenação de repórteres. Ao escrever sobre Kariane, muitos dos jornalistas, que serão aqui identificados por números para que suas identidades sejam preservadas do público, também apresentaram detalhes sobre um ambiente sufocante na EBC.
A jornalista Um disse que procurou Kariane em setembro de 2021 para que o seu caso fosse denunciado à administração da EBC. Ela é concursada na EBC há mais de 14 anos e desde então exerceu cargos diversos, como repórter especial, chefe de pauta e de reportagem. Em 2020 e 2021, frequentou um curso de mestrado em documentário num país de esquerda. Em julho de 2021, foi eleita representante da Comissão de Empregados da EBC. Dois meses depois, foi transferida de setor “de forma arbitrária”, sem consulta, “sem qualquer conversa ou diálogo”.
“As transferências arbitrárias e que não levam em consideração as aptidões do empregado têm se tornado costumeiras na EBC. As perseguições a empregados que questionam a gestão atual ou que ocupam cargos de liderança, seja ela sindical ou não, também se intensificaram”, disse a jornalista. Ela conseguiu uma promessa de vaga em outro setor, mas sua transferência foi vetada. Para ocupar essa vaga foi depois contratada uma pessoa de fora da empresa.
“Infelizmente a prática de assédio e perseguições se tornaram corriqueiras na EBC. Empresa que mesmo tendo uma decisão desfavorável na justiça quanto ao tema, continua optando por essa forma de gestão”, escreveu a jornalista.
Jornalistas tratados como “subversivos”
A jornalista Dois, que atua na área de radiojornalismo, contou que sofria problemas desde, pelo menos 2015, no final do governo Dilma Rousseff (“tinha meu texto mudado durante a edição com informações diferentes do que eu havia apurado”), mas a situação piorou a partir de 2017, já no governo Michel Temer, quando foi diagnosticada com um problema de saúde durante a gravidez. Mesmo com a necessidade de restrições apontadas por médicos, ela era pautada para assuntos de rua (“ouvia com frequência que gravidez não era doença e que outros colegas trabalharam até o último dia de gestação desempenhando as funções de repórter”).
Em 2019, quando estava grávida pela terceira vez, já no governo Bolsonaro, ela passou “por situações semelhantes em relação às cobranças para render”. Ela e seus colegas “começamos a nos deparar com orientações para não divulgar certos dados e passamos a dar assuntos de muita relevância por meio de notas nos jornais, notas (quando assunto não é tratado com a devida importância)”.
Certa feita, disse Dois, “eu me neguei a gravar uma reportagem censurada”. O texto falava sobre o aumento do desmatamento na Amazônia. “A régua no radiojornalismo para se dar um assunto passou a ser o que agradaria ou não a Presidência da República. Sofríamos pressões veladas sobre [para] termos cuidado com os textos para que não fechassem a EBC – o principal discurso para justificar a censura no setor.”
“Por outro lado, em pauta assuntos cada vez mais governistas e que claramente deveriam ser tratados no braço institucional da empresa. Os colegas que eram mais incisivos com a questão de se manter a missão da comunicação pública e de pautar assuntos que eram relevantes e que foram deixados de lado, eram tratados como subversivos.”
A jornalista contou ainda que viu “colegas sendo retirados de coberturas que faziam com frequência”. Foi o caso da própria Kariane, “retirada do Palácio do Planalto, com a justificativa de que haveria um rodízio de repórteres, o que nunca ocorreu”. “Desde que o atual governo assumiu, a cobertura ficou cada vez mais sensível e pontos de tensão eram sempre retirados.”
A jornalista Três, que trabalha há mais de sete anos na EBC, escreveu que “a situação de assédio e censura no radiojornalismo é geral, ocorrendo em todas as praças [cidades onde a EBC tem representação]”.
“O histórico de censura no jornalismo da EBC — e também no radiojornalismo — é amplo. Eu particularmente tive diversos embates com a chefia por conta disso no período da pandemia. Tudo que de alguma forma fosse sensível ao governo era vetado, gerando grande desgaste. Importante registrar que nesse período estava grávida.”
Quando voltou da licença maternidade, a jornalista descobriu que fora transferida da reportagem para a produção. “Preferiram me colocar na geladeira a me manter na reportagem, onde diariamente travava embates contra as tentativas de censura vigentes. […] Ninguém foi deslocado para a função quando eu a deixei, o que evidencia a perseguição de que fui vítima. O que estava em jogo era me tirar da reportagem porque eu batia de frente com a censura constantemente”, disse Três.
O jornalista número Quatro contou que também já foi eleito representante dos empregados no Conselho da Administração, mas nunca sofreu perseguição como a vivida por Kariane. Ele disse que “inúmeras vezes levou ao conhecimento da EBC denúncias sobre assédio de 2015 a 2020”.
A jornalista Cinco disse que o afastamento de Kariane da cobertura do Congresso Nacional foi “um dos primeiros e sucessivos atos que pude presenciar de um longo processo de cerceamento do dever e do direito que a Kariane tinha de informar. Já são quase 4 anos em que o cerceamento — a censura — está no cotidiano da EBC.”
“Assim com a Kariane, eu também vivi essa rotina e guardo inúmeros casos em que meu trabalho foi censurado porque os fatos desagradavam a linha ideológica dos gestores. Violência policial, combate à pandemia de Covid e crise econômica são alguns dos assuntos que viraram tabu nesse período”, disse Cinco.
Ela descobriu por acaso, numa troca de mensagens em um grupo de Whatsapp, que seu nome estava “interditado para a cobertura de pautas consideradas delicadas”. “Eu já tinha ouvido falar dessa interdição pelos corredores da empresa, mas isso ficou explícito e documentado.”
Jornalista foi perseguido após “pergunta incômoda” ao Ministério da Saúde
Vários depoimentos citam o caso do jornalista Gésio Passos, que de uma hora para outra “passou a cobrir temas absolutamente irrelevantes”. Isso ocorreu, segundo vários depoimentos, depois que ele “questionou o Ministério da Saúde sobre a qualificação em saúde dos militares que estavam assumindo funções na pasta”, conforme explicou a jornalista Cinco.
O jornalista Seis disse que Gésio “só recebia pautas de pouca importância, irrelevantes, de temas que, no máximo, deveriam ser feitos por um estagiário”. Segundo o jornalista, tudo reflexo de uma “pergunta incômoda” que Gésio “fez à equipe do ministro Pazuello” no Ministério da Saúde. O jornalista Sete disse que as redes sociais dos jornalistas eram “vigiadas”, pois ouviu de uma chefe que Gésio não poderia trabalhar na cobertura sobre o Palácio do Planalto “porque ele fazia postagens de oposição ao atual governo”.
Seis, que também era dirigente sindical, disse que “se recusou a gravar uma matéria censurada” com base “no Manual do Jornalismo da EBC, no Código de Ética da EBC e no Código de Ética dos jornalistas brasileiros”. A partir daí, teve aberto contra si um “termo de ajustamento de conduta” que, na prática, “me impediria de me manifestar contra censura até mesmo durante o processo eleitoral deste ano”.
O jornalista disse que as reuniões de pauta acabaram “após os repórteres questionarem a ausência de reportagens sobre o marco de 400 mil mortes causadas pelo coronavírus e sugeriram um especial sobre as 500 mil vítimas”. A pedido de duas coordenadoras, disse Seis, “o assunto foi deixado para uma outra reunião, que nunca ocorreu. A equipe entendeu a atitude como um grave caso de censura sobre um tema de interesse público. Somente com o retorno do trabalho totalmente presencial, no fim do ano passado, voltamos a ter reuniões de pauta, mas somente uma vez por semana.”
A jornalista Sete disse que “a rotina do jornalismo é tensa quando a pauta envolve o governo federal. As situações de censura variam desde a trechos cortados ou a pautas importantes que, sequer, são levadas adiante. É comum tentar negociar algum trecho importante no texto, que é simplesmente cortado sob a desculpa do ‘tamanho do texto’”.
Uma outra jornalista, que exerceu cargo de chefia, contou ter presenciado diversas vezes uma ocupante de alto cargo de direção “se referindo aos empregados como preguiçosos, terroristas, burros”.
A jornalista Sete, com 17 anos de profissão, disse que foi “uma experiência que jamais vivi antes em nenhuma outra empresa de comunicação onde trabalhei”. Em determinado momento da pandemia da Covid-19, ela questionou num grupo de trabalho do WhatsApp a ausência de uma reportagem sobre a marca dos 400 mil mortos. A partir daí, disse ter sofrido “uma série de ataques pessoais por parte das chefias presentes no grupo”.
“Havia nesse momento da EBC uma leva de transferências contra a vontade dos empregados de vários setores e também retaliações dos mais diversos tipos. Muitos destes colegas eram […] diretores do sindicato dos jornalistas. Também nos outros casos, as pessoas transferidas também questionavam o conteúdo editorial de alguma maneira e ou estavam em regime de teletrabalho por decisão judicial.”
Em algum momento, conforme contaram os jornalistas, uma das ocupantes de cargo de chefia soube que colegas estavam dizendo que ela exercia assédio moral sobre os seus subordinados. A partir daí, ela “ficou ligando para todos os repórteres e perguntando se ela estava assediando a gente, claramente fazendo pressão. Me senti muito constrangido”, disse um jornalista.
As transferências abruptas, disse outro jornalista, ocorriam “à revelia em outros setores da empresa, o que criou um clima de ‘caça às bruxas’ entre os colegas”.
“Os desentendimentos eram motivados, na maioria das vezes, pela negativa das chefias em se pautar um repórter com determinado tema, dando prioridade a assuntos frios (que não aconteceram no dia) ou a efemérides.”