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Levantamento inédito da Agência Pública registrou cinco assassinatos apenas no final de semana do segundo turno

Reportagem

Pedro Henrique Dias Soares, 28 anos, foi assassinado em Belo Horizonte (MG), enquanto comemorava a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para a presidência, no último dia 30 de outubro. Ele estava com familiares, na garagem de casa, quando um homem que vestia uma máscara chegou atirando. Além de Pedro, a mãe dele e uma prima saíram feridas, mas sem gravidade. A menina Luana Rafaela Oliveira Barcelos, de 12 anos, também baleada pelo mesmo agressor, faleceu nesta quinta-feira (3) em decorrência dos ferimentos.

Pedro foi uma das quatro pessoas assassinadas durante as comemorações pela vitória de Lula. As mortes são o ápice de uma campanha extremamente violenta, na qual ocorreram pelo menos 324 casos de violência eleitoral, uma média de quatro casos por dia, de acordo com levantamento exclusivo feito pela Agência Pública. Em 40% deles, os agressores eram apoiadores do presidente Bolsonaro. Apoiadores de Lula protagonizaram 7% dos ataques. Em 57% das ocorrências não foi possível identificar os agressores. Em dois terços, os agressores eram homens cisgênero.

Apenas em 30 de outubro, dia do segundo turno eleitoral, registramos 36 casos de violência política. Ao menos dez envolveram o uso de armas de fogo. Em todo o período eleitoral, houve pelo menos 15 assassinatos e 23 tentativas de assassinato. O segundo turno foi expressivamente mais violento. O fim de semana da ida às urnas teve 14 ocorrências com arma de fogo, 23 agressões físicas, cinco atentados ou tentativas de assassinato e cinco assassinatos. No final de semana do primeiro turno não houve registros de assassinatos. 

“Eu não consigo expressar a dor que eu tô sentindo em ver um amigo querido, uma pessoa tão nova com uma caminhada imensa pela frente assassinado friamente por sua escolha política”, disse uma amiga de Pedro Henrique, nas redes sociais. Ruan Nilton da Luz, de 36 anos, foi preso em flagrante, acusado de homicídio e tentativa de homicídio. Ele tinha armas e certificado de Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador (CAC). Antes do crime, segundo o portal O Tempo, o homem gritava “Bolsonaro” nas ruas e teria feito uma postagem nas redes sociais afirmando que se o presidente perdesse a reeleição, ele sairia fazendo “uma desgraça” nas ruas, o que pode indicar a premeditação do crime.

Em uma das eleições mais violentas da história do país, a reportagem da Agência Pública mapeou e checou ataques contra eleitores, candidatos, jornalistas e trabalhadores de institutos de pesquisa. Os dados foram colhidos desde o início oficial da campanha, em 16 de agosto, até o segundo turno, realizado em 30 de outubro, a partir de notícias divulgadas na imprensa local e nacional, nas redes sociais e em um questionário aberto ao público. O levantamento considera apenas ataques presenciais, excluindo ataques por telefone, por email e pelas redes sociais. 

Cena policial após o assassinato de Pedro Henrique.
Pedro Henrique foi assassinado durante comemorações das eleições em MG

“A violência política é sistemática e afeta diretamente nossa democracia”, analisa Gisele Barbieri, coordenadora de incidência política da Terra de Direitos, organização que também monitora casos de violência nas eleições junto com a Justiça Global. De acordo com o levantamento feito pelas duas organizações, que utiliza uma metodologia própria, apenas nos dois meses que antecederam o primeiro turno das eleições deste ano, o número de episódios de violência política quase se igualou à quantidade de casos registrados nos primeiros sete meses do ano. Entre 1 de agosto e 2 de outubro de 2022, as organizações registraram 121 casos de violência política. Ou seja, até o primeiro turno, duas pessoas foram vítimas de violência eleitoral por dia.

“O acirramento da violência é crescente e segue um padrão consolidado antes mesmo do período eleitoral. Existe um discurso público contra determinados grupos de pessoas, vindo principalmente da autoridade máxima do país, que incentiva outros atores a reproduzirem a violência política e eleitoral”, considera Barbieri. “Nós percebemos uma concentração de casos contra candidaturas que atuam na defesa dos direitos humanos. Ou seja, a violência está cada vez mais sofisticada, intensa e direcionada a determinados grupos de pessoas, que já estão apartados dos espaços de poder e decisão”, acrescenta.

A coordenadora da Terra de Direitos alerta ainda que os números de casos de violência política e eleitoral podem ser muito maiores do que mostram os levantamentos em razão da subnotificação das ocorrências.

Gisele também destaca que é muito difícil identificar quem são os agressores. “Mas em mais de 70% dos casos onde é possível identificar os agressores, eles são homens cisgênero brancos e muitos são agentes políticos”, informa.

Do total de ocorrências de violência eleitoral mapeados pela Pública, 51% (166) foram motivados por discordância política. Em 125 houve violência contra mulheres, 19 envolveram racismo e oito, LGBTfobia.

Um dos casos de violência mais explícitos, envolvendo armas de fogo, foi protagonizado pela deputada federal bolsonarista reeleita Carla Zambelli (PL), na véspera do segundo turno. Ela apontou uma arma para o jornalista Luan Araújo, que é um homem negro e apoiador do PT, e com a arma em punho o perseguiu pelas ruas de São Paulo, em plena luz do dia. O vídeo que mostra a cena viralizou. Zambelli chegou a afirmar que tinha sido empurrada por Araújo, mas o argumento foi desmentido por testemunhas ouvidas pela Pública e também por um vídeo que mostra a deputada caindo sozinha, após ter sido xingada pelo militante. O PSOL entrou com um pedido de cassação de Zambelli e a Polícia Federal investiga o caso.

Reprodução de vídeo que mostra Zambelli perseguindo militante do PT.
Reprodução de vídeo que mostra Zambelli perseguindo militante do PT

Violência eleitoral inédita

Desde 2019, quando Jair Bolsonaro assumiu a presidência, a violência eleitoral tem se tornado mais frequente no Brasil, atingindo um nível inédito na eleição de 2022, de acordo com o estudo “Violência política e eleitoral no Brasil“, produzido pelas organizações de direitos humanos Justiça Global e Terra de Direitos. “Enquanto, até o ano de 2018, uma pessoa era vítima de violência política a cada 8 dias, a partir de 2019 os episódios de violência foram registrados a cada dois dias. Apenas o ano de 2022 já registra 247 casos – ou seja, um caso de violência política é registrada a cada 26 horas”, informa a publicação. Além disso, o número de casos em 2022 (247) é cinco vezes maior do que o registrado em 2018 (46), quando houve a última eleição presidencial.  

A violência também costuma ficar mais frequente quando se aproxima o dia da votação, segundo um levantamento de casos de violência contra lideranças políticas, feito desde 2019 pelo Grupo de Investigação Eleitoral da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Giel/Unirio). Entre julho e setembro de 2022, período que inclui a campanha antes do primeiro turno das eleições deste ano, “foram registrados 212 casos em todo o país, o que representa um aumento de 110% em relação ao trimestre anterior.” 

O cientista político Felipe Borba, coordenador do Giel/Unirio, diz que a eleição de 2022 teve “um clima inédito de violência”. “Só por a gente estar discutindo violência política, já mostra que é uma eleição anormal”, analisa.  

Borba afirma que as disputas ideológicas e a polarização são inerentes à política brasileira, mas que este ano a situação adquiriu novos contornos. “Essa polarização política, que existe no Brasil desde 1989, tem sido alimentada por um clima de ódio, que diz que o adversário não é apenas um adversário, uma pessoa que pensa diferente, mas é acima de tudo um inimigo que pode ser eliminado. É um discurso que aparece em 2018 – “metralhar a petralhada”, “extirpar essa raça”, “bem contra o mal” –  e vai ganhando a sociedade”, explica. Para Borba, em 2022 o discurso de ódio foi alimentado pelo discurso da fraude eleitoral, que ganhou força nas últimas semanas. 

Violência em igrejas

Repetidos ataques violentos contra padres, pastores e fiéis, por discordância política, também formam o quadro de radicalização de atos violentos este ano. Registramos pelo menos quatro casos de agressões que aconteceram em igrejas, interrompendo celebrações religiosas. No dia 12 de outubro, apoiadores de Bolsonaro hostilizaram jornalistas e vaiaram o padre que celebrava missa durante a tradicional celebração no Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida, em Aparecida (SP), no dia que homenageia a padroeira do Brasil. O presidente Jair Bolsonaro (PL) estava presente para acompanhar as celebrações. 

Também, no dia 12, uma mulher interrompeu uma missa em Fazenda Rio Grande, no Paraná, acusando o padre de “pedir votos ao Lula”. O momento foi registrado em vídeo, no qual é possível ouvir o religioso dizendo, momentos antes da agressão, que “o Deus da vida nunca vai pactuar com as forças da violência” e criticando o uso “da religião para angariar votos”.

Em 23 de outubro, o bispo Dom Aldemiro Sena foi agredido verbalmente por uma apoiadora de Bolsonaro depois da missa na Catedral de Nossa Senhora da Luz, em Guarabira (PB). Um vídeo registrado por outro fiel mostra que o sacerdote pregava sobre a importância de votar “pela defesa dos pobres” e criticava o armamentismo, quando uma mulher começou a gritar ofensas. Segundo a diocese de Guarabira, a agressora continuou confrontando o bispo depois da missa, acusando-o de pedir votos para Lula. “Episódios de violência, como aquele sofrido pelo bispo de Guarabira, indicam a existência da perseguição do cristianismo autêntico, que se expressa em sua opção pelos mais pobres (Lc 6,20), vulneráveis (Jo 8,11), estigmatizados e marginalizados (Mc 1,40-41)”, diz um trecho da nota de repúdio divulgada pela diocese depois do episódio. 

Violência policial

Pelo menos 12 dos casos totais envolveram violência policial. Quatro deles tiveram o uso de de arma de fogo e três foram assassinatos ou tentativas de assassinato. Antes mesmo do segundo turno, no dia 17 de outubro, um tiroteio em Paraisópolis interrompeu um evento de campanha do então candidato, eleito governador de São Paulo e ex-ministro da infraestrutura de Jair Bolsonaro, Tarcísio de Freitas (Republicanos). O jovem Felipe Silva de Lima, que completaria 28 anos em 2 de novembro, foi baleado pelos policiais que faziam a segurança de Freitas no local e morreu a caminho do Hospital do Campo Limpo, a 6,9  km de Paraisópolis. 

De acordo com reportagem do The Intercept Brasil, que ouviu quatro testemunhas, o PM Henrique Gama dos Santos, que fazia segurança do candidato, efetuou disparos contra o jovem, que estaria desarmado. Nenhuma das armas apreendidas pela Polícia Civil, listadas no boletim de ocorrência, estavam em posse do rapaz. No dia 25 de outubro, a Folha de S. Paulo revelou um áudio em que um integrante da equipe de segurança do governador eleito exigia que o cinegrafista da Jovem Pan Marcos Andrade apagasse registros do tiroteio. Fabrício Cardoso de Paiva, agente licenciado da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e assessor de campanha do ex-ministro, foi quem deu a ordem, segundo o Intercept. Dias depois, o cinegrafista se demitiu da Jovem Pan e criticou Tarcísio de Freitas por expor sua imagem.

Em documento publicado no dia 25 e divulgado pela Ponte Jornalismo, o grupo Tortura Nunca Mais-SP afirma que “são fortes os indícios de que houve uma execução de Felipe Silva de Lima” e cobraram transparência da Polícia Civil sobre o andamento das investigações. Em um vídeo de oito minutos, publicado nas redes sociais, Tarcísio chamou de fake news as reportagens que acusam sua equipe de ter assassinado o jovem desarmado. Ele disse que o servidor licenciado da Abin solicitou a exclusão das imagens, num ato de “boa-fé”, para não comprometer a segurança das pessoas envolvidas na ação e “para que ninguém ali fosse vítima de retaliação depois”. 

A Agência Pública entrou em contato com a Secretaria de Segurança Pública do estado, pedindo um posicionamento em nome da SSP e dos agentes da Polícia Militar cedidos para a campanha de Tarcísio. Em nota, a secretaria informou que a Corregedoria da PM e o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (da Polícia Civil) “investigam os fatos e todas as circunstâncias havidas no local para cabal esclarecimento, não desprezando qualquer informação ou dados que possam contribuir para elucidação das questões de ordem penal ou administrativa”. Os envolvidos e testemunhas, de acordo com a nota, estão sendo ouvidos, e o inquérito corre em segredo de Justiça – por isso, os detalhes estão sendo preservados. 

Mais da metade das ocorrências de violência policial registradas pela Pública aconteceu no dia da votação no segundo turno. Em Niterói (RJ), a mesária Amanda do Nascimento, 29 anos, presidente de uma seção eleitoral, diz ter sido agredida por um policial militar durante a eleição. De acordo com Amanda, a discussão foi iniciada quando ela reclamou da conduta de um grupo de policiais, que conversavam alto enquanto um deles foi com o celular à cabine de votação antes da abertura da escola. Ela diz ter sido atingida por um celular no rosto e conduzida para a Delegacia de Niterói. 

Na noite do dia 30 de outubro, um policial militar bateu no rosto de uma mulher em Nepomuceno, Minas Gerais. Ela estava vestida de vermelho. De acordo com uma testemunha ouvida pela reportagem, o policial se chama Cássio Borges e a mulher agredida, Sarah Mendonça. A agressão foi registrada em vídeo que mostra sons de disparos e pessoas tossindo depois de a polícia atirar balas de borracha e bombas de efeito moral. “É isso que o povo recebe. Democracia não existe! Não existe democracia!”, diz uma mulher. O vídeo também mostra uma criança que teria desmaiado ao inalar fumaça. Ao menos outras duas pessoas precisaram ser socorridas depois da ação policial, segundo documentos do pronto socorro da cidade, acessados pela reportagem. A Polícia Militar de Minas Gerais foi contatada, mas não respondeu. 

Tiros contra carros, casas e comitês

Desde o começo das eleições, registramos ao menos 49 casos de violência patrimonial, como ataques a carros, casas e comitês de campanha. No Recife, uma casa e dois carros com adesivos de Lula e bandeiras do MST foram alvos de tiros dias antes do segundo turno. No dia 19 de outubro, o carro do vereador do Recife Joselito Ferreira (PSB), que tinha adesivos de Lula, foi atingido por quatro disparos no vidro frontal e lateral, no bairro do Barro. Ele não estava no veículo. O autor dos disparos foi o bolsonarista Roberto Cézar Loureiro Neto, 48 anos. 

“É lamentável esse acontecido, fiquei muito chateado [e] muito triste, mas não fiquei com medo. Vou continuar trabalhando, vou continuar na rua e vou continuar apoiando os candidatos que eu acho que devem ganhar”, disse o vereador Joselito na tribuna da Câmara Municipal, dias depois do ocorrido. O caso foi registrado pela Polícia Civil de Pernambuco como “coação com violência no exercício do voto” com motivação política.  Roberto Loureira foi solto após pagar fiança de R$ 1,2 mil. 

Casa e carros atingidos no Recife.
Casa e carro atingidos no Recife

Na mesma noite do dia 19, outros dois atentados foram registrados na capital pernambucana – um no bairro Ipsep, que fica perto do local onde aconteceu o atentado contra o carro do vereador. Uma casa com bandeira do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e um carro com bandeira do Lula, a 700 metros um do outro, foram alvos de tiros por volta das 00h15, segundo a CBN Recife. As vítimas, um aposentado de 75 anos e uma professora de 42, acreditam que houve motivação política. A delegada Ana Amélia de Carvalho Coelho, responsável pelo caso, afirma que os dois casos ainda estão sendo investigados. 

Violência contra pesquisadores e jornalistas

A violência contra pesquisadores também marcou as eleições de 2022. Durante todo o período eleitoral, registramos 99 casos de agressões a pesquisadores do Datafolha, um dos mais tradicionais institutos de pesquisas eleitorais do país. 

No dia 7 de outubro, um pesquisador foi ameaçado por um bolsonarista em Aracaju (SE). O agressor, que chegou a sacar uma arma, teria gritado “é Bolsonaro! Vocês têm que morrer!”. 

No dia 13, em Barra da Estiva (BA), uma pesquisadora do Datafolha foi agredida fisicamente por um homem que puxou seu crachá e a xingou. “Fiquei tão assustada que nem olhei para ver quem era, só segurei o crachá porque já estava me machucando, ele se virou xingando muitos palavrões, disse que estava de olho em mim desde cedo e que estava me seguindo, que o Datafolha é uma farsa e que eu estava inventando as pessoas contra o Capitão [Bolsonaro]”. 

Também no dia 13, em Ariquemes (RO), um grupo de homens segurou o braço de uma pesquisadora e tentou impedir sua passagem. “Quando eu tentava sair, seguravam meu braço. Creio eu que seja uma situação clara de assédio. Só consegui sair porque meio que dei uma corrida até a outra rua. Me abalou esse tipo de situação”, contou.

Reprodução
Reprodução
Breno Andreata/Agência Pública
Breno Andreata/Agência Pública
Breno Andreata/Agência Pública
Arquivo pessoal

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