Criada à revelia e sob protesto das organizações indígenas, a comissão temporária externa do Senado voltada para a crise humanitária Yanomami já gastou R$ 690 mil em duas viagens realizadas num espaço de duas semanas em abril. A maior parte dos valores (84%) foi paga pelo Senado ao Ministério da Defesa, que cobrou deslocamentos em aeronaves da FAB (Força Aérea Brasileira) e até um almoço servido à comitiva no pelotão do Exército de Surucucu.
Na última quinta-feira (4), a comissão decidiu ir além. Por maioria de votos, os senadores presentes à sessão acolheram um requerimento apresentado pelo presidente do colegiado, Chico Rodrigues (PSB-RR), a fim de realizar uma viagem “na região de Peixoto de Azevedo, Mato Grosso, com o objetivo de avaliar os processos da atividade garimpeira na região, bem como possíveis soluções alternativas e sustentáveis para os garimpeiros”.
Peixoto de Azevedo fica a 1.581 km em linha reta de Boa Vista (RR), capital do Estado no qual se localiza a Terra Indígena Yanomami. A comissão, porém, foi instalada no Senado com o objetivo de acompanhar “a situação dos Yanomami e a saída dos garimpeiros de suas terras”. O senador foi indagado pela Agência Pública na última quinta-feira, por meio de sua assessoria, sobre os gastos da comissão e a necessidade da viagem a Mato Grosso, mas não houve resposta até o fechamento deste texto.
Os custos das duas viagens foram obtidos pela Pública junto ao Senado e com base num documento de cobrança encaminhado à comissão pelo Ministério da Defesa. Assinado pelo comandante do Exército, o general Tomás Paiva, o ofício diz que a viagem ocorrida entre os dias 12 e 14 de abril custou R$ 358 mil e a de 28 de abril e o almoço, R$ 225 mil. “Solicito as gestões necessárias para a descentralização do valor total de R$ 583 mil, a título de ressarcimento a este Ministério”, escreveu o general.
Em resposta a um pedido de informações, a assessoria do Senado informou à Pública que foram gastos, nas duas viagens, R$ 64 mil com passagens aéreas e R$ 42,2 mil com diárias de servidores do Senado.
O segundo deslocamento foi cumprido por apenas um dos parlamentares da comissão: o próprio presidente, Chico Rodrigues — técnicos do Senado e do Ministério dos Povos Indígenas integraram a comitiva. A quase nula participação dos parlamentares evidencia o descompasso dentro da comissão. Senadores da base do governo, como Eliziane Gama (PSD-MA), Humberto Costa (PT-PE) e Leila Barros (PDT-DF), não participaram das duas viagens. No primeiro deslocamento, ocorrido entre os dias 12 e 14 de abril, participaram apenas Rodrigues, “Dr. Hiran” e Mecias de Jesus (Republicanos-RR), todos parlamentares de Roraima que já deram declarações favoráveis aos garimpeiros e à mineração.
Comissão foi orientada pelo Ministério da Saúde a adiar viagem, mas a manteve
A segunda viagem só ocorreu após os senadores da base governista terem deixado de participar da primeira, tendo em vista manifestações contrárias de indígenas e do Ministério da Saúde. Em 12 de abril, um dia antes do embarque dos parlamentares de oposição ao governo Lula de Brasília para Boa Vista, a Urihi Associação Yanomami dirigiu um ofício em caráter de urgência para o senador Chico Rodrigues. A carta alertava sobre “um surto de malária” na região de Surucucu, onde “alguns profissionais de saúde e indígenas foram acometidos”. Era o destino inicial da viagem programada pelo comando da Comissão.
“Neste momento a necessidade é de ampliar esforços com o maior número de profissionais para resolutividade da situação exposta, e que é imprescindível evitar a entrada de equipes que não sejam da saúde para o território, até que se estabilize a situação. Dessa forma, reforçamos que a visita não seja realizada neste momento, em razão da situação de vulnerabilidade dos povos Yanomami da região do Surucucu”, escreveu o presidente da Urihi, Junior Hekurari Yanomami, autor de inúmeras denúncias durante o governo de Jair Bolsonaro que alertavam sobre o genocídio em curso no território indígena.
No dia 11, a chefia de gabinete da presidente da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), Joênia Wapichana, já havia feito um alerta semelhante. A Funai anexou uma mensagem eletrônica recebida do COE (Centro de operações de Emergência) Yanomami, montado em janeiro pelo Ministério da Saúde para enfrentar a crise humanitária. O documento confirmava um “surto de malária no território Yanomami” e falou da “necessidade de ampliar nossos esforços para encaminharmos o maior número de profissionais ao território”. O COE informou que “não aprova essa solicitação” da Comissão do Senado e que “sugerimos os dias 20 a 22 de abril para entrada dos mesmos”, ou seja, os parlamentares.
O COE mencionou de novo uma “dificuldade” nas ações de logística e lembrou que atuava para “evitar o envio de equipes que não sejam de saúde para o território”. Em outras palavras, para o COE, se os senadores queriam de fato contribuir para debelar a crise Yanomami, a melhor decisão naquele momento agudo era não ingressar na terra indígena nem mobilizar meios aéreos que deveriam ser usados pelo pessoal da Saúde. Os senadores Eliziane, Costa e Barros, além de Zenaide Maia (PSD-RN), pediram que a comissão fizesse alterações na viagem e que evitasse entrar na terra indígena.
Mas Chico Rodrigues manteve o deslocamento, com apoio do relator, “Dr. Hiran”. Diferentemente do programado, porém, a comissão não fez visitas a aldeias dentro da terra indígena. Permaneceu em Boa Vista (RR), onde visitou hospitais e a casa de saúde indígena e promoveu reuniões com representantes de órgãos públicos, como a Polícia Federal e o Ministério Público Federal.
Além das viagens, a comissão passa a ser usada para pressionar politicamente autoridades do governo Lula. Só após a posse do novo governo, em janeiro, é que vieram a público as imagens que confirmaram desnutrição grave e causas evitáveis como a diarreia entre crianças e adultos Yanomami, descortinando a tragédia sanitária que se desenrolou ao longo do governo de Jair Bolsonaro em grande parte motivada pela invasão garimpeira. Para o senador Hiran, contudo, a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, é que deve ser “convocada” pela comissão para “prestar esclarecimentos” sobre supostas “acusações públicas direcionadas à população de Roraima e ao governador do Estado”, Antonio Denarium, um apoiador declarado de Bolsonaro. Nenhuma alta autoridade do governo de Jair Bolsonaro apareceu para falar sobre a crise Yanomami sob pressão da Comissão. O ex-presidente da Funai, Marcelo Xavier, por exemplo, foi convidado, mas deixou de comparecer.
O senador usa como argumento para a “convocação” uma entrevista coletiva concedida por Sonia Guajajara em Roraima em 1º de maio. Ele escreveu no requerimento que Sonia afirmou que Roraima “tem como principal atividade econômica o garimpo ilegal, e que o Governo Estadual insiste em apoiar a permanência da extração mineral ilícita em terras indígenas”.
A fala de Sonia foi diferente. Em 1º de maio, ela foi indagada por jornalistas sobre leis aprovadas pró-garimpo por Denarium, conforme amplamente noticiado pela imprensa. Segundo a transcrição feita pelo jornal Valor Econômico, Sonia respondeu: “O Estado não pode insistir em permanecer, apoiar ou incentivar a permanência desses garimpeiros no território Yanomami. O Estado não pode ter como principal atividade econômica uma atividade ilícita”. Ou seja, ela disse o que o Estado não poderia fazer.
A ministra teria dito ainda, segundo a transcrição, que “é isso que Roraima precisa entender, que o governador [Antonio Denarium] precisa entender. Ele não pode ficar fomentando a atividade ilícita porque alguém vai pagar por isso. Se ainda há uma conivência de tentar legalizar, ele está incentivando. Esses garimpeiros acreditam que o governador vai poder permitir a permanência deles lá e eles não vão porque tem a Constituição que rege. Estamos aqui com respaldo legal, em nenhum território indígena há permissão para se explorar minério”.