Sem providência há quase 10 anos, ordem judicial para a retirada de invasores da Terra Indígena Alto Rio Guamá, no Pará, começa a ser cumprida pelo governo federal por meio de uma grande operação que envolve diversos órgãos e ministérios sob coordenação da Secretaria-Geral da Presidência da República. O governo deu um ultimato aos invasores para que deixem o território até o próximo dia 1º de junho. A partir de então, a operação diz que recorrerá à força policial. Em julho deverá ocorrer a destruição de acessos e instalações.
No último dia 24, a juíza federal de Paragominas (PA) Lorena de Sousa Costa acolheu o plano apresentado pelo governo – medida cobrada pelo Judiciário desde 2018 – e determinou “o perdimento dos bens e semoventes [animais] existentes dentro da área, a serem destinados em favor da coletividade indígena”, caso “não seja realizada a desocupação [voluntária] da área no prazo estabelecido”, ou seja, 1º de junho.
O governo estima cerca de 1.600 invasores em diversas porções do território com casas de madeira e de alvenaria, criações de animais, áreas desmatadas e roubo e venda de madeira. A operação mobiliza Ibama, MPI (Ministério dos Povos Indígenas), Funai, Polícia Federal, PRF (Polícia Rodoviária Federal), Incra, Abin (Agência Brasileira de Inteligência), Força Nacional e Ministério da Defesa. A operação deverá ser anunciada à imprensa ainda nesta semana pela ministra Sonia Guajajara (Povos Indígenas).
Com cerca de 280 mil hectares, a Alto Rio Guamá é considerada um dos mais antigos territórios indígenas reconhecidos pelo Estado brasileiro. Foi identificado e reservado ainda em 1945 pelo extinto SPI (Serviço de Proteção ao Índio) e homologado pela Presidência há 30 anos, em 1993, no governo de Itamar Franco. Hoje vivem no território cerca de 2.500 indígenas das etnias Tembé, Ka’apor e Awá-Guajá em cerca de 41 aldeias.
A Agência Pública teve acesso ao comunicado que será distribuído aos invasores da terra indígena. Ele afirma que em 9 de abril de 2014 a Justiça Federal reconheceu, em decisão, o pedido de retirada dos invasores feito em uma ação civil pública ajuizada pelo MPF (Ministério Público Federal). Porém, a União não agiu. “Como não houve o cumprimento da ordem judicial, houve o pedido de pagamento de multa pela União, e foi ordenado que a União, o Incra e a Funai adotassem medidas para a retirada de todos os não indígenas da área”, diz o texto. O comunicado adverte que os invasores “precisam deixar a área e levar todos os seus pertences, inclusive as criações de animais, até o dia 1 de junho. Contamos com a compreensão e colaboração de todos”.
América Tembé, liderança da TI Alto Rio Guamá, disse que é grande a expectativa sobre a operação de desintrusão da terra indígena. Ela falou à Pública durante o ATL (Acampamento Terra Livre) realizado em Brasília na semana passada. Cerca de 60 Tembé integraram a comitiva que veio de ônibus, em três dias de viagem. O grupo manteve conversas com o governo federal para saber da retirada dos invasores.
“Isso é um sonho nosso, isso é uma luta nossa que tem 40 anos para a desintrusão da nossa terra demarcada. Ela já foi demarcada e vai ser ‘desintrusada’ agora. A Justiça está indo lá e disseram que é para nós não nos envolver. Já entraram lá, entregaram as cartas para os colonos e agora já foram mesmo para desapropriar [retirar]”, disse América. A liderança Tembé disse que a presença dos invasores tem enormes consequências para a vida dos povos indígenas no Alto Rio Guamá.
“[A invasão] traz muitos problemas. É a falta de caça, é a nossa liberdade de ir e vir na nossa área. E conflitos mesmo de roubo de madeira. E até plantio de maconha, de droga. Desmatamento. Sem contar a poluição dos rios, dos igarapés, porque eles querem transformar tudo em pasto, né? Porque nós dependemos da área para nosso alimento, nossa cultura, nosso artesanato”, disse América. Ela calculou em 1.500 famílias de invasores, não 1.600 invasores, como estima o governo.
A liderança Tembé disse ainda que, ao longo do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), a comunidade indígena pediu providências, mas nada foi feito. “Pedimos muitas vezes, nós nunca tivemos êxito. Ele mesmo [Bolsonaro] dizia ao público que não demarcava um milímetro de terra indígena, então não adiantava nem pedir. Nós questionamos muito”, disse América.
Durante o governo Bolsonaro, a invasão se aprofundou e passou a contar com uma ajuda aberta de prefeituras da região, como a de Garrafão do Norte (PA). No final do ano passado, em recomendação dirigida à prefeitura de Garrafão, o Ministério Público Federal escreveu que “os ocupantes irregulares” da terra indígena em sua maioria “praticam a agricultura ou pecuária no interior da terra indígena, em total desconformidade com as normas constitucionais e legais”. O MPF afirmou ainda que, durante uma reunião realizada em 8 de novembro passado entre MPF e a prefeitura, “restou evidenciado que a municipalidade, por meio da Secretaria de Agricultura, promove o auxílio dos moradores que ocupam irregularmente” a terra indígena, “inclusive com a disponibilização de trator para auxiliar os agricultores em trabalhos agrícolas”.
O MPF advertiu que “essa atuação do município favorece a permanência da utilização irregular da terra invadida, em total afronta aos direitos” indígenas.
Em 2021, uma outra recomendação do MPF advertiu as prefeituras de Garrafão, Viseu e Nova Esperança do Piriá a suspenderem “obras irregulares, que incluem aterros sanitários, escolas e rede de energia elétrica, em áreas onde invasores da terra indígena se instalaram”. Em recomendação à concessionária Equatorial Energia, o MPF pediu que a empresa paralisasse imediatamente “a execução de todo e qualquer projeto de instalação de rede elétrica dentro da terra indígena”. Em julho de 2022, o MPF ajuizou uma denúncia contra a empresa por empreendimento em outra terra indígena, a Cachoeira Seca.
De acordo com o MPF, a invasão à terra indígena Alto Rio Guamá começou durante a ditadura militar, quando o governo transferiu para a região grupos de colonos de outras partes do país. Houve uma longa disputa territorial e também uma batalha judicial que envolveu Funai e Incra. O órgão responsável pela reforma agrária chegou a tentar cortar uma parte da terra indígena, mas a disputa foi resolvida em 1993, com a homologação presidencial. Naquela época, o governo identificou a presença de cerca de 1.100 não indígenas dentro do território.
No decorrer dos anos, o governo passou a indenizar e dar novos lotes, fora da terra indígena, aos ocupantes de boa-fé. De 1997 a 2013, o Incra transferiu aproximadamente 522 famílias para assentamentos da reforma agrária na região. Em 2003, no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o governo fez uma operação e retirou cerca de 190 famílias.
Mas muitos invasores permaneceram na terra indígena. Em 2014, o Judiciário acolheu a ação civil pública ajuizada pelo MPF em 2012 e determinou a saída dos invasores. Quatro anos depois, o juiz federal de Paragominas (PA) Paulo Cesar Mon Anaiss condenou a União a apresentar um plano de desintrusão num prazo de 120 dias, sob pena de uma multa diária de R$ 2 mil até o máximo de R$ 400 mil.
Também em 2018, fartos de aguardar providências do governo federal, os indígenas Tembé criaram seu próprio grupo de “Guardiões da Floresta” com o objetivo de fazer a fiscalização da terra indígena Alto Rio Guamá, a exemplo da experiência de outros povos, como os Guajajara. Em setembro de 2020, um grupo de 40 “guardiões”, com os rostos pintados, uniformizados e pilotando motos, cercou nove invasores e deu-lhes um ultimato para deixarem o território.
Depois da ação, o cacique Sergio Muti Tembé gravou uma mensagem para o então presidente da República: “Bolsonaro, presidente, você tem que ter o respeito com a nossa população indígena. Foi eleito, alguns indígenas, nós votamos em você. Você tem que ter um respeito pela nossa cultura, nossa tradição. Quando vocês chegaram aqui no Brasil, nós já estávamos aqui, vocês vieram invadir. Então, presidente, tem que ter respeito, junto com seus deputados, senadores, parlamentares. Porque nós somos seres humanos, somos gente e somos brasileiros. Peço para você ter um respeito por nós. Não venha nos massacrar, não venha falar coisa de nós”.