Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a newsletter Brasília a quente, enviada às terças-feiras, 8h. Para receber as próximas edições por e-mail, inscreva-se aqui.
A chamada “CPI das ONGs”, que começou a funcionar no Senado, no último dia 14, inteiramente sob o controle de parlamentares da direita, é um dos subprodutos do bolsonarismo já típicos destes tempos tenebrosos de fake news: supostamente “escandaloso”, mas apenas enviesado e amador. A começar pela própria finalidade, que subverte um conceito aceito há muitos anos no Congresso Nacional e no Judiciário. Para existir, sempre se diz em Brasília, é preciso que uma CPI indique um fato determinado a ser investigado. No caso da CPI das ONGs, ele inexiste.
Se o leitor tem alguma dúvida, convido à leitura da finalidade formal: “Investigar, no prazo de 130 dias, a liberação, pelo Governo Federal, de recursos públicos para ONGs, e OSCIPs, bem como a utilização, por essas entidades, desses recursos e de outros por elas recebidos do exterior, a partir do ano de 2002 até a data de 1º de janeiro de 2023, a concentração desses recursos em atividades-meio, de forma a descumprir os objetivos para os quais esses recursos foram destinados originalmente, o desvirtuamento dos objetivos da ação dessas entidades, operando inclusive contra interesses nacionais, casos de abuso de poder, com intromissão dessas entidades em funções institucionais do poder público e a aquisição, a qualquer título, de terras por essas entidades”.
Se o objetivo de uma investigação fosse apresentado nesses termos por um aluno de primeiro ano em uma escola de formação de investigadores, receberia um rotundo zero do professor. É inacreditável que uma CPI tenha sido aprovada com esse escopo, mas foi por maioria de votos dos senadores. O que revela a qualidade técnica do Senado eleito em 2018 e 2022.
A CPI abrange nada menos que 21 anos de repasses da União para todas as ONGs e Oscips no país. Seguramente estamos falando de milhares de ONGs e de bilhões e bilhões de reais. Quem investiga tudo não investiga nada. Um estudo divulgado há quatro anos pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apontou que o governo federal repassou R$ 118,5 bilhões em apenas oito anos (2010-2018) para as organizações da sociedade civil (OSCs), estimadas em 820 mil no país. Elas atuam em uma imensa gama de setores, como saúde, religião, educação e pesquisa, desenvolvimento e defesa de direitos, cultura, recreação, assistência social e até associações patronais profissionais.
É um verdadeiro oceano de dados, mas os senadores da direita e da extrema direita não veem problema em iniciar não uma investigação, mas uma pescaria – feita com recursos públicos, claro, pois as atividades de uma CPI são suportadas pelo contribuinte. Quando um delegado ou um membro do Ministério Público apresenta ao Judiciário, em suas apurações, um pedido tão amplo quanto o dessa CPI, juízes costumam repetir em suas decisões: “Pescaria não vale!”. No Senado, está valendo.
O responsável pela instalação da CPI, além do próprio presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), foi o senador Plínio Valério (PSDB-AM), um radialista e ex-vereador de Manaus (AM) eleito senador em 2018 na onda da suposta “Nova Política”. Valério foi eleito espalhando a teoria conspiratória de que países estrangeiros “estão por trás” das ONGs e querem extrair as riquezas da Amazônia. Essa informação já diz tudo sobre a CPI que ele tentava criar desde 2019. Alegava que era necessário investigar esse setor, mas sempre evitando mencionar que o próprio Senado já fez tal “investigação” não uma, mas duas vezes, a saber: CPI das ONGs em 2001 e CPI das ONGs, em 2007. Esta última teve uma vida tão esdrúxula para os padrões do Congresso que durou nada menos que três anos, só encerrada em novembro de 2010.
O discurso incendiário de Valério no Congresso e nas redes sociais dá a entender que o recebimento de recursos públicos pelas ONGs, em especial da Amazônia, ocorre completamente fora do radar das autoridades brasileiras, como se as entidades fossem um “Estado paralelo”. O plano de trabalho do relator, Márcio Bittar (União-AC), também diz que uma das finalidades da CPI é “tornar transparentes a relação [sic] entre o Estado, de um lado, e, de outro, as entidades de direito privado que, na Amazônia, recebem verbas do Estado para o desempenho de funções públicas”.
O que os senadores evitam explicar é que diversos órgãos públicos de fiscalização e controle, como a Controladoria-Geral da União (CGU) e o Tribunal de Contas da União (TCU), além do Ministério Público e da Polícia Federal, quando acionados, já exercem o acompanhamento do repasse das verbas públicas. Detalhes desses repasses também podem ser acompanhados por qualquer cidadão por canais eletrônicos de transparência, como o Portal da Transparência e o Sistema de Convênios (Siconv) do governo federal. O próprio Senado já tem uma comissão específica para o controle dos gastos públicos, a de Transparência, Governança, Fiscalização e Controle e Defesa do Consumidor.
As CPIs não substituem o papel dos órgãos fiscalizadores. Elas são acionadas para aprofundar uma linha investigatória na qual, por alguma outra razão, só os poderes do Parlamento poderão avançar. É por isso que se cobra um fato determinado para que CPIs sejam criadas.
A CPI das ONGs não parou no campo das intenções sobre sua “finalidade”. Na semana passada, a comissão aprovou uma série de requerimentos genéricos e absurdamente amplos apresentados pelo relator, Bittar. O Ministério do Meio Ambiente recebeu a seguinte solicitação da CPI: “Cópia integral de todos os contratos, termos de parceria, termos de cooperação e instrumentos congêneres firmados entre o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima com organizações não governamentais e com organizações da sociedade civil de interesse público que atuam ou atuaram na região amazônica, no período de 1º de janeiro de 2002 a 1º de janeiro de 2023, bem como os documentos referentes à fiscalização dos contratos, termos de parceria, termos de cooperação e instrumentos congêneres” e a “listagem de todas as organizações não governamentais e organizações da sociedade civil de interesse público que atuam ou atuaram na região amazônica no período de 1º de janeiro de 2002 a 1º de janeiro de 2023”.
Requerimentos semelhantes foram enviados a inúmeros setores do governo Lula, como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o Ibama, o ICMBio, o BNDES, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), os ministérios da Justiça e das Relações Exteriores e a CGU. Foram acionados também os governos de nove estados e de sete prefeituras. Para responder às demandas extensas e genéricas da CPI, serão necessárias horas e horas de pesquisa, quiçá dias, inúmeros servidores públicos, atenção e energia.
Mas a CPI não se importa com isso, é uma metralhadora giratória. E que já tem produzido respostas involuntariamente engraçadas. A comissão pediu a uma série de cartórios no Amazonas “informações sobre as compras de terras por organizações não governamentais e organizações da sociedade civil de interesse público utilizando-se nesse sentido de nomes de cidadãos brasileiros”.
Um deles, o Cartório Souza, lá de Barcelos (AM), já respondeu com uma notável celeridade. “Tendo como parâmetro a nomenclatura ‘ONGs’, procedi com buscas no Livro Indicador Pessoal da Serventia Extrajudicial de Barcelos, não tendo localizado nenhuma propriedade registrada com os parâmetros de busca informados.” A resposta do cartório é perfeita: a CPI falou em “ONGs”, e nenhuma “ONG” comprou nada. O cartório pode pesquisar a partir do nome do proprietário da matrícula ou do número do documento. Como a CPI não indicou nada disso, nada foi encontrado. É a pescaria da CPI.
No tema dos depoimentos, o relator da CPI fez convites a um conhecido negacionista da emergência climática mundial, o meteorologista Luiz Carlos Molion, a um garimpeiro, José Altino Machado, e a vários integrantes do governo Bolsonaro, como o ex-presidente da Funai Marcelo Xavier, o ex-presidente do Ibama Eduardo Bim e os ex-ministros do Meio Ambiente Ricardo Salles e Joaquim Leite. Está montado o palco para um show de desinformação. Certamente para tentar causar um constrangimento, aprovou o convite a uma legítima liderança indígena, Davi Yanomami.
O problema para os parlamentares da direita e da extrema direita é que “o pau que dá em Chico também dá em Francisco”. Único senador que apresentou requerimentos inteligíveis, Beto Faro (PT-PA) solicitou informações sobre os programas “Abrace o Marajó”, lançado pela ex-ministra bolsonarista, pastora evangélica e atual senadora Damares Alves (Republicanos-DF) e substituído pelo atual governo, e o “Pátria Voluntária”, liderado pela ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro e alvo de críticas da área técnica do TCU. Então que ninguém reclame.