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Big Techs fazem lobby contra o direito a consertar as coisas

Apple, Microsoft, Google e Amazon têm jogado pesado para barrar leis que obrigam a fornecer peças e manual

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15 de outubro de 2023
06:00
Este artigo tem mais de 1 ano

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Eu nunca tive um som estéreo quando era pequena, nem um videogame. Quando era criança, e ainda durante minha adolescência, ter um desses eletrônicos era um acontecimento. Minha irmã Cintia ganhou dos nossos pais um som estéreo, com vitrola e tudo – e a máquina ainda funciona hoje, tantos anos depois. 

Não porque éramos crianças particularmente cuidadosas. Nos anos 1970 e 1980, os eletrônicos eram feitos para durar. Quando um aparelho de som quebrava, você ia e consertava em uma oficina de reparos. E sempre valia a pena. 

Hoje, os aparelhos que a gente usa são programados para quebrar depois de pouco tempo – em especial os aparelhos de celular ou laptops. Isso se chama obsolescência programada, um modelo de produção que planeja a troca constante de aparelhos pelos consumidores. Imagino que você já tenha ouvido esse termo; agora, há um fato menos conhecido no esquema da obsolescência programada: a criação artificial de uma escassez do reparo. 

As empresas de tecnologia, algumas das que mais lucram no planeta Terra, são campeãs em criar essa falsa escassez de reparos. Tente consertar um iPhone da Apple, por exemplo, e o que você vai encontrar são pouquíssimas assistências técnicas autorizadas, com valores tão exorbitantes que muitas vezes vale a pena comprar um aparelho novo – o que, nos EUA, leva uma média de dois anos e meio. E não há peças para encontrar em lugar nenhum. Coisas simples, como baterias e portais USB, não são disponibilizadas para lojas e redes que atendem diretamente os consumidores e técnicos independentes.  

Isso não é por acaso, mas um projeto cuidadosamente elaborado para vender mais, produzir mais, exaurir mais recursos, lucrar mais. Nos EUA, o grupo de defesa dos consumidores U.S. PIRG estimou que, se os americanos ficassem com seus smartphones por mais um ano, isso seria o equivalente a retirar 636 mil carros da rua em termos de emissões de gás carbônico e economizaria o equivalente ao material usado para construir um Boeing 747 a cada 17 minutos.  

Consertar as coisas que quebram é um direito de qualquer consumidor que pagou por elas. Afinal, se você não tem o direito nem de consertar um objeto pelo qual pagou, e é obrigado – por forças de mercado, claro – a devolver o seu aparelho para a fabricante quando ele dá um problema, naqueles esquemas de “reciclagem” que garantem um descontinho para comprar o próximo e manter você viciado na mesma marca, o aparelho de fato pertence a você?     

Essas são algumas das perguntas incômodas levantadas pelo crescente movimento que defende o “direito ao conserto”, ou “right to repair” em inglês, um grupo de associações de consumidores e donos de assistências técnicas que têm articulado com deputados a aprovação de leis nos Estados Unidos que garantam a oferta de peças e obriguem as empresas a ajudar seus clientes a consertar seus aparelhos. 

Porém, como praxe na era do oligopólio das empresas de tecnologia, Apple, Microsoft, Google e Amazon têm jogado pesado para barrar essas leis. Segundo uma reportagem da Bloomberg, até 2021, 27 estados chegaram a discutir tais projetos de lei, mas metade deles havia desistido de colocar em votação devido – adivinhe? – ao pesado lobby dessas empresas.

O ritual a gente já conhece por aqui e lembra tristemente o lobby contra o PL das Fake News. Lobistas bem remunerados pagos por essas empresas – charmosos, bem falantes – gastam todo seu latim para convencer que a lei irá “acabar” com seu negócio e colocar todo mundo em risco. 

“Permitir que terceiros não autorizados tenham acesso a informações de diagnóstico confidenciais, software, ferramentas e peças colocaria em risco a segurança dos dispositivos dos consumidores e colocaria os consumidores em risco de fraude”, disse David Edmonson, vice-presidente do grupo de lobby TechNet, em um comunicado.

Eles acabam vencendo, justamente porque ainda hoje os legisladores entendem muito pouco sobre tecnologia. Pouco importa que a própria Comissão Federal de Comércio americana tenha afirmado que “não há nenhuma evidência empírica” de que as lojas não autorizadas sejam mais propensas a usar dados de clientes indevidamente ou a causar mais riscos de segurança cibernética. 

Em 2019, o estado de Washington tentou passar uma lei do tipo. Veja o que aconteceu. O lobby pesado da Microsoft incluiu uma conferência online com legisladores. Nela, o próprio presidente da Microsoft, Brad Smith, disse que a lei violava a propriedade intelectual da empresa. Mais tarde, a empresa argumentou que a lei ameaçava a sua própria existência. A lei nunca foi votada, e um dos membros do comitê estadual que a debatia foi trabalhar na Amazon, segundo a Bloomberg. 

Mas não é só no lobby que as empresas contra-atacam. Como mostrou uma reportagem recente da Folha de S.Paulo, um engenheiro colombiano que virou influenciador na internet ensinando as pessoas a consertar dispositivos da Apple teve que encarar pesada pressão da multinacional para parar de fazer seus populares vídeos. Wilmer Becerra tem uma rede de assistência técnica que funciona em nove países da América Latina e mais de 12 milhões de seguidores em redes sociais. 

Ciente do sucesso que o colombiano fazia em diversos países, a Apple enviou uma notificação extrajudicial para que ele deixasse de exibir o logo nos vídeos. Ele respondeu que já não o fazia. A empresa então ofereceu que ele se tornasse um revendedor autorizado. Wilmer declinou o convite porque uma das diretrizes da Apple para parceiros autorizados é não fazer reparos de peças com defeito, e sim trocá-las, o que vai contra tudo o que ele diz no canal – ele é um grande defensor do direito ao reparo.

O direito de consertar as coisas que estão quebradas avançou nos EUA, no Reino Unido e na União Europeia. Em meados de 2021, Joe Biden assinou uma ordem executiva que exige que empresas de tecnologia forneçam aos usuários manuais, peças e ferramentas para reparos. No mesmo ano, a União Europeia determinou que peças de reposição deveriam estar disponíveis por até dez anos. Ainda está em discussão uma lei que obrigue as empresas a realizar reparos diretamente ou através de terceiros. 

Mas o lobby segue pesado, e há alguns meses o governo americano incentivou, através de uma carta, fabricantes de carros a violar uma lei semelhante aprovada em Massachusetts em 2020 que tratava especificamente de peças automotivas.  

“É incrivelmente frustrante”, resumiu a diretora da U.S. PIRG, aquela organização que mencionei no começo deste texto. Como tudo nessa luta hercúlea do povo contra as megacorporações: um passo para a frente, dois passos para trás. 

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