Nos municípios da Região Metropolitana de São Paulo, ao menos 231.420 famílias estão ameaçadas de despejo, segundo o Observatório de Remoções, projeto do LabCidade, laboratório de pesquisa e extensão da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). O levantamento, obtido com exclusividade pela Agência Pública, compreende dados colhidos de 2017 até junho deste ano, através de mapeamento colaborativo, que usa denúncias, informações divulgadas pela imprensa, pesquisa de campo e leitura de dados oficiais.
Entre a divulgação do último levantamento sobre despejos na Grande São Paulo, no fim do ano passado, e junho deste ano, o LabCidade identificou mais 8.027 famílias que passaram a ser ameaçadas de despejo. Nesse mesmo período, segundo o laboratório, 552 famílias foram atingidas em 12 novas remoções identificadas. Desde 2017, quando a pesquisa começou a ser feita, o número de famílias removidas é de 41.308.
Entre julho de 2021 e outubro de 2022, a prática de desocupações coletivas tinha sido suspensa pela Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828, que proibia despejos durante a pandemia. Em outubro do ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu não prorrogar a medida. Os dados divulgados agora pelo LabCidade também estão relacionados com a queda dessa medida.
O balanço do Observatório de Remoções aponta que a Polícia Militar e a Guarda Civil Metropolitana (GCM), juntas, são os principais agentes responsáveis pela realização das remoções mapeadas entre janeiro de 2021 e junho de 2023. Somente a PMSP foi responsável por 14 remoções.
O mapeamento do LabCidade também mostra que os conflitos de posse são responsáveis por 62,5% dos registros de remoção e em 34,2% das ameaças de despejo na região.
É o que acontece em Cajamar, na Grande São Paulo, aproximadamente 40 quilômetros do Centro da capital, onde cerca de 96 famílias estão sob constante ameaça de despejo na Ocupação dos Queixadas III, na região do bairro Panorama, organizada pelo movimento Luta Popular.
A ocupação existe há mais de quatro anos. São pequenas moradias de madeira, com raras exceções de casas de alvenaria. Um processo de reintegração de posse da área, movido pela suposta herdeira do terreno, uma professora aposentada, está em tramitação no TJSP desde 2019, quando a ocupação começou.
Christian Willy, de 34 anos, mais conhecido como Jesus, coordenador da ocupação, é técnico de informática e está desempregado. Ele diz que o terreno não tem dono e que, segundo relatos de vizinhos, estaria abandonado há 40 anos. Também que era utilizado para desmanche de carros e tráfico de drogas.
“Ela tinha pedido usucapião em 2017. Uma pessoa que é dona não precisa pedir usucapião”, diz o coordenador. Maria de Oliveira, conhecida como Dona Nelma, tem 65 anos e está na ocupação desde a primeira semana. Antes, ela morava no Paraná. Dona Nelma diz que nunca havia morado em uma ocupação antes e que no começo teve vontade de voltar para o Paraná, mas acabou ficando por conta dos filhos, que moram perto de Queixadas.
Segundo a moradora, a renda de um salário mínimo de aposentadoria que recebe não seria o suficiente para pagar aluguel e cobrir outros custos básicos. Ela está apreensiva com a situação da ocupação e diz que não sabe o que vai fazer se tiverem que sair. “Espero que eles deem um cantinho pra gente morar. Se for pagar aluguel, vou pagar, mas vou ficar sem comer e beber água”, diz
A atualização de dados do Observatório de Remoções do LabCidade ainda inclui sentenças relacionadas a conflitos de posse, identificadas entre janeiro de 2017 e dezembro de 2022, e conflitos de aluguel, entre janeiro de 2018 e dezembro de 2022. Através desse levantamento, o laboratório concluiu que a categoria “risco” – que sinaliza perigo para pessoas que ocupam o local – é responsável por 13,1% dos registros de remoções na Grande São Paulo. Contudo, essa justificativa é mais utilizada para ameaças de despejo. São 30,9% de citações do fator “risco” como justificativa nos processos de remoções ainda não concluídos.
Segundo Matheus Martins, pesquisador do LabCidade que participou do levantamento, a categorização “risco” é utilizada para facilitar as remoções. “Isso ficou muito claro durante o período de suspensão das remoções, na pandemia, quando se alegava que havia um risco ou que as pessoas estavam nesse local, você podia desocupar, mesmo com a ADPF em vigor”, explica.
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Martins usa como exemplo o desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, no centro de São Paulo, em 2018, que, segundo ele, deu início a “um forte processo de criminalização das ocupações na região central, utilizando o risco de desabamento como forma de despejar as famílias que ocupam os prédios, sem que se apresente uma solução efetiva para sanar esse risco”.
“Existem formas de minimizar o risco e tem que se pensar em quais momentos ele vai ser minimizado ou até mesmo eliminado para as pessoas que moram ali. Em muitos momentos o risco é utilizado para a remoção, principalmente quando existem interesses imobiliários ou políticos nessas áreas”, analisa o pesquisador.
Incertezas e ameaças
Giovanna Beatriz tem 20 anos e mora na Ocupação Queixadas com o namorado há pelo menos três. “Não estou aqui por opção, é mais necessidade. Se não, não passaria pelas coisas que eu passo. O povo tira a gente como vagabundos”, comenta.
Ela conta que os moradores da ocupação são pressionados pela suposta herdeira do terreno, que tenta a reintegração de posse na Justiça. “Às vezes a gente não dorme, ela coloca um som bem alto de corneta de madrugada, falando de ocupação, despejo”, conta.
Moradores da Queixadas, ouvidos pela reportagem, relataram que a ocupação já foi alvo de ameaças, e que chegaram a ser hostilizados com bomba de gás e spray de pimenta. Eles também relataram xingamentos racistas. A reportagem não conseguiu contato com a suposta herdeira do terreno. O coordenador da ocupação, Christian Willy, diz que a própria prefeitura de Cajamar age com preconceito contra os moradores do local, “porque a administração pública teria negado a existência da Queixadas”.
“A lei diz que a prefeitura tem que dar uma alternativa de moradia, construir casas populares ou pagar um aluguel social”, diz o coordenador da ocupação. “Mas a solução que foi apresentada foi de pagar aluguel por algum tempo apenas para dez 0 famílias, o que não foi aceito”, conta.
De acordo com Christian Willy, como o processo de reintegração de posse está em tramitação, a qualquer momento as famílias podem ser obrigadas a deixar o território. “Acho que pior é a espera de uma resposta do que uma resposta ruim. Uma resposta ruim você consegue se organizar e correr atrás, a espera vai te matando aos poucos. É muito complicado”.