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No início de fevereiro circularam em endereços oficiais do governo federal na internet peças de uma campanha publicitária destinada a exaltar supostos feitos do Ministério da Justiça e da Segurança Pública (MJSP) no ano passado. Uma das mensagens divulgadas no perfil do governo no X (antigo Twitter) dizia que as “nossas polícias federais” realizaram “19 mil operações só no último ano”.
Se verdadeiro, o número representaria 52 operações policiais por dia, incluindo sábados, domingos e feriados. É uma tarefa obviamente impossível para as duas “polícias federais” sob controle do MJSP, a Polícia Federal (PF) e a Polícia Rodoviária Federal (PRF). Na PF, cada uma de suas operações envolve dezenas, às vezes centenas de servidores.
Na sexta-feira, dia 23, fiz perguntas ao Ministério da Justiça, à Secom, à PF e à PRF, mas não houve nenhum esclarecimento até a publicação desta coluna.
A hipótese mais provável é que o conceito de operação policial tenha se banalizado nos balanços oficiais. Atos corriqueiros da polícia passam a ser chamados de “operações”. Isso não seria novidade. Em uma entrevista concedida na campanha eleitoral de 2010, a candidata Dilma Rousseff citou que “mais de mil” operações foram realizadas pela Polícia Federal de 2003 a 2010 nos governos Lula I e II. Soube-se que o número estava turbinado por atividades rotineiras da polícia, como repressão à pesca ilegal, blitz em empresas de segurança privada e até reforço no policiamento em dia de eleição.
A contabilidade criativa da PF e do Ministério da Justiça viveu seu esplendor nos anos do governo de Jair Bolsonaro. No relatório de gestão de 2022, mas divulgado em 2023 com a chancela do então ministro Flávio Dino, o Ministério da Justiça cita números inacreditáveis de “operações de polícia judiciária deflagradas pela PF”. Teriam sido 6.700 em 2020, 9.700 em 2021 e 27 mil em 2022. Ou seja, só em 2022 teriam ocorrido 74 operações por dia. É uma alegação alucinante.
Mas, deixando de lado os exageros absurdos, é significativo ver o governo Lula III recorrer às operações da PF como um dado positivo da sua gestão. Nada errado nisso, por sinal. Foi o governo Lula I que, em 2003, inaugurou a era das grandes operações da PF no país.
A primeira do gênero passou quase despercebida pelos brasileiros. Batizada de Sucuri, foi desencadeada no Paraná em 12 de março de 2003 a fim de investigar a participação de servidores públicos no crime de contrabando. Prendeu 36 pessoas, incluindo 22 policiais federais. Anos depois, o então diretor-geral da Polícia Federal Paulo Lacerda disse que a decisão foi começar “cortando na própria carne”.
Lacerda foi o cérebro da inovação e recebeu todo o apoio do então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, um renomado advogado criminalista e muito próximo de Lula. Eles entendiam que o Brasil precisava de uma nova estratégia de combate aos crimes de maior complexidade.
A ideia foi inspirada nas forças-tarefa adotadas em vários países, como os Estados Unidos, e também no Brasil, embora, no passado, sem grande eficiência. A estratégia foi reunir, numa mesma investigação, o maior número possível de policiais federais e servidores de diferentes órgãos públicos de fiscalização e controle com a participação e o acompanhamento do Ministério Público Federal (MPF) e a supervisão do Judiciário.
A ordem era pegar os casos mais “cabeludos”, inclusive aqueles que ficaram para trás, por falta de interesse político, e tocar adiante dentro do novo modelo. Paralelo a isso, o quadro de pessoal da PF saltou de 9.200 mil servidores para 14,2 mil nos dois primeiros governos de Lula (2003-2010).
Vinte anos atrás, a imagem da Polícia Federal era mais ligada à apuração de crimes transfronteiriços, como o narcotráfico internacional e o contrabando. Nos anos 1970 e 1980, durante a ditadura militar, o órgão havia protagonizado o vergonhoso papel de aplicação da censura sobre artes e espetáculos.
A atuação da PF nos crimes de colarinho branco era pontual e sem maiores consequências políticas. Uma notável exceção foi o inquérito que apurou o esquema PC-Collor, presidido, aliás, pelo próprio Paulo Lacerda no início dos anos 1990. Essa investigação foi a primeira a desenhar as rotas de lavagem de dinheiro por meio de doleiros.
A partir da segunda metade dos anos 1990, casos de grande repercussão, como as denúncias de propina nas privatizações e de compra de votos para a emenda da reeleição presidencial, tiveram grande destaque na imprensa, mas na esfera criminal foram convenientemente empurrados para debaixo do tapete.
A PF chegava a abrir os inquéritos, mas não havia força institucional nem política para que se chegasse às condenações criminais. O Judiciário era, no mínimo, suave com o empresariado e os políticos de alto coturno. Dizia-se que, para ser preso no Brasil, só sendo “preto, pobre e puta”. O próprio ex-presidente Fernando Collor foi absolvido pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
A partir do governo Lula I, o cenário sofreu uma grande mudança. Ao mesmo tempo que a Justiça Federal, no início dos anos 2000, criava suas varas especializadas em crimes financeiros, a PF passou a atuar com mais força contra os crimes de colarinho branco, em especial a corrupção. Agora com o apoio institucional do centro do governo.
Esse redirecionamento estava em linha com propostas que o candidato Lula havia apresentado nas campanhas eleitorais que disputou até 2002. No seu programa de governo de 1994, por exemplo, a palavra corrupção é citada 21 vezes. O texto diz que “o combate à corrupção e à privatização do Estado é o solo comum para essa concatenação de perspectivas, pois além de contar com evidente apoio popular, essa luta já criou dinâmicas próprias no âmbito dos três Poderes”.
“Diante disso, o Governo Democrático e Popular compromete-se, com a sociedade organizada, a passar o país a limpo, impulsionando não apenas a exclusão da vida pública dos corruptos, como também a punição exemplar dos corruptores, com a defesa do confisco do que foi obtido pelo enriquecimento ilícito”, diz o programa de governo.
Nos anos 1980 e 1990, a cada escândalo de corrupção a imprensa corria a ouvir parlamentares e líderes do PT, pois o partido havia levantado a bandeira de “passar o país a limpo”. Foi o primeiro grande partido a tomar essa iniciativa, que deve ter pesado a favor da própria eleição de Lula em 2002.
O partido havia sido determinante no processo de impeachment contra Collor, em 1992. O discurso anticorrupção do PT ganhou ampla simpatia no eleitorado.
Assim, quando tomou posse na Presidência, em janeiro de 2003, Lula prometeu que “o combate à corrupção e a defesa da ética no trato da coisa pública serão objetivos centrais e permanentes do meu Governo”. “É preciso enfrentar com determinação e derrotar a verdadeira cultura da impunidade que prevalece em certos setores da vida pública”, disse Lula na posse.
Três meses depois, em março de 2003, a Operação Sucuri causou um impacto a princípio mais restrito à própria PF. Mas uma segunda operação, em outubro de 2003, é que realmente sacudiu o país, ganhando amplo espaço nos telejornais e jornais. De forma inédita, um juiz federal de São Paulo se tornara alvo de uma ampla operação da PF sob a suspeita de “venda de sentenças”. Era algo inusitado, que mobilizou a atenção de centenas de jornalistas ao longo de semanas.
Depois da Operação Anaconda, é difícil achar um ano, talvez um mês, em que a PF não tenha sido foco de enorme interesse da população, da imprensa e da política. Os brasileiros se acostumaram a ver ministros, senadores, deputados, banqueiros, empreiteiros e empresários se tornarem alvos de investigação ou mesmo presos. A PF chegou a níveis inéditos de apoio popular.
Em 2005, o escândalo do “mensalão” não estourou a partir da PF, mas o órgão continuou investigando esses e outros fatos potencialmente ruins para a imagem do governo. Isso não impediria que Lula mencionasse, durante a campanha eleitoral de 2006, os feitos da PF na hora de rebater as críticas de leniência ou envolvimento de membros do seu governo com a corrupção.
No início de tudo, em 2003, o delegado Paulo Lacerda colocou as grandes operações sob responsabilidade da Diretoria de Inteligência Policial (DIP), que funcionava na sede da PF, em Brasília, vinculada à direção-geral. Tal arranjo fortaleceu politicamente a deflagração das operações mais sensíveis.
Em 2007, porém, o substituto de Lacerda na direção-geral da PF, Luiz Fernando Corrêa, hoje diretor da Abin, decidiu descentralizar as operações, permitindo que as superintendências nos estados criassem e desencadeassem suas próprias grandes investigações. A medida representou mais liberdade de ação aos delegados. O efeito colateral, contudo, foi uma verdadeira corrida entre as superintendências para saber “quem faria mais operações”. Isso está na origem dos números turbinados em seus balanços.
Com o passar do tempo, as operações da Polícia Federal geraram apoio e rejeição, amor e ódio, alegria e tristeza. Dependendo do alvo e dos métodos de suas investigações, a PF passa de heroína a vilã em questão de poucos cliques. Políticos que hoje condenam a operação sobre a conspiração de Bolsonaro pelo golpe de Estado, por exemplo, são os mesmos que vibraram com a Operação Lava Jato – e dela abusaram.
Sem entrar no mérito dos argumentos de lado a lado, caso a caso, o fato é que a PF se tornou um ator político de maior relevo. Como consequência, cada uma de suas operações deve ser alvo de enorme atenção da cidadania para o bem, em primeiro lugar, da própria PF. Ela precisa continuamente rever, atualizar e aprimorar seus métodos. Numa operação policial, um pequeno erro é sempre um grande erro com graves repercussões sobre pessoas e empresas.
A atividade policial e o Judiciário que a ampara e analisa também sofrem influência política direta e indireta em maior ou menor grau. Especialmente por isso devem ser acompanhados com lupa.
A relação da Polícia Federal com o governo Lula III atualmente está em céu de brigadeiro. São muitos os motivos, como a investigação que desnuda a conspiração golpista de Bolsonaro. Uma mudança de cenário, porém, não deve ser motivo de crise nem de surpresa. Tem sido assim há 21 anos e não parece que vai parar tão cedo.