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Escrevo frequentemente neste espaço sobre a emergência climática, mas se tem um problema tão global, onipresente, com múltiplas facetas e de difícil solução quanto o aquecimento global é a crise da poluição plástica. O caro leitor com certeza já se deparou com algumas das estatísticas mais assustadoras que mostram como estamos sufocando o planeta com plástico.
Cito algumas. Desde os anos 1950, o mundo produziu 9,2 bilhões de toneladas de plástico, em um processo que escalonou ao longo das décadas, batendo 460 milhões de toneladas em 2022, segundo dados do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), número que poderá triplicar até 2060 se nada for feito. Dos 7 bilhões de toneladas de resíduos plásticos gerados globalmente até hoje, menos de 10% foram reciclados.
Estima-se que atualmente estejam acumuladas entre 75 e 199 milhões de toneladas de plástico nos oceanos. Sem mudanças na forma como produzimos, utilizamos e eliminamos esses produtos, a quantidade de resíduos plásticos que entram nos ecossistemas aquáticos poderá quase triplicar, passando dos cerca de 9 a 14 milhões de toneladas por ano, segundo dados de 2016, para algo entre 23 a 37 milhões de toneladas por ano até 2040.
Também de acordo com o Pnuma, cerca de 1 milhão de garrafas plásticas são compradas por minuto e até 5 trilhões de sacolas plásticas são usadas por ano em todo o mundo. Metade de todo o plástico produzido é desenhado para ter um uso único – ou seja, é descartado logo depois de usado.
Antes fossem só as garrafinhas, os canudinhos, as sacolas plásticas. Para eles há alternativas, é possível eliminá-los. Mas o problema é que o plástico passa por toda a economia. Enquanto escrevo este texto, olho ao meu redor. Tudo tem plástico, em suas mais diversas formações: do computador ao tubinho da caneta; do fone de ouvido aos meus óculos; na espiral do calendário de mesa, no potinho onde trouxe o lanche da tarde, no frasco de álcool, nas minhas roupas. E, infelizmente, dentro de mim mesma.
Os milhões de toneladas de resíduos vão parar no ar, na água, nos bichos, em praticamente todo lugar do planeta. Os microplásticos, que são partículas menores que 5 mm, já foram encontrados em nuvens, o que pode afetar o clima; em rochas da ilha de Trindade, que fica no meio do oceano Atlântico; no gelo da Antártida; na placenta, no pulmão e no coração humanos (até agora o órgão mais profundo e fechado em que o material já foi encontrado).
E, assim como a crise climática, a do plástico tem um protagonista bem conhecido: a indústria de combustíveis fósseis, mais precisamente a petroquímica. O petróleo é a origem de quase a totalidade dos plásticos. De modo que, claro, uma crise alimenta a outra.
Há duas semanas, o jornal britânico The Guardian divulgou um estudo do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley, dos Estados Unidos, estimando que as emissões de gases de efeito estufa provenientes da produção de plástico podem triplicar até a metade do século, passando a responder por 20% do que resta para a Terra do chamado orçamento de carbono – que é a quantidade máxima de gases que ainda podemos emitir a fim de limitar o aquecimento global a 1,5 ºC.
O jornal aponta que essas emissões provenientes da indústria plástica, que, prevê-se, continuarão crescendo nas próximas décadas, podem minar os esforços para controlar a crise climática.
Foi diante desse quadro cada vez mais intrincado que representantes de 170 países estiveram reunidos entre os dias 23 e 29 deste mês em Ottawa (Canadá) na quarta rodada de negociações que visam elaborar um instrumento legalmente vinculante para atacar a poluição plástica mundial. Esses esforços começaram em 2022 e devem terminar na quinta rodada, em novembro, na Coreia do Sul, quando se espera que seja definido um tratado.
Se esse marco legal for mesmo estabelecido, já vem sendo considerado tão importante quanto o Acordo de Paris, que definiu, em 2015, esforços mundiais para conter o aumento da temperatura do planeta. Não que os países já tenham conseguido entrar nos trilhos para alcançar esse objetivo – pelo contrário, nossas emissões de gases de efeito estufa continuam subindo, mas ao menos um mandato para isso já existe.
Em linhas bem gerais, um dos maiores embates em torno da negociação sobre a poluição plástica se dá principalmente sobre quão abrangente vai ser esse tratado. Alguns países, como o grupo autodenominado Coalizão de Alta Ambição (que inclui 60 nações, como Ruanda, Peru, União Europeia e Gana), defendem que é preciso estabelecer regras para todo o ciclo desses materiais: da produção ao uso até o descarte, contendo, inclusive, metas para a redução da quantidade de plástico produzida.
Há um entendimento de que é preciso ter estratégias que vão desde o desenho do produto. Trabalhar, por exemplo, no nível dos polímeros, a fim tanto de reduzir a própria produção quanto de garantir que as coisas sejam mais duráveis, reutilizáveis e efetivamente recicláveis. A verdade é que a maioria não tem reciclabilidade, por isso vira lixo mesmo. É o caso dos plásticos de uso único, que ou não podem ser reciclados ou nem compensam (como as malditas bandejinhas de isopor) e acabam não tendo mercado.
Depois, claro, é preciso garantir meios para que a reciclagem e o descarte adequado, além do tratamento de resíduos, de fato ocorram. E não só em país rico, mas em todo o mundo.
Já para outros países, em especial os que têm as empresas petroquímicas mais fortes, como os Estados Unidos, basta basicamente resolver essa última etapa que o problema estará resolvido. Essa é a visão apoiada pela indústria, que ficou evidente um pouco antes de a reunião no Canadá ter começado. Em entrevista ao Financial Times, Karen McKee, chefe de soluções de produtos da ExxonMobil, disse que “o problema é a poluição, não é o plástico. Um limite na produção de plástico não nos servirá em termos de poluição e meio ambiente”.
Ao final da reunião, praticamente não se avançou nesse aspecto. “Houve bastante discussão a respeito, mas os países que não querem envolver a produção mantiveram sua posição”, me disse a negociadora-chefe do Brasil na reunião, a diplomata Maria Angélica Ikeda. “Ainda assim, trabalharam no texto que prevê a produção, o que talvez sinalize alguma possibilidade de solução de compromisso ao fim das negociações. Mas ainda é prematuro prever qual poderia ser o resultado”, disse.
Apesar disso, o encontro terminou com um certo alívio de não ter sido um fracasso. As partes concordaram em fazer mais algumas reuniões intermediárias antes da sessão final, na Coreia, justamente para tentar aparar as arestas e avançar em um texto.
Segundo Ikeda, um dos pontos-chave será a discussão sobre o financiamento, considerado um “ponto de importância aguda para os países em desenvolvimento poderem implementar o tratado”, como ela explica. Também estarão em debate aspectos técnicos, como o uso de produtos químicos considerados de preocupação e o desenho do produto, com foco na reciclabilidade e no reúso.
O Brasil, que também tem uma indústria petroquímica importante, foi acusado de ter “se mostrado menos ambicioso” e de estar “morno” nas negociações. O país não descarta que haja algum entendimento em torno de limites à produção, mas tem sido cauteloso no tom. Ikeda disse que o governo tem consultado pesquisadores de diversas áreas para poder tomar uma decisão baseada na ciência. Perguntei se o país poderia concordar com eventuais propostas, por exemplo, de banimento de alguns tipos de plásticos.
“Tudo vai depender dessa análise que a gente vai fazer, mas a gente está aberto a considerar várias propostas que falem que precisa eliminar, [mas] a gente não sabe que produto que é nem o que ele contém, mas tudo isso, sim, a gente está aberto a discutir e a gente só quer ter uma avaliação”, afirmou a diplomata.
A ver nos próximos meses para onde vai essa discussão. Nesse meio-tempo, de uma coisa a gente tem certeza: a produção de plástico continuará subindo.