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A tragédia que se abate sobre o Rio Grande do Sul não tem precedentes. A quantidade de chuva que caiu nos últimos dias e ainda cai no estado é extrema e as consequências, idem. As mortes já chegaram a 100 e ainda há mais de uma centena de desaparecidos. Mais de 1 milhão de pessoas foram afetadas. Este já é considerado o maior desastre climático do estado.
Esses números impressionantes e as imagens que mais parecem de desastres provocados por furacões ou tsunamis podem gerar uma falsa ideia de raridade, de azar. “Choveu como nunca antes, não tinha como estar preparado para isso” é a frase mais usada para justificar calamidades como esta. Mas não é acaso. Já era sabido, já era esperado. E, eu sinto muito dizer isso, vai acontecer de novo. E de novo. E não só com os gaúchos.
Não me entendam como alarmista nem pessimista. A ciência alerta há muito tempo que o aumento da ocorrência de eventos extremos é uma das principais consequências das mudanças climáticas. A quantidade surreal de gás carbônico que se acumula na atmosfera – por causa das atividades humanas –, e aquece o planeta, altera todo o funcionamento do sistema climático. A Terra estar mais quente significa mais energia na equação. Calor é sinônimo de tragédia.
O Rio Grande do Sul, pela sua localização geográfica, é particularmente sensível aos fenômenos naturais El Niño e La Niña. Daí que é relativamente comum a alternância de secas e chuvas intensas por lá. Mas o aquecimento global vem piorando isso. Assim como o desmatamento. E, por mais que muito dessa nova realidade se traduza em situações que parecem nos pegar de surpresa, os cientistas já estimavam que seria assim. As tragédias consecutivas que se acumulam desde o ano passado não se deram por falta de aviso.
O site Intercept Brasil lembrou nesta segunda-feira, 6, um estudo que foi encomendado no governo Dilma que já alertava para os riscos de enchentes no Rio Grande do Sul. O projeto “Brasil 2040” falava também sobre as vulnerabilidades do agronegócio, principalmente no estado, e também das hidrelétricas, o que batia de frente com os planos de expansão elétrica do governo. Acabou sendo engavetado em 2015 sem que nenhuma medida fosse tomada a respeito (conto essa história no quinto episódio do podcast Tempo Quente, que lancei com a Rádio Novelo em 2022).
Não precisou chegar a 2040. Nem só esse estudo alertou sobre isso. Pesquisadores locais, como Francisco Aquino, climatologista da UFRGS, mostram que os eventos extremos já estão se intensificando, sem que nada tenha sido feito para evitar mortes e perdas. No ano passado, o Rio Grande do Sul já tinha sido o estado com o maior número de decretos de situação de emergência e de calamidade pública relacionados à chuva no Brasil.
Um levantamento da Agência Pública contabilizou que, ao longo do ano passado, o governo federal reconheceu, em todo o país, decretos do tipo 1.073 vezes; 433 deles foram em municípios gaúchos, cerca de 40% do total. No período, pelo menos 71 pessoas morreram em decorrência dos temporais no estado.
Só que uma coisa é o aquecimento global, os danos ambientais, as previsões científicas, outra é o que a gente faz com elas. Sabendo o que vem pela frente, é preciso agir: primeiro para tentar evitar o pior, mitigar o problema – que se traduz, basicamente, em reduzir as emissões de gases que causam o aquecimento global.
Depois, é preciso se adaptar para proteger a população. Porque, mesmo se a gente zerasse as emissões hoje – o que está, infelizmente, muito longe de acontecer –, esses gases, principalmente o CO2, ficam muito tempo agindo na atmosfera, o que significa que ainda vamos ter de lidar com os danos por um bom tempo.
É preciso para já criar, entre outras coisas, estruturas mais resilientes, tirar as pessoas das áreas de risco, oferecer moradias seguras, saneamento básico, elaborar bons sistemas de alerta e rotas de escape, aumentar a cobertura verde de cidades de modo a não só melhorar o conforto térmico e reduzir os efeitos das ondas de calor, mas também para proteger encostas e margens de rios para que eles não fiquem assoreados e não transbordem. É muito trabalho.
A especialista em política climática Natalie Unterstell, do Instituto Talanoa, resumiu a situação em suas redes sociais: “O que está acontecendo no Rio Grande do Sul hoje é a nossa nova realidade e não uma ‘triste exceção’. Precisamos internalizar que estamos dependendo de infraestrutura, sistemas, políticas, casas feitas para um clima que não existe mais. Estamos dependendo de sistemas inaptos a nos proteger”.
Em nota técnica sobre a tragédia, o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) também ressaltou esse despreparo. “Podemos afirmar que os desastres gerados por chuvas intensas são consequência de atividades humanas. Construções em áreas com risco de inundações, que já foram inundadas em setembro de 2023, voltaram a ser inundadas novamente em maio de 2024; porém, com maior número de fatalidades”, diz o órgão.
A nota se refere a cidades como Roca Sales e Muçum. Destruídas nas tempestades do ano passado, foram novamente atingidas agora. Populações que tiveram suas casas destruídas naquela época, estão mais uma vez desabrigadas.
“Estruturas hidráulicas que protegem a cidade de Porto Alegre não resistiram às ondas de inundações e romperam, o que sugere que foram subdimensionadas ou que não se considerou que os volumes de chuvas poderiam aumentar com o tempo”, continuam os pesquisadores.
E alertam: “A falta de resiliência de Porto Alegre frente aos extremos de clima e mudanças climáticas foi detectada em 2023, e este é o caso de outras grandes cidades que podem não estar preparadas para extremos climáticos como os ocorridos em 2023 ou nas próximas décadas. Assim, as mudanças climáticas podem aumentar o cenário de risco de desastres em áreas urbanas do Brasil, nesta década, como já registrado nas cidades de Petrópolis (RJ) e Recife (PE), em 2022, em São Sebastião (SP) e no Vale do Rio Taquari (RS) em 2023, e em Porto Alegre, em 2024”.
Só que as ações ainda vão no sentido contrário da prevenção necessária. Tanto as emissões continuam subindo quanto não temos planos de adaptação em curso. No caso específico do Rio Grande do Sul, apesar de isso não ser uma exclusividade local, leis ambientais vêm sendo fragilizadas. O governador Eduardo Leite alterou 480 pontos do Código Ambiental do estado em 2019, como conta esta reportagem do ICL.
Uma reportagem importantíssima da Pública do ano passado mostrou que o governo do estado engavetou diversos planos para lidar com as mudanças climáticas.
Por outro lado, deputados federais do estado, que bem fariam se estivessem brigando no Congresso por políticas que protejam seus eleitores de desastres como os dos últimos nove meses, estão agindo para enfraquecer as leis nacionais em prol apenas do agronegócio.
No ótimo episódio desta terça-feira, 7, do podcast O Assunto, Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas no Observatório do Clima, relata como a bancada parlamentar do RS tem um histórico de votações para reduzir a proteção ambiental.
Neste mesmo momento, 25 projetos de lei e três emendas à Constituição tramitam no Congresso que flexibilizam a legislação ambiental. São alvo, por exemplo, o Código Florestal – a principal lei do país que protege a vegetação nativa –, o licenciamento ambiental e até o financiamento da política ambiental. O Observatório do Clima apelidou os projetos de “Pacote da Destruição”.
De acordo com reportagem da Pública sobre o pacote, “dois PLs se destacam como especialmente prejudiciais ao Rio Grande do Sul”. Um deles pode levar à destruição de ⅓ dos Pampas, segundo análise. Os dois projetos estão em uma lista lançada pela Frente Parlamentar Ambientalista com 23 projetos considerados prejudiciais e que, na opinião do grupo, deveriam ser arquivados por “impulsionarem a degradação ambiental e agravarem a crise climática e a ocorrência de catástrofes”.
Bem, não custa lembrar que o próprio agronegócio do estado vem sofrendo perdas atrás de perdas com os eventos extremos. O setor, no entanto, prefere dar ouvidos para um negacionista climático.
O meteorologista Luiz Carlos Molion, professor aposentado da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) que no ano passado disse, em depoimento na CPI das ONGs, que havia um “alarmismo incrível” em torno do El Niño e que o fenômeno não ia causar seca na Amazônia nem tempestades no Sul do país – apenas alguns dias antes de essas tragédias ocorrerem –, é sempre convidado para dar palestras para produtores.
No fim de abril, ele esteve no Fórum Norte Gaúcho do Trigo e Milho, na cidade de Getúlio Vargas, onde disse que, no trimestre de abril, maio e junho as chuvas devem ficar abaixo da média na região de Passo Fundo. De novo, acho que nem preciso dizer que Passo Fundo está entre as cidades atingidas agora, né? Também foi assim nas chuvas de setembro do ano passado.
A realidade se impõe.
A crise climática precisa ser o novo imperativo das políticas públicas, dos planos econômicos e dos planejamentos estratégicos de infraestrutura. As cidades terão de ser reconstruídas e não dá para fazer as obras do jeito que elas sempre foram feitas. É preciso considerar que o clima é outro. Assim como não dá mais para eleger pessoas que não tenham como diretriz estruturar o país, os estados e municípios para proteger suas populações do que está por vir, sempre com base na ciência.
Não dá pra eleger deputados que defendem um único setor, em um pensamento curto-prazista em que vale tudo pra hoje e o amanhã a gente vê depois. O amanhã está aqui, meus caros. Que essa tragédia terrível esteja nas mentes de todos nós nas próximas eleições.
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O leitor mais atento deve se lembrar que anunciei minhas férias na semana passada. Fiz uma interrupção para escrever este texto por entender que não dava para me ausentar diante da gravidade do que está acontecendo. Nos vemos de volta em junho. Espero.