“Boa noite, estou com dores na perna esquerda, será que pode ser início de trombose? Alguém já passou por isso?” “Mais alguma aqui do grupo aplica E.C.P. no peito?” Em dezenas de grupos do Facebook sobre hormonização, onde homens e mulheres trans trocam informações pipocam mensagens sobre o cipionato de estradiol — o E.C.P., como é mais comumente chamada a substância, de uso exclusivamente veterinário, no Brasil. O E.C.P. é um agente hormonal utilizado para correção do anestro (ausência de cio) em vacas, éguas, porcas e ovelhas. Em humanos, o uso pode provocar comprometimento do fígado, aumentar os riscos de câncer hepático, levar a trombose, infarto e derrame.
Um frasco do medicamento custa em torno de R$ 30 e pode ser comprado sem receita médica, pela internet, ou em qualquer loja de produtos veterinários. Em sua bula, o E.C.P.® informa que “fornece estradiol-17-B, provavelmente o mais potente dos estrógenos naturais”. Na maioria dos grupos do Facebook sobre hormonioterapia, falar sobre o E.C.P. é proibido, e as postagens são deletadas pelos administradores. Mas em alguns ainda é possível ler dezenas de comentários sobre a utilização da substância.
A Agência Pública ouviu mulheres trans que atualmente utilizam ou já utilizaram o E.C.P. em seus processos de transição hormonal. Elas relataram dificuldades para acesso à hormonização no SUS, e a falta de recursos financeiros para garantir atendimento na rede privada as empurra para a automedicação.
Mulheres trans entrevistadas pela Pública nesta reportagem também afirmam ter esperado mais de um ano por uma consulta com um endocrinologista para iniciar a transição hormonal pelo SUS. Quanto ao atendimento hospitalar, a espera por uma cirurgia de redesignação sexual pode ultrapassar dez anos, dizem.
No caso do E.C.P, os principais atrativos são o baixo custo do medicamento, a facilidade de acesso e, principalmente, a promessa de resultados supostamente mais rápidos.
Por que isso importa?
- As dificuldades no acesso ao Processo Transexualizador pelo SUS ou na rede privada expõe pessoas trans a riscos de saúde por automedicação. O E.C.P. é um medicamento veterinário que vem sendo usado como hormonioterapia, mas que pode levar a várias doenças, como infarto e câncer.
Desde 2008, o SUS oferece acesso ao processo transexualizador de forma gratuita, incluindo hormonização, cirurgias de modificação corporal e genital, e acompanhamento. Em 2013, o direito ao acesso incluiu também homens trans e travestis. Apesar disso, todas as entrevistadas disseram ter vivenciado episódios de discriminação e transfobia por parte de profissionais de saúde não especializados, quando tentaram a hormonização pela rede pública. Muitas não têm acesso a atendimentos especializados em pessoas trans nos municípios onde moram e algumas relataram que alguns profissionais se recusaram a atendê-las nas unidades não especializadas.
Segundo dados do Ministério da Saúde, atualmente, no Brasil, existem apenas 12 serviços ambulatoriais e 10 serviços hospitalares habilitados para prestar a atenção especializada no processo transexualizador, localizados principalmente em capitais ou em grandes cidades.
A terapeuta holística Ângela Palmieri, de 40 anos, iniciou sua transição hormonal aos 12 anos, escondida dos pais. Por recomendação de uma amiga, ela passou a se autoaplicar o Perlutan, um contraceptivo injetável que contém algestona acetofenida e enantato de estradiol, substâncias capazes de inibir a ovulação em mulheres cisgênero.
Por morar no interior do estado de São Paulo, no município de Guaraci, localizado a 460 km da capital, Ângela nunca teve acesso a uma unidade de saúde pública especializada no atendimento a pessoas trans. Diante da impossibilidade financeira de arcar com uma consulta particular ao endocrinologista, recorrer à automedicação era a única alternativa. Aos 32 anos, ela percebeu que o anticoncepcional Perlutan já não apresentava efeitos em seu corpo e decidiu procurar alternativas mais “eficazes”. Seguindo orientações de outras mulheres trans em grupos no Facebook, Ângela aplicou 1 ml de cipionato de estradiol por semana durante um ano, sem supervisão médica.
“Eu sentia muitas dores nas pernas e minhas veias das pernas começaram a ficar muito salientes. Foi aí que o médico disse que poderia ser o início de uma trombose.” Assustada, Ângela decidiu interromper o uso do E.C.P no mesmo dia. Ela relata também o desenvolvimento de lipomas no abdômen (“bolinhas” de gordura), nos braços e nos seios. Marcas que persistem em seu corpo até hoje, sete anos após interromper o uso da substância.
Segundo a médica endocrinologista especializada em saúde trans Anna Paula Oliveira, o maior perigo do E.C.P. é a amplificação de todos os efeitos adversos do medicamento. “Ele é feito para espécies com pesos muito diferentes, com uma metabolização diferente. É um hormônio usado para vacas, para equinos, seres vivos que pesam mais de 400 quilos. Eu não posso usar a mesma dosagem dessa substância para uma pessoa que pesa 60, 70 quilos. Você não sabe se vai dar certo ou errado. É quase uma brincadeira de roleta-russa”, argumenta a especialista.
De acordo com a endocrinologista, a prescrição de hormônios sintéticos para mulheres trans é particularmente sensível, pois elas os utilizam por períodos prolongados. “Enquanto as mulheres cisgênero recorrem à reposição hormonal durante a menopausa por um máximo de cinco anos, as mulheres trans podem fazê-lo por mais de 50 anos – casos que demandam monitoramento médico regular e, principalmente, o uso de hormônios com o menor potencial de efeitos colaterais”, diz. “Receitar estradiol injetável seria quase um ato de transfobia. É como se eu achasse que minha paciente trans merece um tratamento de pior qualidade, enquanto eu posso indicar pra ela o tratamento padrão-ouro”, completa.
O tratamento “padrão-ouro” ao qual ela se refere é o recomendado pela maioria dos endocrinologistas para mulheres trans que buscam iniciar a transição hormonal: o 17β-estradiol, um gel dermatológico prescrito para aliviar sintomas da menopausa. Esse composto é uma substância natural, semelhante àquela produzida pelo corpo humano. Por ser aplicado na pele, sua fórmula em gel facilita a dosagem hormonal presente na corrente sanguínea, evitando sobrecargas da substância.
A médica alerta para os riscos da automedicação, com combinações indiscriminadas de hormônios e anticoncepcionais injetáveis e orais. “Sabemos que hormônios em excesso podem resultar no comprometimento do fígado e aumentar os riscos de câncer hepático, trombose e acidentes cardiovasculares, como infarto e derrame”, alerta. A médica esclarece que muitas complicações se manifestam de forma silenciosa, e que só é possível descobri-las a tempo se houver acompanhamento médico e monitoramento contínuo por meio de exames de sangue.
Entretanto, realizar acompanhamendo médico na rede privada no Brasil custa caro, tanto para pessoas cis quanto trans. Uma consulta com um endocrinologista pode variar entre R$ 400 a R$600, segundo a plataforma de marcação de consultas Doctoralia, enquanto a bateria de exames laboratoriais exigida para monitorar a hormonização pode alcançar até R$ 1,6 mil em laboratórios particulares.
Transfobia na rede de saúde leva à automedicação
Ana Vitória Saraiva de Azevedo Pontes iniciou sua transição hormonal aos 19 anos, enquanto estudava Direito na Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa) em Mossoró, Rio Grande do Norte. Ela conta que a especialista se recusou a atendê-la e realizar os exames de sangue necessários para iniciar o processo de hormonização. “A médica sequer olhou nos meus olhos. Aquilo me machucou muito. A transfobia daquela médica me jogou definitivamente para a automedicação.”
Ela foi para o Ceará, onde a única unidade de saúde pública especializada em atendimento à saúde trans está na capital, Fortaleza, a mais de 200 km de distância de onde morava. Após dois anos testando diversas combinações de contraceptivos e bloqueadores de testosterona de forma experimental, Ana Vitória decidiu testar o E.C.P., por sugestão de uma amiga. “Hoje eu sei que fui irresponsável, mas na época eu não tinha outra opção. Ficava à mercê das informações que conseguia com minhas amigas ou na internet. Não tinha acesso a um acompanhamento médico e não tinha dinheiro para comprar o estradiol de uso humano manipulado que utilizo hoje.”
Ela aprendeu a administrar injeções intramusculares com amigas, uma vez que, conforme relata, os profissionais de saúde do posto local se recusavam a fazê-lo. Durante um ano, ela realizou aplicações quinzenais, injetando 3,5 ml do hormônio veterinário em sua própria coxa. “Era extremamente desconfortável, minhas mãos tremiam e eu mal conseguia empurrar o líquido, de tão grossa que era a substância.”
Na época, a estudante desembolsava aproximadamente R$ 20 por um frasco de 10 ml, que era suficiente para quase três aplicações. Após um ano utilizando o E.C.P., Ana Vitória começou a ter fortes dores abdominais, mudanças de humor, irritabilidade e crises de choro.
Foi somente em 2020 que Ana Vitória conseguiu sua primeira consulta com um médico endocrinologista, graças à criação de um ambulatório dedicado ao atendimento de pessoas trans na Faculdade de Medicina da Ufersa. Ela interrompeu a automedicação e começou a seguir um plano de transição hormonal com supervisão médica.
Atualmente, ela trabalha como servidora do Ministério Público no estado de Mato Grosso. Apesar da estabilidade financeira que tem agora, ela optou por interromper sua transição hormonal há dois anos. “Esse início de transição caótico e esses vários anos de automedicação mexeram muito com o meu emocional. É muita dor. Muitos impactos emocionais e físicos”, diz.
A médica endocrinologista especializada em saúde trans Anna Paula Oliveira explica que a hormonização para pacientes trans vai além de um procedimento estético. “A terapia hormonal é quase um tratamento de saúde mental. A maioria das pessoas trans tem interesse, sim, em ter essas modificações corporais para se sentirem mais confortáveis na própria pele, mais adequadas à sua própria identidade.”
Cobertura insuficiente no SUS
Quando uma pessoa trans chega à atenção básica do SUS, passa pelo acolhimento inicial, que direciona aos serviços especializados, que podem ser ambulatorial (psiquiatra, psicólogo, assistente social, endocrinologista ou clínico geral e enfermeiro), a partir de 18 anos, ou hospitalar (médico urologista ou ginecologista e cirurgião plástico), para pacientes com mais de 21 anos.
Mas o sistema ainda não consegue atender às demandas dos aproximadamente 3 milhões de pessoas trans e não binárias – quase 2% da população brasileira, segundo uma pesquisa realizada na Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB). Na região Norte, por exemplo, não há nenhum serviço ambulatorial habilitado pelo Ministério da Saúde, de acordo com o órgão. Quanto aos serviços hospitalares, apenas Pernambuco possui uma unidade habilitada para atender toda a população trans dos estados do Nordeste, o Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (HC/UFPE).
A escassez é ainda mais visível nos estados de Tocantins, Mato Grosso, Amapá, Roraima e Rondônia, onde nenhuma unidade ambulatorial ou hospitalar está habilitada a realizar esse tipo de atendimento especializado. A reportagem questionou o Ministério da Saúde sobre a ausência de serviços especializados para atender a população trans, mas o órgão não respondeu sobre essa questão.
Segundo Bruna Benevides, presidenta da Articulação Política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), a “despatologização da transexualidade é essencial para que haja a expansão e melhoria dos serviços de saúde destinados a essa população”. “O primeiro passo é deixarmos de ser vistas como doentes mentais. Isso vai fazer com que as pessoas trans possam, sobretudo, se sentir seguras para buscar o atendimento. Muitas não procuram o atendimento no SUS porque sabem que ali elas terão que admitir um diagnóstico que elas não reconhecem como legítimo”, explica.
O comentário da secretária faz referência à Portaria SAS/MS nº 457, de 2008, que regulamenta o processo transexualizador, utiliza o termo “transexualismo” (o sufixo “ismo”, quando relacionado a condutas humanas, possui conotação pejorativa e está relacionado a doenças) e classifica a condição como um “Transtorno da Identidade Sexual”. O programa foi atualizado e ampliado em 2013, mas a associação da transexualidade a um transtorno mental não foi retificada. Ambas as portarias continuam vigentes até hoje.
A transexualidade não é considerada como uma doença ou transtorno mental pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 2019. A atualização faz parte da 11ª revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-11) da OMS e entrou em vigor globalmente em janeiro de 2022. Apesar disso, a CID-11 ainda não foi implementada no Brasil.
Em outubro do ano passado, quase cinco anos após a atualização da OMS, o Ministério da Saúde criou um grupo de trabalho (GT) com o objetivo de revisar a portaria do processo transexualizador no SUS. Uma nova portaria foi elaborada e apresentada no lançamento do Programa de Atenção Especializada à Saúde da População Trans (Paes – PopTrans), em 1º de fevereiro deste ano. Porém, até o momento, o documento não foi publicado.
Por nota, o Ministério da Saúde informou que a “proposta de um novo programa voltado à população trans” para ampliar a oferta de cuidados na atenção especializada, deve ser lançada no segundo semestre.