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Racismo do Judiciário: da abordagem nas ruas ao processo penal

Absolvição de policiais por morte de criança em favela e abordagem de meninos em Ipanema evidenciam racismo da Justiça

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13 de julho de 2024
06:00

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A frase do governador Cláudio Castro para tentar justificar a abordagem truculenta de PMs a três adolescentes negros – filhos de diplomatas estrangeiros – revela o manual não escrito da polícia do Rio: “É muito complicado para o policial saber se é filho de um diplomata, de um rico”, disse em reação ao ofício do Itamaraty, pedindo ao governo do estado a investigação do caso, ocorrido em Ipanema na semana passada. 

“Como vai apontar armas para a cabeça de meninos de 13 anos?”, perguntou, incrédula, Julie-Pascale Moudouté, embaixatriz do Gabão e mãe de um dos garotos agredidos. 

Ela ainda não sabia que, no Brasil, a cor da pele de vítimas de qualquer idade desperta a abordagem brutal da polícia, só agora investigada por racismo por atingir os meninos negros “errados”, como sinalizou o governador. 

E isso não se restringe ao Rio; não vamos esquecer que o coronel da Rota que é candidato a vice-prefeito na chapa de Ricardo Nunes em São Paulo já disse frase semelhante: “Se ele [policial] for abordar uma pessoa [na periferia], da mesma forma que ele for abordar uma pessoa aqui nos Jardins [região nobre de São Paulo], ele vai ter dificuldade”, declarou o coronel Mello Araújo ao UOL. 

Os dois garotos brancos que acompanhavam os filhos dos embaixadores no Rio não sofreram o mesmo grau de violência. A mãe de um deles acusa os PMs de racismo. “As imagens, os testemunhos e o relato das crianças são claros! Não há dúvida! A abordagem foi racial e criminosa! Há anos frequentamos o Rio e nunca presenciei nada parecido no quadradinho de Ipanema com meus filhos”, escreveu Raiana Rondhon em um post nas redes sociais.

Bem longe de Ipanema, Rafaela Matos, mulher negra e periférica, sabe o que significam na prática as palavras do governador, pronunciadas no mesmo dia em que foram absolvidos sumariamente os policiais civis que em 2020 dispararam mais de 60 tiros contra a casa onde seu filho, João Pedro, de 14 anos, foi morto no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio.

Rafaela agora sabe mais: não apenas a abordagem da polícia, mas também “o processo penal é racista no Brasil”, como diz o defensor público Pedro Carriello, que atua como assistente da acusação, representando a família de João Pedro. 

Há quatro anos, Rafaela e o marido, Neilton, lutam por justiça pelo assassinato do filho em um processo opaco desde o início: o corpo do garoto ficou desaparecido durante 17 horas, sem nenhuma comunicação à família, até aparecer já no Instituto Médico Legal (IML). Testemunhas ouvidas no inquérito policial dizem que não houve perseguição policial ou troca de tiros com “traficantes”, como alegam os policiais. Por fim, uma perícia do Ministério Público constatou que a cena foi alterada depois do crime, com armas “plantadas” para forjar a presença dos “traficantes”, além de a reconstituição não coincidir com a dinâmica dos fatos relatada pelos policiais.  

Mas a juíza Juliana Bessa Ferraz Krykhtine não deixou que o caso sequer chegasse ao Tribunal do Júri, que é o órgão competente para julgar os crimes contra a vida. Optou por ignorar as provas produzidas pelo Ministério Público e absolver sumariamente os réus, acolhendo a absurda tese da defesa: os policiais mataram uma criança inocente dentro de casa em legítima defesa. 

“Essa absolvição sumária é um fato raríssimo e, neste caso, um equívoco, e vou explicar por quê. Há pelo menos duas vertentes na prova, e, se há pelo menos dois caminhos que podem ser seguidos, a juíza não pode abdicar, dizer que essa prova não vale, e compreender uma outra, e ela decidir. Pela soberania do júri, se existe uma versão acusatória com uma prova, se há uma versão defensiva com outra prova, quem vai decidir isso é o júri, senão ela subtrai a competência do júri”, explica Carriello. 

“Ela acredita que há uma legítima defesa em policiais reagindo e atingindo uma criança dentro de casa!”, indigna-se o defensor. “Mesmo que houvesse a presença dos alegados traficantes, a criança não está nesse quadro. A juíza faz uma opção política e ideológica e exclui a prova do Ministério Público, lícita e legítima, enquanto o destinatário final da prova é o júri”, afirma. “Se houvesse uma única versão, apoiada por testemunhas e provas, aí sim ela poderia absolver sumariamente os réus.” 

A Defensoria Pública e o Ministério Público do Rio de Janeiro vão recorrer ao Tribunal de Justiça para tentar reverter a surpreendente sentença da juíza que, com mais de 300 páginas, destinou apenas duas à alegada legítima defesa, como informou o defensor. “Esperamos o reconhecimento desse equívoco por parte do tribunal local”, diz Carriello.

Vamos esperar também que a injustiça cometida contra os meninos negros estrangeiros, com mais recursos que Rafaela e Neilton, finalmente nos faça encarar de frente o racismo cometido da base ao topo do Judiciário brasileiro e normalizado entre nós.

Um levantamento do Fogo Cruzado revelou que, em sete anos, 601 crianças e adolescentes foram baleados no Rio, 286 deles durante ações policiais. Por isso Rafaela escreveu, em um post no Instagram, no dia da absolvição dos policiais que lhe arrancaram João Pedro: “Não sou diplomata, sou mãe de um menino que morava na favela e teve os direitos violados”. Mais um.

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