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Apontamentos sobre o caso Elon Musk

É preciso falar sobre Musk sem perder de vista o comportamento de Moraes e do STF

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4 de setembro de 2024
06:00

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Em um país “extremamente conectado”, conforme lembrou o The New York Times neste final de semana, a recusa do bilionário e dono do X (ex-Twitter), Elon Musk, em acatar decisões do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes e a consequente suspensão da rede determinada pelo juiz mobilizaram a atenção de milhões de brasileiros. Desde as eleições presidenciais de 2022 não se via um assunto tão divisivo no país. Alguns apontamentos:

  1. É talvez inédita na história do país tamanha tentativa de intromissão na política doméstica por um bilionário estrangeiro. Com fake news e teorias conspiratórias, o empresário Elon Musk abre fogo não só contra o Judiciário, mas também contra a eleição e o governo de Luiz Inácio Lula Silva, pondo em dúvida aspectos fundamentais do funcionamento do nosso processo democrático.

    “Há uma crescente evidência de que o juiz fake Alexandre se engajou numa séria, repetida e deliberada interferência eleitoral nas últimas eleições presidenciais no Brasil.  Sob as leis brasileiras, isso representaria mais de 20 anos de prisão”, postou o empresário Musk no sábado (31).

    “Investir no Brasil durante a atual administração é insano. Quando houver uma nova liderança, talvez isso mude.”

    Após concordar “absolutamente” com um internauta que escreveu que “era hora de encerrar a ajuda estrangeira ao Brasil”, em referência ao governo norte-americano, Musk escreveu na sua rede que deveria haver “confisco recíproco de [bens] ativos daqueles que apoiam o atual regime no Brasil a pagar pelas suas ações ilegais”.

    São frases irresponsáveis e alegações inverídicas. Mas que servem para incendiar aquela parcela da sociedade brasileira que defendeu a depredação dos prédios dos Três Poderes, em Brasília, em 8 de Janeiro de 2023.

    Para encontrar alguma semelhança com a cruzada de Musk é preciso recuar 60 anos no tempo até o papel do governo dos Estados Unidos no golpe militar de 1964. Ainda assim não é uma comparação precisa, pois as tramoias de Lincoln Gordon e Vernon Walters, entre outros, tudo com conhecimento e autorização da Presidência norte-americana, eram feitas quase sempre nos bastidores, longe dos holofotes.

    Musk se empenha em desacreditar o Judiciário e o Executivo brasileiros à luz do dia, faz acusações sem prova sobre as eleições de 2022 e instiga seus 194 milhões de seguidores contra a saúde financeira e a estabilidade política do país. Nesse cenário, por onde andam os militares brasileiros autoproclamados nacionalistas? Ah, claro, estão apoiando Musk, como faz o ex-vice-presidente da República e general da reserva Hamilton Mourão (Republicanos-RS).

    Musk não é um simples tuiteiro exercendo seu direito à indignação. Ele tem à sua disposição uma das maiores redes sociais do mundo e vastos recursos em diversas empresas milionárias e conexões políticas e econômicas com vários países.
  2. É péssimo para a democracia brasileira e para o próprio STF que um juiz tenha resolvido decidir de forma monocrática sobre assunto tão grave e de previsível repercussão internacional como suspender uma rede social. Não é sinal de bom senso que Alexandre de Moraes tenha tomado a decisão de cassar o gosto de mais de 20 milhões de brasileiros quando tem ao seu lado dez outros colegas capazes de fortalecer a sua avaliação – quem sabe, em alguns casos, até com mais sobriedade, considerando que Moraes é alvo de intensa campanha difamatória por parte de Musk e do bolsonarismo.

    Não ajuda muito, como fez Moraes, só dois dias depois enviar para uma turma do STF uma decisão que já foi tomada e implementada. Ao agir assim, o ministro torna a votação uma queda de braço a favor ou contra um membro do tribunal, e a tendência natural é que o tribunal proteja um dos seus. Se o ministro realmente achasse importante ouvir a opinião de seus colegas, deveria ter submetido sua decisão imediatamente ao colegiado. Ou até antes da implementação das punições. Poderia, por exemplo, ter buscado o colegiado ainda durante a contagem do prazo fatal dado a Musk.

    O “monocratismo”, na verdade, enfraquece Moraes. E fortalece todo o campo mais reacionário e bolsonarista do Congresso Nacional que pretende passar uma PEC a fim de reduzir as decisões monocráticas no STF. Nesse sentido, Moraes ajudou a direita, dando-lhe um exemplo convincente.
  3. No começo de 2023, Musk determinou que sua rede social X passasse a responder com um emoji de fezes a todo jornalista que procurasse sua assessoria a fim de buscar informações a respeito dele e da sua empresa. Foi um pequeno ato revelador do caráter do empresário. Seu suposto interesse pela liberdade de expressão é seletivo. Desafiador em relação ao STF brasileiro, ele obedeceu a decisões de bloqueios de contas tomadas pelo Judiciário de outros países, como a Índia e a Turquia.

    Uma reportagem da BBC News Brasil na semana passada indagou: “Por que no Brasil foi diferente?”. A resposta do texto: “Na prática, ele [Musk] concilia essa suposta bandeira com seus interesses econômicos ao ponto de não hesitar em manter negócios bilionários com países considerados por eles como autoritários, a exemplo da China e da Arábia Saudita”.

    Com esse retrospecto, fica difícil para Musk vestir o figurino de herói da liberdade de expressão. Falta-lhe, sobretudo, credibilidade na matéria.
  4. Não é razoável que um processo com tamanha repercussão social e política continue sob sigilo no STF. A petição nº 12.404 tramita sob segredo de justiça determinado pelo próprio Moraes (assim como o chamado “Inquérito das Fake News”, que atingiu cinco anos de sigilo em abril passado). Trata-se de uma petição sigilosa que tramita vinculada a outra petição sigilosa (nº 12.100). Não basta que o ministro, como tem feito, torne públicas as suas decisões logo depois de assiná-las. É preciso que o conjunto da sociedade brasileira, para o melhor escrutínio da cidadania, possa avaliar por conta própria cada página do inquérito ou da “petição”, cada suposta prova, cada suposta circunstância levada em conta pelo ministro para que tenha tomado a decisão que tomou.

    O direito é interpretação. Uma suposta “prova” pode ser encarada de diferentes formas por diferentes magistrados. Uma decisão é sempre um recorte feito por um juiz. Jornalistas, advogados e observadores de modo geral não devem esgotar sua análise sobre um inquérito ou um processo apenas lendo a decisão dada por um juiz. A sociedade civil também não deve se contentar com isso. Boa parte dos brasileiros, em especial aquela bolsonarista, nutre desconfiança sobre o Judiciário. Só se combate isso com mais transparência, e não menos.
  5. Elon Musk tem segundas intenções em torno da disputa com Moraes no Brasil. Sua agenda política é escancarada. Em julho, o empresário endossou a candidatura de Donald Trump à Presidência dos EUA. Também fez, segundo a Bloomberg, uma contribuição financeira “considerável” para a campanha do candidato. Em agosto, colocou Trump numa suposta “entrevista” – na verdade, um bate-papo tranquilo com “perguntas amigáveis” – por mais de duas horas ao vivo na sua rede X.

    Pois bem. O bilionário sul-africano procura estabelecer uma ligação delirante entre Moraes, Lula e o Partido Democrata norte-americano, adversário de Trump nas eleições marcadas para novembro próximo. Musk deixa de explicar aos seus seguidores a independência entre os três Poderes da União consagrada na nossa Constituição (artigo 2º). Deixa de dizer que, há apenas seis anos, o Supremo tomou a decisão que abriu o espaço legal para a prisão de Lula e inviabilizou sua candidatura presidencial em 2018. Um dos ministros contrários à defesa de Lula em 2018 foi quem? Ele mesmo, Alexandre de Moraes, para quem a presunção de inocência era “relativa”. Outro contrário a Lula foi ninguém menos que o atual presidente do STF, Luís Barroso. Anos depois, é verdade, o STF anulou todas as decisões contra Lula na Lava Jato, o que permitiu sua candidatura em 2022. Mas sugerir que o STF opera como correia de transmissão automática de Lula é um desvario completo. Há nuances fundamentais no funcionamento da democracia brasileira que Musk simplesmente atropela, como se estivesse em um Tesla com o piloto automático fora de controle.

    No sábado (31), Musk compartilhou uma mensagem conspiratória do senador do Texas Ted Cruz. O político trumpista, que é considerado a “personificação do poderoso lobby das armas no Senado”, disse aos seus 6,5 milhões de seguidores que “o Brasil” – vejam bem, não o Judiciário – baniu o X a fim de suprimir “a liberdade de expressão e de pensamento” e que Lula apoiou a decisão porque também “busca banir a liberdade de expressão e de pensamento”. Cruz disse que o presidente Joe Biden “cortejou“ Lula e “celebrou” a sua eleição. O interesse de Cruz e Musk é ligar o caso brasileiro à campanha de Kamala Harris, atualmente melhor colocada nas pesquisas de intenção de voto. É um salto espetacular.

    Além de mentir sobre Lula e as liberdades civis no Brasil, Ted Cruz e Musk omitem todos os atuais sérios campos de divergências entre Lula e Biden, como a guerra de invasão da Rússia contra a Ucrânia (sobre a qual Lula relativiza) e o apoio a Israel nos ataques genocidas à Palestina (os quais Lula denuncia).

Como disse a jornalista Natalia Viana na sua coluna na Agência Pública desta semana, é preciso falar sobre Musk sem perder de vista o comportamento de Moraes e do STF. Tarefa árdua é apontar problemas em todos os lados de um conflito, por mais que um deles esteja no lado correto da história. Mas é imprescindível, pois em nome da democracia de que tanto falam Musk e Moraes podem ser cometidas verdadeiras atrocidades.

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