Buscar

Para PGR, militares das Forças Especiais cuidavam do “trabalho sujo” incluindo sequestrar e matar Lula, Alckmin e Moraes

Reportagem
20 de fevereiro de 2025
04:00

O manual de campanha de Operações Especiais do Exército define os “kids pretos” como oficiais preparados para atuar em “missões de alto risco”, com “dificuldade de coordenação e apoio”, aptos a se infiltrar em “ambientes hostis” visando “alvos de valor significativo”. Apresentada nesta quarta, 18 de fevereiro, a denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) no caso da tentativa de golpe ilustra fielmente como os “kids pretos” atuam na prática.

Na trama, pelo menos 12 militares formados em Forças Especiais – incluindo um ex-comandante dos “kids pretos” – fariam o “trabalho sujo” do golpe, com missões para sequestrar e matar o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, o presidente e o vice-presidente da República então eleitos, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Geraldo Alckmin (PSB).

Os “kids pretos” tinham também a função de conduzir operações de manipulação contra membros do Alto-Comando do Exército, para que aderissem ao golpe.

Um trecho da delação do tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e peça central na trama golpista, revela aspectos típicos da doutrina das Forças Especiais no caso.

Segundo Cid, dois tenentes-coronéis lotados no Comando de Operações Especiais o procuraram durante a crise após as eleições em 2022, afirmando que “algo precisaria ser feito para que causassem um caos” e, com isso, forçariam “a decretação do estado de defesa ou estado de sítio”.

Na denúncia, a PGR lembra que os “kids pretos” são treinados para dominar “táticas de operações em missões de inteligência, exploração e reconhecimento de comunicações clandestinas, operações em conflitos armados não convencionais”, além de “infiltração em território inimigo” e “manejo de crises em ambientes hostis”.

“As técnicas das Forças Especiais eram utilizadas pela organização criminosa não apenas no contato com os movimentos populares [acampamentos golpistas], mas especialmente no desenho das estratégias de ruptura institucional”, relata ainda o procurador-geral da República, Paulo Gonet, na denúncia apresentada ao STF.

Os “kids pretos” centrais na trama do golpe

Base da denúncia da PGR, as investigações da Polícia Federal (PF) destacam três “kids pretos” como figuras centrais na trama: o general e ex-membro do Alto-Comando do Exército Estevam Cals Theophilo Gaspar de Oliveira, à época comandante de Operações Terrestres da Força, o general da reserva Mário Fernandes e o tenente-coronel Mauro Cid.

Preso preventivamente desde novembro de 2024, após a Operação Contragolpe, da PF, o general da reserva Mário Fernandes trabalhou no Palácio do Planalto como secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência desde julho de 2021 até o fim do governo Bolsonaro. O general, aliás, foi o responsável por designar quem acompanharia Bolsonaro em sua “fuga” para Miami (EUA) antes da posse de Lula ainda em dezembro de 2022, como mostra o Diário Oficial da União.

Homem de confiança do general da reserva e também “kid preto” Luiz Eduardo Ramos, ele comandou o 1º Batalhão de Forças Especiais do Exército – uma das unidades dos “kids pretos”, em Goiânia (GO) – por quase três anos, entre julho de 2008 e junho de 2011.

Não à toa, segundo a investigação da PF, o general Fernandes coordenava “ações de monitoramento e neutralização [assassinato] de autoridades públicas, em conjunto com Marcelo Costa Câmara [coronel da reserva do Exército e também “kid preto”], além de realizar a interlocução com as lideranças populares” ligadas ao fatídico dia 8 de janeiro de 2023.

Segundo a PGR, Fernandes elaborou o plano “Punhal Verde Amarelo”, que visava assassinar Lula e Alckmin antes da posse, e o apresentou ao ex-presidente Bolsonaro. A denúncia aponta ainda que o general Fernandes trabalhou diretamente na operação “Copa 2022”, um plano de monitoramento clandestino para a “neutralização” (assassinato) do ministro do STF Alexandre de Moraes.

Segundo a PGR, Fernandes teria discutido a operação clandestina com os tenentes-coronéis Hélio Ferreira de Lima, Mauro Cid e Rafael Martins de Oliveira, todos “kids pretos”, na residência do general da reserva Walter Braga Netto – tido como um dos arquitetos da trama golpista.

Evidências colhidas pela PF reforçam o papel de Fernandes na operação “Copa 2022”, pois ele teria elencado a necessidade de compra de seis aparelhos celulares anônimos para serem usados no plano – o que de fato aconteceu, segundo as investigações. 

O general Fernandes também atuou como elo entre os golpistas no governo Bolsonaro e os acampados em frente ao Quartel-General do Exército em Brasília (DF), com diversos diálogos com lideranças bolsonaristas recuperados pela PF durante a investigação.

O material apresentado pela PF contém ainda registros de visitas de Fernandes ao acampamento, com suspeita de envolvimento na elaboração de cartazes e panfletos usados para manter os acampados mobilizados no local. São, afinal, exemplos de técnicas ensinadas às Forças Especiais do Exército, por vezes enquadradas como operações psicológicas pelos militares.

O general Theophilo era outra peça fundamental da trama. De acordo com a denúncia da PGR, o militar membro do Alto-Comando do Exército teria aceitado “coordenar o emprego das forças terrestres conforme as diretrizes do grupo” golpista. Theophilo era o comandante de Operações Terrestres do Exército (Coter), em Goiânia – unidade à qual o Comando de Operações Especiais é diretamente vinculado, para eventual uso da tropa.

“O Coter era, portanto, órgão relevante para a implementação do plano golpista, especialmente na execução de ações sensíveis, como a da prisão do Ministro Alexandre de Moraes”, afirma o procurador-geral, Paulo Gonet, na denúncia enviada ao STF.

Com base na delação de Mauro Cid e em mensagens recuperadas de seu telefone, a PGR aponta que o general Theophilo “se comprometera a executar as medidas necessárias para a consumação da ruptura institucional”, contanto que o ex-presidente Bolsonaro assinasse um decreto – que tornaria possível o golpe de Estado.

Ainda de acordo com a denúncia, o aceite do general Theophilo teria ocorrido sem aviso ao então comandante do Exército, o general Marco Antônio Freire Gomes, outro “kid preto”, durante uma reunião do então comandante do Coter com Jair Bolsonaro no Palácio da Alvorada, no dia 9 de dezembro de 2022. Em seu depoimento, o general Freire Gomes admitiu ter ficado “desconfortável com o episódio, por desconhecer o teor da convocação [do general Theophilo pelo ex-presidente]”.

Para a PGR, “o ‘desconforto’ relatado por Freire Gomes se devia ao fato de que o General Estevam Cals Theophilo Gaspar de Oliveira possuía grande prestígio no meio militar”, e “seu apoio ao plano de ruptura institucional significava, àquela altura, a possibilidade de consumação do golpe de Estado”.

Mauro Cid e a turma golpista de 2000

Parte dos “kids pretos” denunciados entrou na trama graças à sua relação com o tenente-coronel Mauro Cid.

O ex-ajudante de ordens de Bolsonaro concluiu seus estudos na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) em 2000, junto com os tenentes-coronéis Guilherme Marques de Almeida, Hélio Ferreira de Lima, Ronald Ferreira de Araújo e Sérgio Ricardo Cavaliere de Medeiros – todos denunciados na última quarta (18).

Mauro Cid foi um dos organizadores de uma reunião clandestina de ex-“kids pretos” em Brasília, na noite de 28 de novembro de 2022. Para a PGR, a ocasião demonstra uma das responsabilidades dos militares das Forças Especiais no caso: usar técnicas de influência e persuasão contra a cúpula do Exército em prol do golpe.

Junto ao coronel Bernardo Romão Correa Neto, outro de seus amigos nos tempos de Aman, Cid planejou o encontro com oficiais assessores dos membros do Alto- Comando do Exército, para discutirem como influenciar seus chefes a aderir ao plano. Para a PGR, a reunião ocorreu na mesma época em que um decreto para consumar o golpe estava sendo elaborado.

Cid e Correa Neto se uniram ao então coronel, hoje general de divisão Nilton Diniz Rodrigues – mais um “kid preto” –, para “reunir alguns FE [Forças Especiais] em funções chaves para termos uma conversa sobre como podemos influenciar nossos chefes” – segundo conversas entre eles recuperadas pelos investigadores da PF.

“Os diálogos confirmam a ideia de reunir exclusivamente militares com formação em Forças Especiais que poderiam, de algum modo, influenciar seus comandantes, valendo-se também dos seus conhecimentos táticos especializados”, aponta o procurador-geral da República na denúncia apresentada ao STF.

Dois dias antes do encontro, Cid lidou com outros oficiais do Exército para articular a redação de uma carta direcionada ao Alto-Comando, justamente para pressionar os militares a aderir ao golpe.

As investigações apontam que o documento foi concluído após a reunião clandestina dos assessores militares “kids pretos” em 28 de novembro de 2022 – algo que a defesa dos acusados tem negado desde a apresentação do relatório final da PF sobre o caso, em novembro passado.

Edição:
Lula Marques/ Agência Brasil
Isac Nóbrega/PR
Matheus Pigozzi e Bruno Fonseca/Agência Pública
Marcos Corrêa/Presidência da República
Reprodução
Reprodução
Bruno Fonseca/Agência Pública
Alberto César Araújo/Aleam
Reprodução/Facebook
Marcos Corrêa/Presidência da República

Não é todo mundo que chega até aqui não! Você faz parte do grupo mais fiel da Pública, que costuma vir com a gente até a última palavra do texto. Mas sabia que menos de 1% de nossos leitores apoiam nosso trabalho financeiramente? Estes são Aliados da Pública, que são muito bem recompensados pela ajuda que eles dão. São descontos em livros, streaming de graça, participação nas nossas newsletters e contato direto com a redação em troca de um apoio que custa menos de R$ 1 por dia.

Clica aqui pra saber mais!

Se você chegou até aqui é porque realmente valoriza nosso jornalismo. Conheça e apoie o Programa dos Aliados, onde se reúnem os leitores mais fiéis da Pública, fundamentais para a gente continuar existindo e fazendo o jornalismo valente que você conhece. Se preferir, envie um pix de qualquer valor para contato@apublica.org.

Leia de graça, retribua com uma doação

Na Pública, somos livres para investigar e denunciar o que outros não ousam, porque não somos bancados por anunciantes ou acionistas ricos.

É por isso que seu apoio é essencial. Com ele, podemos continuar enfrentando poderosos e defendendo os direitos humanos. Escolha como contribuir e seja parte dessa mudança.

Junte-se agora a essa luta!

Faça parte

Saiba de tudo que investigamos

Fique por dentro

Receba conteúdos exclusivos da Pública de graça no seu email.

Artigos mais recentes