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Aos 14 anos, Camila Pita viu a mãe ser acusada criminalmente e decidiu ser advogada; 12 anos depois, a inocentou

Reportagem
10 de maio de 2025
04:00

“Ter minha filha ali comigo foi motivo de muito orgulho. É de se admirar a mulher que se tornou, depois de vivenciar, ainda criança, e por 12 anos, uma história de injustiça e muito difícil de ser vivida”. Essa poderia ser a declaração de qualquer mãe em qualquer lugar do mundo, mas é de Rosália Maria Negrão Pita. É a primeira vez que Rosália fala à imprensa e, com exclusividade para Agência Pública, sobre o fato de ter sido acusada de matar o namorado, José Antônio Silva Braga, em 13 de março de 2012, em Valença, cidade no interior da Bahia com pouco mais de 90 mil habitantes, segundo o IBGE.

Os detalhes da investigação que já seria emblemática por expor, segundo a defesa, falhas e lentidão da justiça criminal brasileira, especialmente quanto à fragilidade das provas, traz um elemento surpresa: Camila Pita, filha da acusada de homicídio, atuou na defesa da própria mãe Rosália. A demora do julgamento foi tão expressiva, 12 anos, que permitiu a Camila passar pelo ensino médio, tornar-se advogada na graduação e atuar na profissão até encarar no dia 24 de setembro de 2024, o plenário de um tribunal do júri para defender a própria mãe, que aguardava o julgamento em liberdade. “Eu sabia detalhes daquele inquérito de cor. Cada palavra, cada frase. Nos dias que antecederam o julgamento, meu foco e determinação eram tão grandes, além, claro, da sensação de responsabilidade de trazer à luz a verdade e garantir a liberdade da minha mãe que eu mal conseguia me alimentar e dormir. Foi um período intenso de trabalho.”

Quem é a vítima?

Em 13 de março de 2012, Camila Pita conta que acordou de madrugada com batidas na porta da casa onde morava com a mãe Rosália. “Eram policiais que queriam saber onde estava a minha mãe. Na época, tinha apenas 14 anos e aquilo me deixou desesperada porque não sabia o que tinha ocorrido, pensei que ela tinha morrido ou algum acidente. Foi aos poucos que compreendi as coisas”, relembra. Ainda de acordo com ela, naquela mesma noite o namorado de Rosália havia morrido e a mãe foi levada para delegacia da cidade para apuração do caso.

Num trecho do inquérito policial referente ao laudo do perito criminal de Valença (BA), Rosália aparece, primeiro, como única testemunha da morte de José Antônio Silva Braga: “ela apresentou a versão de suicídio, e na mesma noite do óbito, fora ouvida na condição de suspeita de homicídio”.

A equipe da perícia fez, rapidamente, o exame residuográfico nas mãos de Braga (durante a necropsia do corpo) e nas mãos de Rosália. Esse teste é realizado para verificar se há resíduos de chumbo, em casos como o de Braga, que morreu por disparo de arma de fogo. Em ambos os testes o resultado foi negativo. Mas, “no momento da realização de coletas nas mãos da Srª Rosália Maria Negrão de Pita, foi notado que o vestido que usava apresentava pequenas manchas de natureza orgânica semelhante a sangue e, diante desta condição, foi solicitado à autoridade policial o requerimento da peça para exame”. Ainda de acordo com o laudo, o resultado foi positivo para presença de sangue no vestido.

O parecer de 07 de novembro de 2013 do médico legista aposentado e perito médico em processos judiciais Luis Carlos Cavalcante Galvão, contratado pela defesa de Rosália, esclarece que no laudo pericial da polícia para pesquisar sangue humano no vestido de Rosália, os resultados evidenciaram sim sangue na peça “o que era de se esperar, já que a srª Rosália informa que teve contato no momento em que a vítima era socorrida”.

No entanto, o juiz Reinaldo Peixoto Marinho atestou à época serem suficientes os indícios de autoria do homicídio que teria sido cometido por Rosália Pita, que foi submetida a júri popular (previsto para os casos de crimes dolosos contra a vida quando o autor quis ou assumiu o resultado sejam tentados ou consumados, como, homicídio, infanticídio, aborto ou participação em suicídio).

Outro advogado, com vasta experiência, que compunha a defesa da acusada contesta: “não havia testemunhas presenciais do fato, nem provas concretas que indicassem a autoria do crime. Destaca-se a ausência de pólvora nas mãos ou no vestido de Rosália e nenhum elemento mínimo probatório que a vinculasse ao disparo. Rosália colaborou com todas as fases da investigação, entregando voluntariamente o vestido e não se negando a nenhum procedimento, o que reforça a percepção de inocência”, afirma Fabiano Pimentel.

Camila, a primeira à esquerda na imagem, com o grupo de defesa que atuou no caso de sua mãe

Camila: “Promotoria requereu que eu fosse retirada da defesa”

A sessão de julgamento de Rosália, presidida pelo Juiz Diogo Souza Costa, teve início às 8h30 do dia 24 de setembro de 2024 e varou a madrugada até às 2 horas da manhã do dia seguinte. “Mas, no momento em que apresentava minhas alegações e todo o sofrimento enfrentado pela minha família, ao longo de 12 anos, em que minha mãe carregou o sofrimento de ser apontada como suposta assassina, numa cidadezinha do interior e pequena (onde praticamente todos se conheciam) fui surpreendida com a ação da promotoria que requereu que eu, como filha da ré, fosse retirada da equipe de defesa. Entrei em desespero naquele momento. Felizmente, o juiz indeferiu o pedido após verificar minha inscrição no Cadastro Nacional dos Advogados e regularizada na Ordem dos Advogados, além de ter atestado minha participação em júris em outros casos”, lembra Camila.

O júri popular seguiu com réplicas e tréplicas e posicionamentos sobre motivação e dinâmica da morte de Braga. Segundo Pimentel, a investigação foi conduzida de maneira rápida e superficial. “A análise policial foi apressada e a perícia deixou de considerar aspectos relevantes, como a presença de pólvora no console do carro e a ausência de vestígios no vestido, o que seria esperado caso Rosália tivesse efetuado o disparo a curta distância. Era impossível Rosália cometer o crime conforme descrito pelo Ministério Público”, explica.

A promotoria defendeu que além de matar o então namorado, já que “vivia em um conturbado relacionamento amoroso”, houve “fraude processual” da ré que teria alterado a cena do crime. Rosália, segundo a promotoria, teria disparado contra a vítima à queima roupa e no coração, saído do carro em que estavam, trancando a porta do lado esquerdo e colocado o revólver sobre o banco do passageiro. Para o órgão acusador, Rosalia teria agido por “vingança” por suspeitar que Braga a teria traído. O advogado Fabiano Pimentel retrucou: “o tempo entre o disparo e o pedido de socorro foi de apenas alguns minutos, segundo testemunhas, o que tornaria inviável que Rosália realizasse todas as ações atribuídas a ela (pegar a arma, atirar a curta distância, limpar a arma, trancar as portas do carro, se livrar da chave, retirar a vítima e simular desespero) sem deixar vestígios e sem ser percebida”.

Rosália: “Foi um teste de sobrevivência e estou livre para contar essa história”

Em um dos momentos mais marcantes do julgamento, a defesa apresentou vídeos e laudos médicos para demonstrar que, mesmo após um tiro no coração, a vítima poderia manter movimentos sem perder os sentidos por alguns segundos ou minutos, contrariando a tese da promotoria de morte instantânea. O objetivo era mostrar que a vítima teria tentado sair do carro e caído posteriormente sobre a calçada próxima por conta própria após o disparo, reforçando a impossibilidade de Rosália ter cometido o crime conforme descrito pela acusação.

O júri popular formado por sete pessoas, quatro mulheres e três homens ouviu as versões apresentadas. Eles que definiriam a sentença de Rosália que há 12 anos aguardava por um desfecho do caso em liberdade. “Quando os jurados foram para ‘sala secreta’ para a tomada de decisão, vivi um dos momentos mais tensos da minha vida e, foi também para minha mãe. Nessa hora, simplesmente me ajoelhei e rezei para que daquela sala saísse a decisão justa. Foi quando o Dr. Fabiano trouxe a resposta ao assinalar com os dedos das mãos: quatro! Ou seja, minha mãe foi considerada inocente pela maioria dos sete jurados, que acreditaram que Braga morreu por disparo acidental colocando fim a própria vida ou havia cometido suicídio. Para os jurados, minha mãe também era inocente do crime de fraude processual. Foi uma sensação inexplicável de sentimentos!”, conta emocionada Camila Pita.

Para Carla Silene Lisboa, advogada criminalista e diretora de prerrogativas OAB/MG alguns casos despertam mais clamor social do que outros. O que acaba implicando em uma atenção mais pronta e imediata dos órgãos responsáveis pela apuração. No caso, considerando que as pessoas envolvidas nos fatos eram muito conhecidas na cidade, é provável que o interesse da sociedade tenha sido maior, por isso pode ter ocorrido rápido trabalho pericial, muitas vezes fora da curva que se espera de uma cidade interiorana. São tantos filmes e séries que demonstram a importância da investigação que, muitas vezes, é frustrante saber que o Brasil pouco tem investido nesse setor. Uma polícia investigativa bem equipada e tecnicamente preparada é um pilar da democracia. Além das perícias não serem realizadas em todos os casos, quando são, os resultados costumam ser demorados.

Depois de mais de uma década de muita angústia a mãe de Camila Pita diz orgulhosa: “foi um teste de sobrevivência, e estou aqui LIVRE para contar essa história e ressignificando a minha vida, buscando viver plena felicidade. Mas, não significa que não exista ainda dor aqui dentro, por toda tragédia que aconteceu e pelas marcas daquele dia do julgamento. À minha filha, todo meu amor, orgulho, admiração e respeito, e meu agradecimento por ter vindo a essa vida através de mim, e permitir ser mãe dela. Ser sua mãe é minha valiosa e honrosa missão. A minha versão mãe de Camila Pita será sempre a minha versão mais feliz e realizada!”

Outro lado

Em nota, a promotora de justiça Rita de Cássia Pires Bezerra Cavalcanti, que atuou no caso, disse que: “imagino que a curiosidade que permeou e permeia a imprensa quanto a este processo reside no fato de uma advogada — eram 7 na defesa da ré em julgamento — ter a própria mãe como acusada do caso. A distância do tempo, por si só, traz uma distância dos fatos que não é o melhor conselheiro em um julgamento, pois o tempo afeta a memória nos detalhes, daqueles que foram/são ouvidos em julgamento. Como promotora, não participei da investigação, não fiz a denúncia, nem a instrução. Apenas fiz o júri. O decurso de tempo até a marcação da sessão plenária permitiu-me sair de promotora substituta até o último grau da cargo que ocupo, assim como permitiu à Dra. Camila Pitta concluir o ensino médio e se formar em Direito. Não acho pertinente um reingresso na prova dos autos, nem mesmo a prova técnica, porque já temos uma absolvição e não há porque se discutir o julgamento do Conselho de Sentença quando há espaço para esse entendimento. Se não o houvesse — o espaço —, desafiaria apelação ministerial a decisão, de certo. Como conselho jornalístico, se me permite, já que visitou todos os laudos, eu a questiono: você já assistiu um filme chamado “Anatomia de uma Queda”? Assim como lá, os laudos não explicam tudo e, quando não há testemunhas e os laudos apontam algumas inconclusões, só os presentes saberão o que realmente aconteceu. Assim como no filme, a filha presente tem enorme peso no julgamento. Encerro dizendo que, por tudo isso, o Tribunal do Júri é tão complexo e o conceito de fazer justiça nem sempre está ligado a uma conclusão de condenação ou absolvição. Penso que este julgamento pacificou uma ferida em aberto há anos — na família da vítima e da ré — pelo crime em si e pela inexplicável demora para o desfecho do caso, o que também gera sofrimento. O resultado de um júri não pertence a um ou outro lado — acusação ou defesa. A sociedade decide por absolver ou condenar e, na hipótese, decidiu com base no justo. Com o respeito de sempre à sociedade que sirvo, representando o Ministério Público e, nem sempre concordando com os colegas que me antecederam (o pedido feito em plenário foi diverso do entendimento dos promotores anteriores), acatei a decisão popular, por entender que o caminho escolhido — assim como em Anatomia de Uma Queda — era um desfecho possível”.

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