Desde a deflagração da guerra contra o Irã, com os bombardeios do último dia 13 de junho, Israel vem qualificando o ataque como “preventivo”, para destruir a capacidade de produção de armas nucleares pelo “inimigo”, que ameaçaria a própria existência de Israel.
A justificativa ganhou legitimidade com o apoio de Donald Trump e dos países do G7, que divulgaram declaração na última segunda-feira (15/06), reconhecendo o direito de autodefesa do país conduzido por Benjamin Netanyahu, embora os ataques tenham partido de Israel. Trump, que em seu primeiro mandato anulou um acordo nuclear com o Irã costurado em 2015, proibiu o Irã de ter armas nucleares em fevereiro, país também visto como ameaça pelos Estados Unidos.
Outro ponto importante é que, embora não reconheça publicamente, Israel tem 90 ogivas nucleares de acordo com relatório divulgado recentemente pelo Sipri (Stockholm International Peace Research Institute), instituto de pesquisa que monitora o armamento mundial, de competência reconhecida internacionalmente. Mas, enquanto o Irã assinou o Tratado de Não-Proliferação Nuclear, o que obriga o país a inspeções internacionais para garantir o caráter pacífico de seu programa nuclear, Israel não se comprometeu a nada até por não admitir a existência das ogivas.
Esse fato, porém, tem sido ignorado pelos Estados Unidos e aliados europeus de Israel por considerar o país mais próximo cultural e politicamente do Ocidente, como explica Marson.
Em entrevista à Agência Pública, a professora da FESP (Fundação Escola de Sociologia Política de São Paulo) e doutora em Relações Internacionais traz novas camadas de reflexões sobre o conflito, que teria sido planejado como parte da estratégia militar de Israel desde os ataques retaliatórios ao Hamas que levaram à gravíssima crise humanitária em Gaza.

“O que a gente percebe é que esse ataque de Israel já devia estar planejado e o Netanyahu só estava esperando o melhor momento, porque primeiro estava bombardeando Gaza, depois o Líbano, também está sempre envolvido na questão do Iêmen com os Houthis, grupo que é apoiado pelo Irã, e aí agora diretamente o Irã”, diz Marson.
Dois fatos ofereceram a oportunidade para Israel atacar o Irã, segundo a professora: o relatório da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), divulgado uma semana antes da ofensiva militar, apontando que o Irã estaria perto da capacidade de enriquecimento de urânio para a fabricação de armas nucleares; e as “negociações nucleares” do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
“O que eu acredito é que nós temos dois movimentos paralelos aqui. Nós temos o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, isolacionista, que se retirou da OMS [Organização Mundial de Saúde], retirou os Estados Unidos do Acordo de Paris, por exemplo e, se nós temos um presidente que se retira de acordos e organizações tão importantes, o acordo nuclear com o Irã, para ele, não tem tanta relevância. Do outro lado, temos um país com Netanyahu como chefe, que tem uma clara agenda de, nas palavras dele, “estabilizar a região”, o que na cabeça dele passa por desestabilizar os outros grupos e países, que ele considera ameaça à segurança de Israel”, explica a professora.
Leia abaixo a íntegra da entrevista, gravada na segunda-feira, 16 de junho, quarto dia da guerra entre Israel e Irã.
Donald Trump prometeu a seus eleitores que não se envolveriam em guerras e que traria paz ao Oriente Médio. Até que ponto, você acha que os Estados Unidos iriam para defender Israel em caso de escalada do atual conflito para uma guerra regional? Os Estados Unidos poderiam ir além do envio de equipamentos e recursos? Ou seria mais como o envolvimento da OTAN com a guerra da Ucrânia, sem envolvimento militar direto?
Acredito que vá mais nessa linha sem envolvimento militar direto. Porque o Trump se elegeu em cima dessa plataforma de reduzir os gastos do governo, cortando a intervenção dos Estados Unidos em outras nações que estão em conflitos. Ele se elegeu em cima dessa ideia da política externa mais isolacionista. O próprio slogan dele, o Make America Great Again, America First, isso já mostra que o ideal para ele é se voltar para as questões internas como a migratória, que eles consideram muito complicada.

Mas é interessante a gente também ter em mente que, além desse discurso isolacionista, o Trump tem um discurso bastante contraditório. Vamos lembrar que depois do ataque de Israel ao Irã, o Marco Rubio, secretário de Estado, falou que os Estados Unidos não tinham nenhuma participação no conflito. Só para ser desmentido, momentos depois, pelo próprio presidente Trump: por meio de uma postagem na rede social X, afirmou que ele sabia que haveria o ataque e que ele tinha dado 60 dias para o Irã aceitar o acordo nuclear [proposto pelos Estados Unidos] e que aquele era o 61º dia, ou seja, ele deixou bem claro que ele sabia sim. E, logo em seguida, ele retrocede falando que não sabia. Então, com essas declarações bastante contraditórias, nós não sabemos qual é o real posicionamento dele.
A gente sabe que os Estados Unidos, independente de quem estivesse no poder, republicano ou democrata, estaria apoiando Israel nessa situação. Porém, o Trump, ele tem uma proximidade com [Benjamin] Netanyahu e uma inclinação maior em ajudar. Recursos e equipamentos os Estados Unidos já estão enviando, mas vamos pensar na questão de tropas, por exemplo. Se o Trump chegar a isso, ele vai ter problemas com a base dele, porque foi justamente na retórica contrária que ele se elegeu. Então, eu não acredito que ele tenha uma ação mais pragmática.
E tem outra coisa, eu estava lendo hoje no New York Times que um parlamentar estadunidense, o senador democrata Tim Kaine está tentando introduzir uma legislação para restringir os poderes de guerra do Trump, condicionando qualquer ação nesse sentido ao consentimento do Congresso. É importante nós entendermos que, em uma democracia, nós temos três poderes, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Então, a decisão do Trump de enviar tropas precisa ter o apoio do legislativo. O que eu acredito que, apesar dele ter maioria, seria uma pauta muito complicada justamente porque todo mundo dessa linha trumpista se elegeu na base do ‘vamos nos focar nos problemas internos’.
Israel atacou o Irã em um momento muito estratégico, porque já tinha enfraquecido o Hamas, o Hezbollah, então atacar o Irã agora seguiria essa lógica militar. Mas o pretexto de Israel foi de que o Irã estaria em condições de construir uma bomba nuclear, coincidindo com o discurso dos Estados Unidos. Você vê uma conexão entre esses dois movimentos, a negociação nuclear dos Estados Unidos com o Irã, e o pretexto de Israel para invadir o Irã?
Acredito que esses eventos estejam conectados. Eu acho que a gente não pode também cair em teorias da conspiração, de que os Estados Unidos retrocederam no acordo no primeiro governo Trump para fazer com que o Irã avançasse no seu programa nuclear, dando esse pretexto. Isso não. O que eu acredito é que nós temos dois movimentos paralelos aqui. Nós temos o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, isolacionista, que se retirou da OMS [Organização Mundial de Saúde], retirou os Estados Unidos do Acordo de Paris, por exemplo e, se nós temos um presidente que se retira de acordos e organizações tão importantes, o acordo nuclear com o Irã, para ele, não tem tanta relevância e faz sentido dentro dessa lógica. Do outro lado, temos um país com Netanyahu como chefe, que tem uma clara agenda de, nas palavras dele, “estabilizar a região”, o que na cabeça dele passa por desestabilizar os outros grupos e países, que ele considera ameaça à segurança de Israel.
Então, eu acredito que tem conexão nesses dois movimentos, no sentido de que são dois presidentes que têm planos que acabam culminando nessa hostilidade ao Irã, mas não que um puxou o outro. Eu acredito que o Netanyahu – porque esse não foi um ataque do nada, a maneira como o ataque foi feito, de bombardear instalações militares e nucleares, foi bastante preciso. Claro, morreram muitos civis, nós temos já mais de 200 mortes no Irã (números de 16/06, quando foi feita a entrevista) e para algumas organizações de direitos humanos essa é uma estimativa muito otimista, o número real parece ser maior, então, tem um impacto humanitário gigantesco. Quando digo que foi preciso é no sentido de que mirou, teoricamente, instalações militares.
O que a gente percebe é que esse ataque de Israel já devia estar planejado e o Netanyahu só estava esperando o melhor momento, porque primeiro estava bombardeando Gaza, depois o Líbano, também está sempre envolvido na questão do Iêmen com os Houthis, grupo que é apoiado pelo Irã, e aí agora diretamente o Irã.
E o melhor momento veio agora com o relatório da AIEA divulgado na semana passada dizendo que o Irã estaria perto da capacidade de enriquecer urânio para armas nucleares, o que fez com que boa parte do mundo aceitasse o “ataque preventivo”. Agora, a gente vê que Israel tem 90 ogivas nucleares, não é uma coisa declarada oficialmente, mas é reconhecida por associações internacionais que fazem essa vigilância como o Sipri (Stockholm International Peace Research Institute). Já o Irã permitiu inclusive a visita dos inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). Você acha que o Irã está sendo tratado de forma desigual em relação a Israel? Por que seria mais perigoso o Irã ter uma ogiva nuclear do que Israel?
Sim, essa pergunta é muito interessante, ela é muito polêmica. De fato, Israel, por ser considerado um aliado dos Estados Unidos, apesar de ter conseguido as suas bombas, as suas ogivas, de forma encoberta, por trás dos panos, como Israel é visto como um país com características muito mais ocidentalizadas, ele não é visto como uma ameaça.
Porque não é uma ameaça para as outras nações ocidentais, né?
Exatamente esse o ponto, porque Israel pode ser visto como uma ameaça pelos países da região, mas olhando pelo olhar ocidental, ele é visto como um contraponto a esses países árabes muçulmanos e tudo é tolerado: ataque no Líbano, ataque no Irã, na própria faixa de Gaza. Então, tem toda uma situação, uma crise humanitária gigantesca acontecendo em Gaza que agora perde até um pouco os holofotes que tinha na mídia por causa do ataque ao Irã. Então, é interessante isso, porque é uma construção identitária em relação ao Oriente, em que se colocam todos esses países no mesmo cesto. Pela régua dos Estados Unidos, que se vê como o padrão da democracia, se você não se encaixa, você é considerado uma ameaça.

Então, tudo bem, o Irã tem um governo fundamentalista, que tem alguns movimentos complicados, a gente precisa reconhecer isso, né? Mas isso não quer dizer que o programa nuclear iraniano necessariamente está acontecendo para a construção de uma bomba, até porque como você mesma falou, o Irã deixou os investigadores da ONU, os observadores da ONU entrarem no território, observarem a situação para ver se era construção de bomba ou não. Pode estar mentindo? Pode. Da mesma forma que Índia, Paquistão, Israel, Coreia do Norte, uma série de outros países que conseguiram a bomba de forma ilegal. E isso traz outros problemas para o Irã que é signatário do TNP, o Tratado de Não-Proliferação, e por isso é cobrado para cumprir as regras e Israel não assinou, então, teoricamente, ele não quebrou nenhuma norma internacional. Porque Israel não se comprometeu a não fazer a bomba, ao contrário do Irã, que assinou o TNP, que basicamente estabelece que quem tem bomba pode continuar tendo, quem não tem, não vai ter. Então, o próprio TNP já cimenta uma assimetria de poder.
Trazendo um pouco essa história para o Brasil. O presidente Lula chegou a usar a palavra genocídio para as ações de Israel em Gaza, e o Itamaraty, bem dentro da tradição diplomática brasileira, considerou o ataque de Israel uma invasão a um país estrangeiro. No domingo passado também houve manifestações pedindo que o Brasil rompesse os vínculos com Israel. Você acha que essa relação pode ser abalada? E que repercussões isso traria em relação aos grandes por trás, como os Estados Unidos e a própria Europa, que tem se posicionado a favor de Israel?
O presidente Lula foi um dos primeiros estadistas a falar com todas as letras que o que está acontecendo na Palestina é genocídio, e foi muito rechaçado no cenário internacional. Ele sofreu com uma repercussão negativa, teve uma repercussão muito grande essa fala dele, com críticas de que ele estava sendo precipitado, de que não era bem isso, tanto interna quanto externamente. E o Itamaraty, nós sabemos que a característica histórica da diplomacia brasileira, não da política externa, mas da diplomacia, é uma diplomacia de conciliação.
Então o Brasil, ele sempre se inseriu no cenário internacional como um país mediador, conciliador, a diplomacia brasileira é conhecida no exterior por tentar, em um cenário internacional anárquico, mediar problemas. Então o Itamaraty, ele segue muito a linha de não intervenção e autodeterminação dos povos, que basicamente é, cada território, a população de cada território, tem o direito de escolher a sua organização política e social.
E o Itamaraty manteve a sua linha e, óbvio, em uma situação como essa, em que Israel atacou primeiro, não tinha outro sentido a não ser condenar o ataque de Israel. Mas a comunidade de judeus no Brasil é muito forte, muitos deles contrários a Netanyahu, e, historicamente, o Brasil manteve relações com Israel, independente das ações de Israel lá no território. Nós condenamos uma atitude ou outra, nos posicionamos no sentido de tentar mediar, mas nunca no sentido de romper relações. Então, apesar das atitudes do Netanyahu, apesar das manifestações, principalmente por causa do ativista Thiago Ávila, que agora acabou de retornar aqui do Brasil, eu não acredito que o Brasil rompa relações.