No dia 7 de fevereiro de 2024, a Polícia Militar do Paraná foi acionada para atuar contra um suposto “tribunal do crime” do PCC em Londrina, município de cerca de 570 mil habitantes no norte do estado. A ação no bairro Jardim Felicidade, na zona norte da cidade, terminou em uma chacina: seis mortos. Os agentes alegam que foram recebidos a tiros e por isso tiveram de atirar primeiro. Familiares das vítimas contestam essa versão e pedem justiça.
Ao invés de ser um caso isolado, a chacina no Jardim Felicidade reflete a violência policial na cidade. Em 2024, Londrina registrou 49 mortes por policiais. Isso significa que uma a cada dez mortes cometidas por agentes no estado naquele ano aconteceram em Londrina.
As forças policiais do Paraná costumam aparecer nos levantamentos nacionais como a quinta que mais mata no país, o que parece natural, já que é também o quinto estado mais populoso.
Contudo, nos últimos anos, as polícias paranaenses têm matado mais que as gaúchas e mineiras – sendo que a população de Minas Gerais (21,3 milhões) é quase o dobro da do Paraná (11,8 milhões).
Além disso, as mortes por policiais no estado têm aumentado. Um levantamento preliminar feito pelo Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (Gaesp) do Ministério Público do Paraná (MP-PR), a pedido da Agência Pública, mostra que as forças de segurança do estado mataram 7% a mais no primeiro semestre de 2025 em comparação ao mesmo período de 2024. Foram 217 mortes em 2025, contra 202 no ano anterior.
Por que isso importa?
- Londrina, segunda cidade mais populosa do Paraná, tem sido palco de diversas ações policiais com mortes, inclusive chacinas.
- Subprocuradoria de Justiça tem reaberto casos e apontado falhas graves e contradições em inquéritos policiais.
Os dados seguem uma tendência observada nos últimos anos. Em 2024, por exemplo, o estado registrou 413 mortes, um aumento de 19% em relação a 2023. Os números consolidados são divulgados apenas uma vez por ano pelo Gaesp, que, junto com o Grupo de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), é responsável pelo controle externo das polícias.
O dado do Gaesp é um pouco diferente do levantado pelo pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), divulgado nesta quinta-feira, 24 de julho. Segundo o 19º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o Paraná teve 400 mortes por intervenção policial em 2024, 17% a mais que no ano anterior. Na proporção com a população, isso coloca o estado atrás apenas do Rio de Janeiro nas regiões Sul e Sudeste.
O anuário traz também outra informação preocupante sobre a atuação das polícias paranaenses. Das 10 cidades brasileiras cujo número de mortes por ação policial ultrapassa metade do total de mortes violentas, duas estão no Paraná – e justamente na Região Metropolitana de Londrina: Cambé e Arapongas.

A reportagem encaminhou uma série de perguntas à Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp) do Paraná sobre as mortes decorrentes de intervenção policial. O órgão não respondeu diretamente às questões enviadas. Por meio da assessoria de imprensa, afirmou que as forças de segurança seguem “rigorosos protocolos de treinamento para o uso escalonado e diferenciado da força”.
Ainda segundo a nota, “situações de confronto armado são um risco constante enfrentado pelas polícias em todo o mundo, especialmente no combate ao crime organizado e na proteção da população”. De acordo com a Sesp, a polícia paranaense só utiliza arma de fogo como último recurso, diante de “agressões injustas” aos agentes.
A assessoria também citou uma série de números, destacando que os indicadores de violência no Estado estão no mais baixo patamar da série histórica. Leia a resposta na íntegra.

“Disseram que iam estourar a cabeça da gente”, diz mãe de jovem morto em chacina em Londrina
Entre os seis mortos da chacina do Jardim Felicidade de fevereiro do ano passado, estavam João Victor Santos, então com 28 anos, e Kauan de Oliveira, com 20. Márcia Oliveira, mãe de Kauan, e João Santos, pai de João Victor, integram o movimento Justiça Por Almas – Mães de Luto em Luta. Eles descrevem momentos de desespero ao tentar identificar os filhos e criticam a forma como foram tratados pela PM no local.
“Disseram que iam estourar a cabeça da gente se tentássemos entrar”, denuncia Márcia. Segundo ela, a dor foi agravada pelo tratamento dado pela imprensa local. Um apresentador acendeu velas pretas em estúdio e chamou os mortos de “capetas”.
João Victor trabalhava havia três anos com carteira assinada numa grande rede atacadista e não tinha passagem pela polícia.“Não durmo direito. Qualquer barulho me faz imaginar que ele está chegando do trabalho. Quando vejo os passarinhos dele, a saudade aperta”, lamenta o pai.
Segundo o advogado das famílias, Mauro Martins, João Victor havia saído para comprar uma Coca-Cola para comemorar seu aniversário na casa. Quando voltou, foi atingido.“Era um jovem trabalhador, sustentava a casa, e não tinha antecedentes”, afirma. Segundo ele, um dos seis homens estava dormindo quando foi morto.
A investigação do caso ainda está em andamento. O advogado afirma que testemunhas negam confronto e que uma reprodução simulada dos fatos foi solicitada.
O caso não foi a primeira chacina em Londrina. No dia 30 de janeiro de 2016, depois da morte de um PM, a polícia matou 12 pessoas pela cidade numa mesma noite. O caso ficou conhecido como Noite Sangrenta.

Morte de jovens no início do ano levou a protestos por toda a cidade
Em 15 de fevereiro deste ano, a morte de dois jovens balançou Londrina. Wender da Costa, de 20 anos, e Kelvin dos Santos, de 16, moradores da comunidade Nossa Senhora da Paz, conhecida como Favela da Bratac, na zona oeste da cidade, haviam trabalhado o dia inteiro no lava-jato de Wender, na própria Bratac. À noite, saíram com o carro de um cliente para buscar cerveja em uma conveniência no bairro vizinho. Após deixarem o estabelecimento, foram abordados pela polícia. Segundo os agentes, eles teriam descido do carro armados, motivo pelo qual efetuaram os disparos.
A reação às mortes de Kelvin e Wender fugiu ao padrão. A revolta das mães, Cirlene Vieira dos Santos e Vanessa Pereira da Costa, junto ao apoio de amigos e movimentos sociais, ganhou força, especialmente porque os dois jovens não tinham antecedentes criminais. Para as mães, a polícia sabe que errou ao matar inocentes — e tenta retaliar a comunidade pelas denúncias.
Cirlene nasceu e cresceu na Bratac. Ela lembra de um passado marcado por disputas entre facções. “Era guerra de favela contra favela. Meu cunhado morreu com um tiro perdido, aos 14 anos.” Hoje, diz que o bairro é outro.“Agora quem nos amedronta é a polícia. Pai de família não pode mais tomar uma cerveja na calçada. Se a viatura aparece, já xingam, mandam apagar a luz e entrar. Parece que não querem que a gente viva aqui.”, afirma.
Vanessa, mãe de Wender, reclama que o filho foi tratado como marginal por vereadores da cidade. “E mesmo que fosse — o que não era —, ninguém merece ser executado. O Brasil não tem pena de morte.”
Dois dias depois da operação policial, a cidade foi tomada por protestos em pelo menos quatro pontos diferentes. “Não foi confronto, foi execução”, gritavam os manifestantes. Um ônibus do transporte coletivo chegou a ser incendiado, e a prefeitura pediu reforço ao governo do Estado para conter a crise.
Desde então, moradores da Bratac denunciam intimidação por parte da polícia. Viaturas passariam constantemente pelo bairro e há relatos de abuso. Em 14 de março, um vídeo mostrou um policial dando um tapa na cabeça de um jovem. No dia 29 do mesmo mês, outro vídeo registra uma viatura sendo jogada contra moradores.
No final de semana de 19 de julho, policiais voltaram à comunidade e ordenaram o fim de uma festa de aniversário. A versão da PM é de que um traficante teria chutado a viatura, e por isso os agentes precisaram entrar no local para prendê-lo. A ação terminou em confronto, com uso de balas de borracha e spray de pimenta. Uma menina de 13 anos foi atingida no rosto e precisou ser levada ao hospital.

Subprocuradoria de Justiça reabre casos e policiais passam a réus
O avanço da letalidade policial no Paraná levou à criação do Movimento Justiça Por Almas – Mães de Luto em Luta, do qual participam os pais de João Santos e Kauan de Oliveira mortos na chacina em Londrina no bairro Jardim Felicidade. Fundado em 2022 por familiares de jovens mortos em ações policiais, o grupo denuncia o que considera execuções sumárias justificadas como “confrontos” reunindo relatos, dados e dossiês.
“Há uma política de higienismo social por trás de parte dessas mortes”, afirma Haydee Melo, coordenadora do movimento. Ela perdeu o sobrinho Willian Jones, de 18 anos, morto com o amigo Anderbal Júnior, de 21, por PMs que dispararam 50 tiros contra o carro onde estavam os jovens. O caso deles é um dos reabertos recentemente pela Subprocuradoria-Geral de Justiça para Assuntos Jurídicos (SubJur), órgão de segunda instância do MP do Paraná.
Ao todo, foi determinada a reabertura de oito inquéritos sobre mortes provocadas por policiais desde maio de 2024. Em um dos casos, policiais antes inocentados passaram a responder como réus após a revisão que encontrou falhas graves e contradições nos inquéritos.
Por lei, toda morte por intervenção policial deve ser investigada. O processo começa com o Boletim de Ocorrência, geralmente preenchido pelos próprios policiais, que alegam reação armada das vítimas e justificam os disparos como legítima defesa. Em muitos casos, relatam ter recolhido as armas por entenderem que as vítimas ainda representavam risco, mesmo feridas. Essa prática compromete a cena do crime.
Por exemplo, as armas entregues pelos policiais após as mortes de Kelvin e Wender não tinham marcas de sangue, mesmo com vítimas baleadas mais de dez vezes. Houve também casos com indícios de tiro à queima-roupa ignorados nos pedidos de arquivamento. A SubJur apontou até dez falhas num único inquérito.
O promotor Ricardo Casseb Lois, do Gaesp/MP-PR, diz que esse tipo de revisão, embora natural, ganhou mais visibilidade com a nova legislação — a chamada Lei Anticrime — que exige que familiares das vítimas sejam informados antes do arquivamento de um caso. O STF determinou que o pedido de arquivamento também seja submetido à análise do Judiciário, com possibilidade de contestação por familiares.
Contudo, o promotor destaca que um dos principais entraves para o avanço das investigações, segundo o promotor, é a dificuldade em localizar e ouvir familiares das vítimas. “Muitas famílias não sabem que podem se manifestar, e há também o medo de represálias”, afirma. Para tentar superar esse obstáculo, o MPPR está testando uma plataforma digital para facilitar o envio de denúncias e documentos, garantindo sigilo e orientação.
Para o deputado federal Tadeu Veneri (PT-PR), integrante da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e ex-deputado estadual, há uma série de fatores que explicam a alta letalidade policial no Paraná: a ausência de câmeras corporais, a impunidade promovida por corregedorias e pelo Ministério Público, a falta de acompanhamento psicológico e as precárias condições de trabalho dos policiais.
“Há também uma promiscuidade, ainda que não generalizada, entre setores da polícia e o crime organizado. “O governo do estado incentiva a violência. Os números cresceram de forma exponencial nos últimos anos”, denuncia o parlamentar.
O deputado estadual Renato Freitas (PT) também atribui à gestão estadual de Ratinho Júnior (PSD) a postura agressiva dos agentes de segurança. Ele relata ser frequentemente acusado por colegas de defender criminosos.“Para eles, os ‘bandidos’ são sempre os pobres e os pretos moradores da periferia”, afirma.
Pré-candidato à presidência, Ratinho anunciou em junho o que chamou de maior contratação de policiais civis do Estado, com 620 novos agentes.