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Reportagem

“Macho para quem?” Companheiros são maioria entre agressores de mulheres indígenas no MA

Das agressões cometidas contra mulheres indígenas no MA, 46% são violência sexual; 35% das vítimas têm de 10 a 14 anos

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Mulher indígena olha floresta ao seu redor no Maranhão
Ana Mendes/Cortesia

Entre as violências sofridas pelas mulheres indígenas do Maranhão, em 2024, 53% foram cometidas pelos próprios maridos das vítimas. Além disso, do total, 46% eram de violência sexual e 42% incluíam agressões físicas. Meninas de 10 a 14 anos foram 35% das vítimas de tais crimes, segundo o mesmo levantamento.   

As informações foram recolhidas junto ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), ligado ao Ministério da Saúde. Ao todo, 90 notificações de violência interpessoal ou autoprovocada contra pessoas indígenas no Maranhão, estado com 17 terras indígenas reconhecidas, estavam registradas no sistema. Destas, 64 contra mulheres, 71% dos casos.   

Por que isso importa?

  • O Brasil registrou pelo menos 50 casos de violência sexual contra pessoas indígenas no Brasil em 2024 (Cimi e Ministério da Saúde).
  • O orçamento para políticas de “promoção, proteção e recuperação da saúde indígena” saiu de R$ 3 bi em 2024 para 2,25 bi em 2025, R$ 750 milhões a menos.

Segundo Rosimeire Diniz, integrante do Conselho Indigenista Missionário do Maranhão (Cimi), as pressões do processo de colonização sofrido pelos povos originários atingem tanto homens quanto mulheres, provocando uma implosão nas relações interpessoais. 

Defensora popular das mulheres indígenas, como se autodenomina, Pjhcree (lê-se Picrê) Akroá Gamella, reconhece a presença dessa opressão nas aldeias e em seu cotidiano. “Vejo os meninos crescendo e repetindo: ‘tem que ser macho, tem que ser macho’. A pergunta que sempre me faço é: macho para quem? Para aprender a bater na mãe? Ou, mais tarde, bater na esposa?”, reflete. 

Diniz exemplifica o adoecimento causado pelas opressões da cultura ocidental com o abuso de álcool nos territórios. As consequências se apresentam no cotidiano das aldeias e com mais força nos corpos das mulheres.

“O álcool sempre foi uma arma utilizada para dizimar povos indígenas”, aponta Edilena Krikati, coordenadora da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) no Maranhão. Já a delegada especial da mulher Ana Marisa Brabat relata que é sob o efeito da bebida e de outras drogas que a maioria das violências contra mulheres é cometida. 

Mayla de Aguiar Lima, psicóloga do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) do Maranhão, também vê com preocupação o uso abusivo de álcool em relação à violência contra as mulheres indígenas. “Eu vejo isso como uma atualização das amarras coloniais. Esses problemas também estão dentro dos territórios, e se conectam com diversos fatores que, somados, levam à violência contra as mulheres”, explica.  

Para Gameleira* Akroá Gamella, da etnia Akroá Gamella, a saúde indígena deveria ser priorizada, como forma de enfrentamento a essa situação. “Não existe essa prioridade. Deveria ser uma questão tratada com especialista adequado à nossa realidade (indígena). O acesso também não é fácil e falta muita informação para que esse direito (à saúde) chegue com prioridade ao indígena”, declara.

O caso Akroá Gamella e a força da união entre mulheres 

Na entrada da Aldeia Cajueiro Praí é possível avistar os barracões que estão sendo construídos para receber as comitivas que participarão do “16º Encontrão da Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão”, nesta quarta-feira, 20 de agosto. 

A Aldeia integra a Terra Indígena Akroá Gamella, em processo de retomada territorial desde 2013. Segundo o fotógrafo Cruupyhre Akroá Gamella, a retomada foi ordem dos encantados. “Antes isso aqui era tudo terra arrasada”. Ele explica que a idade das plantas coincide com o processo de retomada: “Foram os Akroá Gamela que trouxeram essas ‘olhaduras’ [brotos de árvores] e agora elas estão se desenvolvendo”, conta. 

Bacabeira* Akroá-Gamella é uma destas mulheres que viu as forças do seu espírito se esvair, primeiro com uma prisão psicológica, depois com agressão física. Ela pesca, planta, colhe, faz artes com palha e salgadinhos para vender. Uma mulher que reconhece a força das gerações que atravessa. “A gente se expressa assim, nessa luta. A gente se fortalece e fortalece as parentes”, diz, lembrando das vezes em que fechou estradas pela defesa dos territórios. 

Mesmo consciente da sua liberdade, Bacabeira não estava imune à violência. Ela conta de um relacionamento que lhe deixou dois filhos, cicatrizes psicológicas e remédios para controlar o humor e o sono. “Comecei a perceber aquela ciumeira, não podia sair, não podia conversar com meus colegas, ele dizia que eu estava sendo infiel. Já grávida, fiquei naquela indecisão. Ele começou a dizer que se meu filho fosse preto não iria registrar. Mesmo eu sabendo que o filho era dele, comecei a ficar com medo”, relata, sobre o terror psicológico que viveu. Ficou porque já estava casada e com o segundo filho a caminho, a vergonha de ser mãe sozinha a paralisou. 

Bacabeira conta que ele ouvia histórias de traição na rua, “chegava em casa e descontava em mim, achando que eu estava fazendo o mesmo. Ele passou a chegar em casa sutilmente, arrastando os pés para me pegar de surpresa. Por várias vezes eu me espantei. Chegava sem barulho. Foi aí que começou aquele nervoso. Não dizia nada para minha família, mas eles começaram a perceber a minha mudança de comportamento”, lembra Bacabeira de como superou as violências físicas e psicológicas que sofria.

Ela também recorda que as coisas foram se agravando até o ponto em que se viu com as mãos dele em seu pescoço, por duas vezes, na frente dos filhos pequenos. “Ele esmagava meu espírito. Eu não era a mesma mulher, me sentia fraca. Meu modo de pensar não era o mesmo, eu surtei. Até hoje tomo medicação para não sentir medo. Fui obrigada a sair de casa para me tratar. Se eu olhasse um gato, eu via uma onça”. 

No caso de Bacabeira a família e a comunidade a acolheram, inclusive pagando serviço psicológico. Após as crises mais intensas, ela passou a ser atendida pelo Centro de Atendimento Psicológico (CAPs) da região. 

Gameleira Akroá-Gamella é outra mulher que contou sua história para fortalecer as demais. Entretanto, nem sempre foi assim. Antes o sofrimento da violência doméstica ficava em um silêncio sombrio. 

Gameleira tem uma trajetória em movimentos sociais, comissões pastorais e, na época em que sofria violência do ex-marido, trabalhava no poder público com justiça restaurativa para mulheres. O silêncio veio como forma de manter uma pretensa postura de mulher inabalável. 

“As mulheres vítimas chegavam a mim para contar sua situação. Eu olhava aquelas mulheres que vinham buscar ajuda enquanto eu também estava morta por dentro. Mas vi que eu tinha consciência e precisava fazer o caminho que eu indiquei tantas vezes para outras vítimas como eu. Foi um despertar e comecei a lutar. Comecei a participar cada vez mais de encontros com mulheres. A cura interior foi forte. A justiça restaurativa ajudou muito”, lembra. 

Hoje seu pensamento é diferente. “Não tem coisa melhor do que a gente falar de uma dor que a gente passou e superou. É importante quando a gente fala isso para outra mulher que está sofrendo e dizer ‘tu pode, tu tem chance’”, afirma. 

Gameleira destaca que a principal questão a ser vista no território indígena é a do respeito por igualdade de direitos. Ela acrescenta a prevenção como estratégia contra a violência: “é importante preparar as mulheres com informações sobre políticas públicas de direitos. O conhecimento liberta”, conclui.

A necessidade de auto-organização das mulheres indígenas é apontada por lideranças e especialistas como uma ferramenta com potencial para o enfrentamento a violência dentro e fora dos territórios. Pjhcree Akroá Gamella é uma delas. “Se as mulheres tivessem uma organização, essas maldades poderiam até não terminar, mas elas iriam diminuir muito”. 

Para ela, a violência contra mulher é uma doença que atinge a mente, deixando a pessoa em um estado de miséria existencial e espiritual. “Não adianta você plantar uma semente numa terra que não tem mais força. Então, tem que curar primeiro a terra para poder plantar a semente”, diz. 

Interromper as violências contra os territórios indígenas, na avaliação de Pjhcree, só será possível garantindo que as mulheres possam construir suas próprias respostas. Para isso, reivindica atendimento psicológico permanente dentro do território como uma forma de recuperação dos danos causados pela violência. Aliado a isso, destaca a importância de espaços de autocuidado, para que as mulheres possam compartilhar suas dores e criar laços de solidariedade.

Edição:

*Para proteger a identidade das mulheres Akroá Gamella e detalhar suas histórias, elas estão nomeadas nesta reportagem como árvores do território.

Matheus Pigozzi/Agência Pública
Matheus Pigozzi/Agência Pública
Praw Akroá Gamella/Arquivo pessoal
Fabrício Serrão/Arquivo pessoal

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