A Prefeitura de São Paulo fez uma licitação de até R$ 521 milhões anuais para comprar produtos à base de canabidiol (CBD) para o sistema público de saúde do município. O acesso aos medicamentos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) beneficia milhares de pacientes para o tratamento de doenças diversas, porém, o valor pago pelos frascos foi bem mais alto do que o praticado no mercado, e empresas concorrentes alegam possível direcionamento.
Na gestão Ricardo Nunes (MDB) cada frasco custou entre R$ 850 e R$ 1,9 mil. Já no mercado, produtos similares são vendidos com preço médio entre R$ 426 e R$ 931, segundo levantamento da empresa de inteligência Kaya Mind, especializada em dados e inteligência de mercado no setor de cannabis e cânhamo, com base em 2,5 mil produtos à base de cannabis feito à pedido da Agência Pública.
A vencedora da licitação foi a Velox Transportes de Produtos e Serviços, uma empresa de logística, que apresentou o preço mais alto entre as nove concorrentes. Mesmo assim, foi a única considerada apta a seguir no processo. Um frasco de 200 ml com 6.000 mg de canabidiol fornecido pela empresa sai por mais de oito vezes o valor ofertado pela concorrente que deu o menor lance (R$ 227).
As outras participantes foram desclassificadas por não atenderem exigências técnicas do edital. A principal delas foi a obrigatoriedade, pelo edital, de que o produto contenha vitamina E e ômega 3 em sua formulação – uma característica considerada incomum, mas presente no item oferecido pela Velox.
“Quase nenhum produto do mercado tem essas características e não há pesquisas consolidadas sobre os benefícios dessa adição. Para mim é até um choque terem feito essa exigência”, afirma Thiago Cardoso, chefe de inteligência da Kaya Mind.
O próprio treinamento da Secretaria Municipal de Saúde para orientar médicos da rede pública sobre como receitar o canabidiol apresenta o produto como tendo uma “fórmula exclusiva” que contém ômega 3 e vitamina E, como diz a apresentação a que a Pública teve acesso.
“Por que esses adicionais seriam obrigatórios? É fácil obter por outras suplementações e não tem estudos comprovando que a eficácia aumenta. Penso que só se justificaria se o médico exigisse para a condição de um determinado paciente, mas pedir a formulação para todos não faz sentido”, diz uma pessoa que trabalha na área de vendas para três empresas de produtos à base de cannabis – nenhuma delas participou da licitação.
Por que isso importa?
- Em uma ação para ampliar a oferta de canabidiol pela rede pública de São Paulo, a prefeitura da capital pagou até oito vezes mais caro pelo produto, em relação ao preço de mercado;
- O contrato foi firmado com a empresa Velox, que fornece o produto de uma fabricante paraguaia.
As opiniões são reforçadas por Andréa Galassi, professora da Universidade de Brasília e coordenadora do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas, uma das principais pesquisadoras sobre CBD no país. “É no mínimo esquisito”, ela afirma. “Isso não é comum nos óleos comercializados, tanto os importados, quanto os que são produzidos e vendidos pelas associações de pacientes. Não existe nenhuma exigência de que o canabidiol tenha na sua composição ômega 3 e vitamina E.”
“Além disso, a gente não tem evidência científica robusta que sustente que tenha que haver ômega 3 nos óleos de CBD. Achei um artigo recente, desse ano, que é dos poucos, para não dizer o único, que coloca essa discussão de ter ômega 3 no óleo de CBD para tratar a dor neuropática pode ser benéfico”, ela continua.
O artigo mencionado pela pesquisadora foi publicado no Journal of Pharmacy and Pharmacology em maio deste ano, meses após o edital, de outubro de 2024.
Pelo menos duas empresas tentaram impugnar o resultado da licitação da prefeitura alegando que o pedido é descabido. Os recursos foram negados, com a justificativa de que os suplementos “ampliam a eficácia do produto final, não sendo vedados por normativas [da Anvisa]. Sendo assim, a inclusão de vitamina E e ômega 3 não é meramente ornamental ou restritiva, mas sim uma medida necessária para assegurar a qualidade, eficácia e segurança dos produtos licitados.”
Outras concorrentes também contestaram a exigência do atestado de capacidade técnica – documento emitido por um cliente que comprova a aptidão da empresa para executar o serviço. Segundo elas, o edital demandava um volume de experiência considerado alto demais para um setor que ainda engatinha em operações de larga escala no Brasil.
Como a maioria das empresas de cannabis tem pouca trajetória em vendas para órgãos públicos, especialmente em quantidades volumosas como as demandadas por secretarias de saúde, muitas não conseguiram atender à exigência.
Entre os atestados enviados pela Velox, dois foram assinados por uma mesma pessoa, em nome de duas empresas diferentes (uma empresa de importação e uma clínica de cirurgia plástica), poucos dias antes da publicação do edital, em outubro do ano passado. Uma empresa questionou o uso destes atestados pela empresa, apontando que pode ter ocorrido tentativa de a Velox simular experiência, mas o recurso foi rejeitado pelo pregoeiro.
Em 22 de setembro, a prefeitura assinou um aditivo prorrogando os efeitos do edital por mais um ano, até o fim de 2026.
Em nota, a Secretaria Municipal da Saúde disse que as empresas participantes tiveram igualdade de condições para adequação às exigências do edital. Sobre a empresa vencedora, a documentação apresentada foi analisada por uma comissão responsável, que não encontrou irregularidades. “O processo respeitou critérios técnicos como origem fitoterápica, que preserva integralmente os compostos da planta, e exigência de elementos com propriedades terapêuticas como ômega 3 e a vitamina E, garantindo maior segurança e eficácia na utilização do insumo”, diz o texto.
A prefeitura também afirma que os preços praticados “refletem as especificações técnicas exigidas, que diferem de produtos comercializados em outros segmentos de mercado, não sendo possível uma comparação direta.”
A compra do canabidiol ocorre em meio à campanha da prefeitura para ampliar o uso do produto para mais de 30 doenças, como autismo, Alzheimer, doenças reumáticas (como artrite e artrose) e até dor crônica. Com a maior oferta na rede pública, pacientes que precisavam recorrer à Justiça para conseguir tratamento poderão obter as medicações de forma mais acessível. Nunes tenta ultrapassar a marca do governo estadual, de Tarcísio de Freitas (Republicanos), que é referência em prescrição de canabidiol no sistema público, porém recomenda o uso a poucas condições de saúde.

Contratada não importou para pacientes nos últimos anos
A importação de produtos à base de cannabis no Brasil é regulada pela resolução RDC 660 da Anvisa, que autoriza pacientes com prescrição médica a encomendar o canabidiol indicado por seus médicos. A licitação da prefeitura de São Paulo se baseou nesta norma para justificar a compra, uma vez que o canabidiol é produzido fora do Brasil e deve ser importado para cá.
A Anvisa mantém uma lista de empresas habilitadas a intermediar o processo. No entanto, levantamento da Kaya Mind mostra que não há registro de pacientes que tenham feito importações via Velox nos últimos três anos.
Já outra empresa do mesmo dono da Velox, Edson dos Santos Maciel – a Softcann – aparece nos registros da Anvisa, embora em volume pequeno: cerca de 200 pacientes receberam autorização para importar seus produtos com ela nesse período.
O canabidiol adquirido pela gestão municipal tem como fabricante a Healthy Grains, sediada em Luque, no Paraguai. No Brasil, a única empresa que oficialmente comercializa produtos da Healthy Grains é justamente a Softcann. Mesmo assim, a licitação foi firmada em nome da Velox, apesar de os frascos distribuídos aos pacientes trazerem a marca Softcann no rótulo. A Healthy Grains foi procurada, mas não respondeu os questionamentos da reportagem até a publicação.
Anvisa proíbe estoques, mas município guarda quase 2 mil frascos
De acordo com a Anvisa, importações pela RDC 660 devem ser realizadas pelo paciente, mas também podem ser intermediadas por secretarias de saúde “desde que o atendimento seja exclusivo e direcionado a pacientes previamente cadastrados na Anvisa” e que “seja adquirido o produto específico constante da Autorização de Importação do paciente, devendo a entrega ser feita diretamente ao paciente cadastrado”. Ainda segundo a Anvisa, não é permitida a formação de estoques.
Médicos da rede municipal consultados pela reportagem, porém, dizem que estes pontos não têm sido cumpridos. Sob a condição de anonimato, eles disseram que não receberam orientação sobre a necessidade de os pacientes se cadastrarem na Anvisa. Também afirmam que o produto está estocado em farmácias populares. Os pacientes recebem a receita e vão buscar o produto.
Em 23 de setembro, a plataforma “Remédio na Hora”, que mostra a disponibilidade de remédios na rede municipal, exibia que farmácias de oito postos de saúde da capital tinham disponibilidade “alta” de canabidiol. Ao todo, as unidades dispunham de 1856 frascos em estoque.
Em resposta, a Anvisa reforçou que todos os pacientes que fazem uso de canabidiol (ou seus responsáveis) devem se cadastrar na agência e somente após o cadastro ser aprovado a importação pode ser realizada. Segundo o órgão, a importação sem cumprir esse trâmite “constitui infração sanitária nos termos da Lei 6.437, de 20 de agosto de 1977, sem prejuízo das demais sanções de natureza civil, administrativa e penal cabíveis”.
A prefeitura disse, em nota, que estruturou o processo de oferta de produtos à base de canabidiol em serviços especializados da rede municipal com o objetivo de ampliar o acesso de pacientes que, até então, precisavam recorrer à via judicial para obter o tratamento. “A prescrição é realizada exclusivamente por médicos legalmente habilitados e capacitados para o uso da cannabis medicinal, com base em avaliação clínica individual”, disse.
“Os processos de compra seguiram rigorosamente as legislações federal e estadual e a autorização da Anvisa para aquisição e distribuição de produtos à base de canabidiol. A empresa citada possui as autorizações necessárias conforme a legislação vigente. Por fim, cabe ressaltar que por não se tratar de um medicamento e ser utilizado de forma complementar aos medicamentos convencionais, especialmente em terapias refratárias (aquelas que não respondem adequadamente aos tratamentos disponíveis), o registro junto ao órgão federal não é obrigatório”, continua o texto.
A Velox disse que não poderia falar sobre a licitação por questão de compliance entre o fabricante e a distribuidora.