Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a newsletter Xeque na Democracia, enviada toda segunda-feira, 12h. Para receber as próximas edições, inscreva-se aqui.
Eu nunca tinha pensado na dublagem como um produto cultural brasileiro, algo de que devêssemos ter orgulho, até a última quinta-feira (13), quando participei de uma audiência pública da Comissão Especial de Inteligência Artificial da Câmara dos Deputados para debater a regulação da inteligência artificial (IA) no Brasil.
Nem tinha pensado como certas dublagens fazem parte da minha memória afetiva, da minha vida. Inclusive, achei estranha a quantidade de reclamações que recebemos quando usamos uma voz traduzida com IA no nosso Podcast Caça às Bruxas – uma história de terror real.
Mas a dublagem nacional tem um peso cultural que conheci através de Fábio Azevedo, presidente da Dublar, Associação Brasileira de Profissionais de Dublagem. A Audiência foi liderada pelo deputado Orlando Silva (PCdoB) dentro dos debates sobre o PL 2.338/2023, que pretende regular o uso da inteligência artificial. O objetivo era registrar como diversos tipos de criadores de cultura e conhecimento já estão sendo afetados pela nova tecnologia que está sendo usada no Brasil sem nenhum regramento.
No seu vozeirão grave, Fábio Azevedo fez questão de ressaltar que a dublagem brasileira é uma referência internacional de qualidade. Mais do que isso, ela faz parte da nossa memória afetiva, desde a infância. “Quem não sabe uma frase de um seriado como Chaves ou de um desenho animado como Cavaleiros do Zodíaco, de um filme que seja bem dublado?”, disse. “Por trás de cada um desses trabalhos existe um ser humano, existe um artista e existe um trabalhador brasileiro”.
É fato. A dublagem no Brasil é tão amplamente usada, que se tornou um produto cultural por si só. Segundo o site ingressso.com, mais de 70% dos ingressos de cinema são para filmes dublados. E a dublagem, por aqui, não é só uma “substituição de voz” – é uma criação própria, uma tradução de sentidos quase tão importante quanto a tradução das palavras em si.
O próprio Fábio Azevedo, vejamos. Ele é “o” Benedict Cumberbatch brasileiro, ou seja, sempre que você vê um filme dublado com o ator britânico, o que você ouve é a interpretação de Fábio, ali da sua cabine, sobre como falaria o Cumberbatch se por acaso falasse português. Ele é o Dr Strange em todas as versões que você já viu, foi a “fera” no filme A Bela e a Fera de 2017, e também foi o coitado do Theon Greyjoy em Game of Thrones.
Viu? Você conhece o trabalho do Fábio, sem nem saber.
O dublador tinha um alerta pra fazer durante a audiência pública. “O advento da inteligência artificial generativa criou um buraco enorme no meio do nosso campo. Um buraco que tende a sugar não só o potencial econômico do mercado para grupos estrangeiros, mas também a nossa brasilidade que é sugada, pasteurizada e regurgitada do outro lado, travestida de inovação”, disse.
“A nossa língua é a nossa pátria. A nossa identidade é o nosso maior bem”, concluiu Fábio Azevedo.
Também estiveram presentes outros representantes de criadores culturais, como a Associação Brasileira de Produtoras de Som (Apro+Som), Associação Brasileira de Autores Roteiristas (Abra), e a União Democrática de Artistas Digitais (Unidad).
Hoje, o projeto de lei aprovado pelo Senado e em discussão na Câmara preserva os direitos autorais de criadores brasileiros. O uso de conteúdos protegidos por direitos autorais em processos de mineração, treinamento e desenvolvimento de inteligência artificial vendidos comercialmente enseja remuneração aos criadores. Já o uso de imagem e voz de pessoas por sistemas de IA deverá respeitar os direitos da personalidade, conforme previstos no Código Civil; qualquer uso precisa de consentimento e pode resultar em ações judiciais e pedidos de indenização.
Há alguns poréns. Primeiro, a relatora na Câmara dos Deputados é Luísa Canziani, que é considerada uma “aliada” pelas Big Techs, conforme revelamos no especial A Mão Invisível das Big Techs, que detalhou como opera o lobby dessas empresas. E a derrubada do direito autoral é a prioridade número 1 de empresas como Meta, Google, Microsoft, e OpenAI. Isso porque essas empresas, respaldadas pelo governo americano de Donald Trump, querem evitar um precedente que pode inviabilizar seu modelo de negócio se espalhado para todos os países – pagar pelo tanto de informação que elas já “sugaram” de graça traria um enorme ônus. No faroeste da falta de leis digitais, alguns países, desenvolvidos, como a União Europeia, se saíram melhor: como lá há lei, a busca do Google não pode usar aqueles resumimos de notícias feitos por IA, por exemplo.
Quem não tem força para resistir ao lobby e aprovar leis, fica no faroeste digital mesmo.
O próprio Orlando Silva se declarou um pouco pessimista quanto à aprovação da lei 2.338/2023.
Afinal, a audiência aconteceu na Apeoesp, o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado, no centro de São Paulo, bem longe dos ouvidos da relatora, que não arrumou um espaço na sua agenda para ouvir os representantes dessas indústrias criativas – e nem mandou um assessor.
Há grandes chances de que, com o avassalador lobby realizado pelas Big Techs no Congresso, e sem espaço naquela casa, a visão daqueles que constroem a cultura e o conhecimento usados para alimentar as maquininhas de IA não seja levada em conta.
Eu estive na audiência para falar de como a IA já está afetando o jornalismo através da mineração de conteúdos produzidos por nós sem a menor compensação – e sem nem mesmo perguntar se permitimos esse uso.
Expliquei que uma reportagem nossa sobre as relações do FBI e Lava Jato, por exemplo, já é amplamente usada tanto pelo ChatGPT quanto pelo Deepseek e pelo Google AI Overview. Apenas o terceiro oferece link para o texto original – e mesmo assim, está no cantinho de um box à direita do texto e o leitor tem que se esforçar para clicar duas vezes e chegar até lá.
Para escrever essa reportagem, eu passei nove meses analisando documentos vazados, viajei até os Estados Unidos, entrevistei pelo menos 15 fontes, tive apoio de mais três jornalistas – tanto da Agência Pública quanto do Intercept Brasil – uma editora, um designer e dois advogados.
Todo esse trabalho humano, que permite que o jornalismo investigativo de qualidade como esse venha a público, foi utilizado tanto pelo Google quanto pela Open AI sem nenhuma compensação financeira.
Ou seja: a adoção de inteligência artificial já está usurpando o produto do jornalismo para dar mais lucro às mesmas Big Techs que hoje são as empresas mais lucrativas do mundo.
Depois que o Google passou a utilizar inteligência artificial na busca, estudos demonstram uma queda de visualizações em sites de jornalismo. Um estudo da empresa Authoritas publicado pelo The Guardian estimou que um site que antes aparecia em primeiro na busca do Google pode perder até 79% do seu tráfego por causa dos resumos de IA. E o Pew Research Center descobriu que apenas 1% dos leitores que encontram o Google AI Overview clicam nos links.
São pessoas que se informam com o produto do nosso trabalho nessas plataformas. As assinaturas são pagas lá nos EUA, o dinheiro fica longe do nosso país.
E não somos só nós, os trabalhadores da notícia, que não somos remunerados. Nossa sociedade como um todo não recebe recompensa pelo conhecimento que geramos.
Há muita especulação e desinformação, mas é um fato que não existe IA sem jornalismo. Essas ferramentas apenas reproduzem conhecimento que é pesquisado, escrito, checado e editado por seres humanos. Para você saber o que aconteceu hoje e o que vai acontecer amanhã você precisa de jornalistas.
É para isso que precisamos dos legisladores, dos governos. Agora, diante do avassalador poder do lobby das Big Techs, conseguir regular a IA, mantendo o direito constitucional do autor, seria uma demonstração de retidão, de profissionalismo e – por que não? – de patriotismo por parte dos nossos legisladores.
Porque, se os nossos representantes eleitos não valorizarem a produção de conhecimento feita aqui no Brasil, não vão ser empresas estrangeiras que o vão fazer.
PayPal 


