Trabalhar seis dias na semana e folgar um é a rotina de milhões de brasileiros ao redor do país. O modelo, que deixa pouco tempo para viver além do trabalho, pode estar com os dias contados. A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal aprovou na última quarta-feira, 10 de dezembro, uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que garante dois dias de descanso remunerado, preferencialmente aos sábados e domingos, além de reduzir progressivamente a jornada máxima de trabalho para 36 horas semanais. A PEC que acaba com a escala 6×1 será analisada pelo plenário do Senado e, se aprovada, segue para a Câmara dos Deputados.
Mas, afinal, o que pode mudar com as propostas em tramitação no Congresso? Quem são as pessoas que trabalham na jornada 6×1 e podem ser beneficiadas? Quais os argumentos a favor e contra? A Agência Pública conversou com especialistas e responde às principais perguntas sobre o tema.
Por que isso importa?
- Pelo menos 65% da população brasileira aprova o fim da escala 6×1. O dado é de uma pesquisa do Nexus divulgada em março deste ano
- Levantamentos apontam que a maioria dos trabalhadores em escala 6×1 no Brasil são negros e ganham até 1,5 salário mínimo.
Quais as propostas na mesa e o que elas mudariam?
A luta pelo fim da escala 6×1 ganhou força nos últimos dois anos, mas propostas para reduzir a jornada de trabalho estabelecida na Constituição vêm sendo apresentadas no Congresso desde os anos 1990.
Atualmente, há pelo menos quatro projetos de lei (PLs) ou PECs tramitando, tanto no Senado quanto na Câmara, que buscam acabar com a jornada 6×1. Parte das propostas estabelece a jornada 5×2, mas há proposições até mesmo para tornar a 4×3 como padrão.
É o caso da PEC 8/2025, apresentada pela deputada Erika Hilton e outros deputados após a repercussão do Movimento Vida Além do Trabalho (VAT). A proposta busca reduzir a jornada semanal para 36 horas, com uma escala de quatro dias de trabalho para três de descanso. Na justificativa, a parlamentar afirma que a alteração “reflete um movimento global em direção a modelos de trabalho mais flexíveis aos trabalhadores, reconhecendo a necessidade de adaptação às novas realidades do mercado de trabalho e às demandas por melhor qualidade de vida dos trabalhadores e de seus familiares”.
A PEC apresentada por Hilton ainda não foi direcionada a comissões pelo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), mas uma Subcomissão Especial voltada para discutir o assunto foi criada na Comissão de Trabalho. O relator da Subcomissão, deputado Luiz Gastão (PSD-CE), no entanto, surpreendeu ao apresentar no início do mês um relatório que mantém a previsão de escala 6×1, apenas reduzindo o limite semanal para 40 horas de maneira gradual e estabelecendo pagamento em dobro para jornadas que excederem seis horas diárias aos sábados e domingos. O relatório, criticado por Hilton, ainda não foi votado após pedido de vista coletivo.
Já a PEC 148/2015, aprovada pela CCJ do Senado, tramita há mais de uma década, mas incluiu o fim da escala 6×1 recentemente, propondo uma alteração mais branda em comparação ao texto de Erika Hilton. A proposta, apresentada pelo senador Paulo Paim (PT-RS) em conjunto com outros senadores, tem a tramitação mais avançada até o momento.

O relatório aprovado na CCJ também reduz a jornada para 36 horas semanais, com a manutenção do limite de oito horas diárias, mas estabelece uma jornada de cinco dias de trabalho e dois de descanso a partir do ano seguinte à aprovação, além propôr uma redução gradual do número de horas. Segundo o texto, a mudança começaria com 40 horas semanais a partir de 1º de janeiro do ano seguinte e seria reduzida em uma hora por ano, até chegar em 36.
Há ainda a PEC 4/2025, do senador Cleitinho (Republicanos-MG), que propõe redução da jornada para 40 horas semanais e o estabelecimento de jornada 5×2. Já o PL 67/2025, da deputada Daiana Santos (PCdoB-RS), busca a mesma alteração, mas com mudanças não constitucionais. O projeto que tramita na Câmara teve relatório apresentado na Comissão de Trabalho, propondo regras de transição e prevendo a possibilidade de uma escala 4×3, além da 5×2 como padrão. O texto ainda não foi votado.
As propostas discutidas no Congresso determinam que não deve haver redução salarial, mesmo com a diminuição das horas de trabalho. Os demais direitos trabalhistas, como férias remuneradas, 13º e outros permanecem sem alteração.
À Pública, a professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e juíza titular da 4ª Vara do Trabalho de Porto Alegre, Valdete Souto Severo, chama atenção para o fato de que as alterações propostas pelos parlamentares terão efeito limitado caso não haja proibição dos regimes de compensação de jornada, que ganharam tração com a reforma trabalhista e permitem que horas trabalhadas a mais, sejam trocadas por redução da jornada ou folga (banco de horas), ao invés de pagamento de hora extra.
“Na realidade, esses limites de oito [horas diárias] e 44 [horas semanais] são extrapolados por esses regimes de compensação de jornada, como ocorre na escala 12 por 36. Então, se houver alteração nos limites diário e semanal da Constituição e da CLT, mas continuar sendo permitido regime de compensação, as pessoas vão seguir trabalhando – como hoje trabalham –, além dos limites legal e constitucional”, diz.
Quantas pessoas seriam beneficiadas pelo fim da escala 6×1?
Não há dados oficiais sobre o número de trabalhadores em escala 6×1, mas é possível chegar a um cálculo aproximado. O mais frequentemente utilizado é o número de pessoas com carteira assinada trabalhando entre 41 e 44 horas semanais, extraído da RAIS (Relação Anual de Informações Sociais), levantamento periódico feito pelo Ministério do Trabalho e Emprego.
Segundo números de dezembro de 2023, 33,51 milhões de pessoas trabalhavam nessas condições na época, o último mês com dados completos disponíveis. Esse montante representa 61,2% de um total de 54,7 milhões de CLTs (não há dados sobre quantidade de horas trabalhadas de cerca de 2,6 milhões de CLTs; se considerarmos apenas os que têm dados, são 64,3% em jornadas maiores que 40 horas). Como o máximo de horas de trabalho por dia é geralmente limitado a oito horas, é nesse contingente que se encontram os trabalhadores em escala 6×1 – mas também estão aqui funcionários em escala 12×36, por exemplo.
O número pode ser maior, já que há quase 40 milhões de brasileiros na informalidade e também há pessoas com carteira que trabalham menos de 40 horas semanais, mas que têm suas horas distribuídas em seis dias.
Maioria dos trabalhadores em escala 6×1 é formada por pessoas negras
Alguns estudos e levantamentos se debruçaram em tentar entender qual o perfil dos trabalhadores que encaram jornadas de seis dias com um de folga no Brasil. São trabalhadores que recebem até 1,5 salário mínimo por mês e são majoritariamente negros – com as mulheres negras recebendo uma remuneração média menor do que os homens. A maioria tem ensino médio completo e/ou superior incompleto.
Segundo dados da RAIS, presentes em relatório da FIEMG, os setores com maior porcentagem de trabalhadores com escalas maiores que 40 horas – majoritariamente em escala 6×1 – são agropecuária, extração vegetal, caça e pesca (95,5% do total), construção civil (94,2%), comércio (92,2%) e indústria de transformação (90,3%). Esses quatro setores somados representam 22,7 milhões de trabalhadores, cerca de 41% do total de celetistas. O setor de serviços, que emprega 31,1 milhões de pessoas (57% do total), tem 58,1% dos trabalhadores em regime de mais de 40 horas semanais. É no setor de serviços em que se encontram os trabalhadores de alojamento e alimentação, um dos grupos que mais seria beneficiado com o fim da escala 6×1.
Microdados da RAIS de 2022, trabalhados pelo jornalista Marcelo Soares, da Lagom Data, para a Carta Capital mostram que 42% desses trabalhadores recebiam até 1,5 salário mínimo e que Santa Catarina era o estado com maior percentual de trabalhadores em jornadas maiores que 40 horas – 80% do total. Goiás, Mato Grosso e Rondônia tinham cerca de 75%.
A predominância de trabalhadores negros entre os que têm jornadas de trabalho superiores a 40 horas semanais aparece em um levantamento do Núcleo de Estudos Raciais do Insper, publicado no site Alma Preta. O estudo, feito a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, do IBGE, mostra que 65,5% dos trabalhadores da construção, 65,2% dos da agricultura e áreas correlatas e 60% de alojamento e alimentação são negros, cenário que se repete em outros setores em que predomina a escala 6×1.
Segundo o Atlas da Escala 6×1, elaborado pelo Observatório do Estado Social Brasileiro, pelo Sindicato dos Comerciários do Rio de Janeiro e pela Associação Trabalho, Rede, Acompanhamento e Memória (Trama), 46% dos trabalhadores com jornadas superiores a 40 horas recebem entre um e 1,5 salário mínimo. Outros 22% recebem até um salário mínimo. A análise utilizou dados da RAIS e do IBGE.
Quais os argumentos favoráveis e contrários? Quem é a favor e quem é contra?
A proposta impulsionada pelo vereador Rick Azevedo ganhou repercussão nacional e angariou apoio massivo, mas também gerou reações contrárias, especialmente do setor produtivo.
De um lado, a ideia de que deve existir vida além do trabalho e de que jornadas como a 6×1 aumentam o risco de doenças físicas e mentais e de afastamentos por burnout, além de aumentar as chances de acidentes de trabalho. Do outro, a perspectiva de danos à economia e à empregabilidade no país com a redução da jornada.
Entre os setores favoráveis, estão movimentos sociais e sindicais. A proposta tem sido encampada pelo governo Lula (PT) e deve ser uma das principais bandeiras do partido do presidente na eleição de 2026. Segundo o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Guilherme Boulos, a posição do governo é de apoiar a proposta que tramitar mais rapidamente.
Para o advogado trabalhista e sindical Espedito Fonseca, integrante da Rede Lado, “o movimento VAT surge como uma resposta a uma insatisfação concreta da sociedade com jornadas exaustivas e a falta de tempo para viver”. “Ao defender o fim da escala 6×1, o movimento dá voz a uma realidade sentida por milhões de trabalhadores, para quem o único dia de descanso serve apenas para recuperação física, e não para lazer, família ou cuidado com a saúde”, aponta Fonseca, que enxerga um cenário mais favorável a mudanças no mundo do trabalho.
Entre os setores contrários à proposta, se destacam os ligados à indústria. Um estudo da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (FIEMG), por exemplo, sintetiza os principais argumentos de quem se opõe à mudança. O relatório fala em queda de até 16% do Produto Interno Bruto (PIB), aumento de custos para as empresas, perda de competitividade, elevação da informalidade e fechamento de até 18 milhões de postos de trabalho no país, em um cenário em que a produtividade não aumente.
Já uma análise feita por Daniel Duque, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), ligado à Fundação Getúlio Vargas (FGV), traz um cenário um pouco menos alarmante. O economista estima uma queda no PIB de 2,6% em caso de redução para 40 horas semanais e de 7,4% em caso de redução para 36 horas, também considerando um cenário de manutenção do nível de produtividade atual.
Na visão do advogado Espedito Fonseca, no entanto, os contrários à proposta “se baseiam na ideia de que direitos impedem o crescimento econômico e a geração de empregos”, mas a “experiência brasileira recente desmente esse discurso”, afirma. “A reforma trabalhista de 2017, apresentada como solução para o desemprego, resultou em maior precarização e informalidade, sem melhora significativa na qualidade ou no volume dos empregos”, aponta Fonseca, citando estudos que mostram que aumentar os direitos trabalhistas “pode contribuir para equilíbrio econômico e justiça social”.
Para Souto Severo, da UFGRS, “a jornada extensa adoece o trabalhador, compromete o vínculo familiar e pode causar dano efetivo a quem convive com essa pessoa que está exausta”. “É um problema que diz em que tipo de sociedade a gente quer viver. Se é uma sociedade de pessoas exaustas e sem tempo, ou se é uma sociedade de pessoas que têm saúde e tempo para o resto da vida, inclusive, para pensar sobre o que a gente está fazendo com o mundo”, aponta a professora e juíza, fazendo menção à emergência climática.
No relatório do senador Rogério Carvalho (PT-SE), relator da PEC aprovada na CCJ, é citada a experiência vivida pelo Brasil na última vez que houve alteração na jornada. “Quando a Constituição de 1988 reduziu de 48 para 44 horas a jornada semanal de trabalho, não houve aumento do desemprego em 1989. Ao contrário, (…), verificou-se um aumento do salário real por hora em relação aos demais trabalhadores”, diz o texto, que também cita experiências internacionais positivas com a alteração.
Em uma audiência pública na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara, o ministro Guilherme Boulos também rebateu as críticas ao movimento. “Fala-se muito que não podemos reduzir a jornada porque nossa produtividade é menor. Mas como ela vai aumentar se a trabalhadora e o trabalhador não têm tempo para estudar, descansar e melhorar suas condições de trabalho?”, afirmou Boulos. “O tema envolve números e impactos econômicos, mas envolve também humanidade. O mercado se adapta”, apontou.
Como a pauta ganhou relevância no debate nacional?
O pleito por redução da jornada de trabalho não é algo novo, remetendo às primeiras greves de trabalhadores ao redor do mundo. Mas, no Brasil, a discussão ganhou tração graças a um vídeo no TikTok e muita revolta com um modelo descrito como uma “escravidão moderna”.
Isso bastou para que o tocantinense Rick Azevedo, que trabalhava como caixa em uma farmácia no Rio de Janeiro, colocasse a escala 6×1 na boca de boa parte dos brasileiros. A publicação, feita em setembro de 2023, viralizou e se transformou no Movimento Movimento Vida Além do Trabalho (VAT), catapultando Azevedo a uma vaga na Câmara Municipal do Rio de Janeiro em 2024, pelo PSOL. Uma petição pública feita pelo VAT atingiu quase três milhões de assinaturas e fez com que a pauta ganhasse força no Congresso Nacional, por meio de uma PEC protocolada pela deputada Erika Hilton (PSOL-SP), que impulsionou a tramitação de outras propostas.
O que prevê a lei atualmente?
Até a Constituição Federal de 1988, a legislação previa uma jornada máxima de 48 horas semanais e de oito horas diárias. Na época, parte dos constituintes tentaram reduzir o teto para 40 horas, mas prevaleceu uma redação mais conservadora, estabelecendo 44 horas semanais e mantendo as oito horas diárias, além de permitir compensação de horários e redução de jornada mediante acordo ou convenção coletiva. A Constituição também estabelece que é direito do trabalhador ter ao menos um dia de repouso semanalmente, de preferência aos domingos. Na prática, isso abre margem para jornadas de trabalho 6×1.
Além da jornada de seis dias de trabalho para um de descanso, criticada por movimentos como o VAT, também há outros tipos de modelo de trabalho. Entre as mais comuns estão a escala 5×2 e a 12×36.
A 5×2 é a mais recorrente na administração pública, por exemplo. Nesse modelo, geralmente se trabalha em uma escala de oito horas diárias durante a semana e se descansa aos finais de semana, totalizando 40 horas semanais.
Já a escala 12×36 é especialmente comum em setores que funcionam com escala de plantão, como a saúde, segurança e portarias. A previsão desse tipo de regime de trabalho passou a constar na Consolidação das Leis de Trabalho (CLT) a partir da Reforma Trabalhista de 2017. Nesse caso, o trabalhador atua por 12 horas consecutivas (com pausa para refeição) e descansa por 36 horas. Na prática, é uma escala em que se trabalha um dia sim e um dia não. No cômputo geral do mês, a média de trabalho semanal é de 42 horas.

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