Jogos de aventura, de futebol ou de guerra? Independentemente do estilo favorito, alguns grupos de jogadores estão servindo como megafone de intolerância e perseguição. É o que diz Ivan Mussa, professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e autor do artigo “Ódio ao jogo: cripto-fascismo e comunicação anti-lúdica na cultura dos videogames”, que investiga o uso de jogos para propagar o discurso da extrema direita.
Em conversa com a Agência Pública, Mussa explica como o fenômeno chegou no Brasil e aproximou a comunidade gamer ao bolsonarismo, transformando o grupo em um de seus principais aliados nas eleições de 2018.
Leia os principais trechos da entrevista:
O que é cripto-fascismo?
É uma estratégia de comunicação de forças políticas fascistas. Depois da Segunda Guerra, houve todo um esforço para estigmatizar a política fascista, porque ela não estava presente só na Alemanha ou nos países do Eixo, mas em todos os lugares. Por conta da derrota desse grupo, ficou muito difícil para essas forças se identificarem como fascistas ou mesmo um partido. Então eles disfarçaram as mensagens de uma forma que elas ficassem mais fáceis de circular na mídia em geral. O fascismo nos países europeus, por exemplo, sempre esteve ligado à ideia de supremacismo branco, o que faz alusão ao nazifascismo. Um partido britânico chamado BNP [Partido Nacional Britânico] fez uma estratégia de reformular a comunicação para “nós não somos contra outras raças e outras etnias, mas nós queremos um país só para os britânicos”. Parecem coisas diferentes, mas esse era o objetivo do nazifascismo, um território livre de outras raças consideradas por eles como inferiores. É a mesma pauta, só que colocada com palavras mais palatáveis e que poderiam circular na mídia.
Como isso aparece na comunidade gamer?
Existiu na indústria de videogames um incentivo muito forte ao público consumidor masculino e se convencionou que todos os personagens seriam brancos e homens, criando uma cultura gamer que aceita isso como norma. A partir do momento que vão surgir jogos que vão trazer outros tipos de personagem, isso vai ser entendido por um certo grupo como um choque e os políticos estrategistas de comunicação da extrema direita tentam infiltrar valores fascistas nesse choque. O exemplo mais óbvio é o Steve Bannon [ex-estrategista-chefe de Donald Trump], que pegou o evento do gamergate, que foi uma conspiração contra uma jornalista, e falou que aquilo fazia parte de um plano da esquerda para destruir os videogames e colocar mulheres, colocar negros e acabar com a cultura. A partir disso, o sujeito que estava tendo aquele choque pensa “faz sentido, é por isso que estão mudando, eles estão tentando acabar com a nossa identidade”, e aí algumas dessas pessoas vão ser levadas a entender isso como parte do marxismo cultural, que seria uma estratégia da esquerda de mudar a sociedade pela cultura. E aí você entra no buraco do coelho das teorias da conspiração que vai ligar isso a um projeto globalista, ao comunismo e faz a ligação dos games com essas outras teorias da extrema direita. Não é que as pessoas que jogam sejam fascistas, mas sim porque elas estão assistindo um conteúdo crítico pensando que estão defendendo a identidade delas, mas estão ajudando a alimentar uma máquina de desinformação fascista.
Além dos Estados Unidos e do Brasil, você enxerga isso em outros países?
É uma coisa mais pontual do Ocidente, me parece. Um dos pontos principais dessa constelação de crenças é que esses elementos da “nova cultura midiática” são resultados de um ataque à cultura ocidental. Para essas pessoas, você tem uma cultura superior e existem grupos que não se adaptam a ela, como negros, judeus, feministas, e a mídia estaria combatendo isso porque ela é contra esse projeto. Se você observar o discurso dos partidos de extrema direita aqui, existe essa idealização da cultura ocidental, que é uma coisa vaga, ninguém sabe dizer o que é. Mas, quando você vai ver o que essas pessoas valorizam, é a família tradicional, as religiões cristãs e uma interpretação muito enviesada do que é esse cristianismo. Tudo que ameaça isso é um complô da esquerda, dos comunistas para tomar o poder.
Não quer dizer que todo mundo que vê um vídeo com esse tipo de conteúdo vai acreditar nisso, mas, quando entram as tais máquinas de desinformação, é natural que uma ou outra pessoa acabe caindo e sendo desinformada. Aí ela vai parar em um grupo que tem uma voz muito alta, que é o dos gamers, com uma capacidade de mobilização muito perigosa.
Qual é o perfil da comunidade gamer hoje no Brasil?
Existe uma diferença entre aquela pessoa que se identifica como fã, quase como um “fã-ativista”, e quem simplesmente consome certos produtos. Nos últimos anos, principalmente com os smartphones, quase todo mundo joga alguma coisa. O perfil desse gamer [ativista] é um público em geral masculino, branco, de classe média ou classe média alta, que faz um consumo específico de jogos que chamamos de “consoles caseiros”, PlayStation 5 e Xbox Series X, que são mais modernos e caros. É um ativismo de marca, não só político: tem os “sonystas”, que gostam mais da Sony, e os “caixistas” que gostam mais do Xbox e se dividem em alianças por marcas e jogos específicos. Dentro dessa discussão e linguagem, acabam surgindo as pautas políticas. Nesse trabalho que fizemos no Metagame [Rede de Pesquisa em Jogo e Cultura Política], nós percebemos que existe uma forte rejeição à ideia de Estado. Nós medimos a rejeição do público gamer a um projeto de lei, o PLS 383, que viria a ser rejeitado, atacado, por esses gamers ativistas. Neste estudo conseguimos mapear esse discurso anti-Estado, do que eles acreditam ser uma ameaça a cultura gamer brasileira.
A antropóloga Isabela Kalil coloca os gamers como um dos grupos da base bolsonarista em 2018. Como foi o papel da comunidade gamer nas eleições?
Isso é feito mais através do discurso do que dos jogos em si. O que importa mesmo é o ser gamer, essa ideia do Estado mínimo, que fecha com uma pauta que mobiliza muito o discurso online que é a redução do imposto. Você pode ver que o governo Bolsonaro fez vários anúncios de redução dos impostos sobre games que não abaixaram o preço dos jogos nem dos aparelhos. Nós contamos quatro ou cinco em três anos e meio, para colocar combustível na mobilização desse grupo, porque isso fecha muito com a coisa do consumo. Eles valorizam muito o consumo das marcas e valorizam a pauta contra o Estado. Menos imposto significa mais desenvolvimento dentro da ideologia desse grupo.
A redução de impostos não ter diminuído o preço dos produtos teve um efeito negativo?
O que temos de concreto em uma pesquisa com um canal de games que é abertamente bolsonarista é que eles ainda mantêm a propaganda do governo de uma forma que pareça natural. De vez em quando eles estão falando que algum produto aumentou de preço e que a culpa é dos impostos, aí trazem de volta as notícias de que o governo baixou o imposto e está lutando contra isso, então vira uma espécie de propaganda subliminar. Se isso está pegando com o público, já é uma pergunta que falta responder.
Como é esse movimento de defesa? Você já viu algum caso em que o próprio governo ou pessoas ligadas à política acionaram as redes gamers para defenderem Bolsonaro?
Pelo que nós pesquisamos neste canal específico, o Canal Central, existe um apoio que aparenta ser espontâneo. Não conseguimos afirmar que existe um contato direto, por exemplo, de políticos bolsonaristas patrocinando ou apoiando isso de maneira formal ou informal. O que tem é uma aliança, incentivada por personalidades bolsonaristas, como o Jair Renan, filho mais novo do Bolsonaro, que tem envolvimento com projetos de games, foi streamer. O Carlos Bolsonaro, quando tem redução de imposto, sempre faz questão de pontuar e divulgar isso como uma forma de legitimar essa relação com o público gamer.