Palmas (TO) — Nos últimos 15 anos, o Tocantins teve quatro mandatos de governador não concluídos, com afastamentos forçados pela Justiça, sob argumento de supostas irregularidades, ou renúncias. O último mandato concluído sem interrupção data de 2006. A última queda de governador foi no ano passado, na gestão Mauro Carlesse, à época filiado ao PSL e hoje ao Agir.
A incrível instabilidade política no Tocantins tem como pano de fundo uma Polícia Civil dividida em grupos de grande animosidade entre si e unidades policiais buscando autonomia total com operações com grande apelo midiático.
Passaram ao largo de todo esse contexto político e policial a denúncia de 208 páginas da Procuradoria-Geral da República (PGR), assinada pela subprocuradora-geral Lindôra Araújo, e os extensos relatórios da Polícia Federal (PF) no âmbito da Operação Éris, um dos quais com mais de 400 páginas, que culminaram no afastamento de Carlesse em outubro de 2021. Outras 11 pessoas, das quais vários delegados de Polícia Civil, também foram afastadas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Os desentendimentos dentro da Polícia Civil estão na origem e no centro da Operação Éris, que levou à derrocada de Carlesse. Embora tocada pela PF, a operação foi alimentada com depoimentos e informações fornecidos à PF diretamente por delegados da Polícia Civil, um procedimento bastante incomum no país. Esse repasse de informações está documentado no próprio inquérito da PF que tramitou no STJ e somou mais de 6.900 páginas — ao qual a Agência Pública teve acesso — e é confirmada por delegados ouvidos em Palmas.
Assim nasceu a Operação Éris
O peso da Polícia Civil no desenrolar dos fatos é evidente. A subprocuradora-geral da República lista na sua denúncia, por exemplo, como supostas vítimas do governador, seis pessoas, todas delegados da Polícia Civil. Na lista das supostas testemunhas, Lindôra menciona cinco pessoas, das quais também três são delegados e uma é escrivã de Polícia Civil. Dos 11 citados ao final da denúncia, apenas um é de fora dos quadros da Polícia Civil — um médico, Luciano de Castro Teixeira, que fez denúncias contra o governo Carlesse e se tornou, em 2022, candidato ao governo do estado (filiado ao DC, recebeu 0,15% dos votos).
O médico costuma postar nas redes sociais mensagens favoráveis ao presidente Jair Bolsonaro. Em janeiro de 2021, escreveu no Facebook que atendeu um paciente “que vomitava sangue a madrugada seguinte ao aplicar a Coronavac”, a vacina do Instituto Butantan contra o coronavírus causador da covid-19, que na época foi atacada por Bolsonaro e seus apoiadores. A postagem do médico gerou uma enxurrada de críticas nas redes sociais. O Hospital Oswaldo Cruz, no qual o médico disse trabalhar como “médico emergencista”, teve que soltar uma nota em defesa da Coronavac.
Luciano Teixeira já havia sido candidato a prefeito de Palmas em 2012 pelo PRP e candidato a deputado federal pelo PSDB em 2018 antes de fazer as primeiras denúncias sobre o governo Carlesse. O extenso passado político dessa testemunha desaparece da denúncia enviada ao STJ pela PGR. Mas as denúncias do médico, por outro lado, são citadas várias vezes no pedido de afastamento de Carlesse.
A investigação da PF começou em novembro de 2019 a partir de um ofício também produzido por dois delegados da Polícia Civil, Guilherme Rocha Martins e Gregory Alves Almeida do Monte, e enviados à superintendente da PF no estado, Cecília Silva Franco. O ofício solicita uma “investigação para apurar evidentes atos de embaraço à investigação de infração penal que envolva organização criminosa”.
Dois dias depois, Franco encaminhou o ofício ao STJ na condição de uma “notícia crime”. Assim nasceu a Operação Éris. Diversas afirmações feitas pelos delegados nesse ofício foram depois repetidas em documentos tanto da PF quanto da PGR.
Em um ofício sigiloso de 30 páginas encaminhado ao ministro relator da Operação Eris no STJ, Mauro Campbell, em novembro de 2020, o ex-secretário de Segurança Pública Cristiano Sampaio, um dos principais alvos dos delegados da Civil e da PF, procurou desmontar e contextualizar, ponto a ponto, as afirmações dos delegados que levaram o STJ a abrir o inquérito. Sampaio rebateu a acusação central de que “o governo estadual tem perseguido delegados e interferido nas investigações de combate à corrupção”.
“Esse discurso se baseia em hipóteses e fatos falsos, inexistentes e foi apresentado em diferentes instâncias do Judiciário e do Ministério Público (MP). A estratégia denuncista adotada acabou por ensejar a abertura de diversos procedimentos investigativos, os quais, depois de devidamente instruídos, foram todos arquivados. Quanto mais se apuram as denúncias realizadas, mas se comprovam que elas são falsas. As pessoas que têm propagado esse tipo de notícia são pessoas com comprovados vínculos e interesses político-partidários em Tocantins, opositores declarados ao atual governo, o que inclui delegados de polícia civil (DPC), presidentes, dirigentes e integrantes de partidos políticos”, escreveu Sampaio.
O longo histórico de operações policiais
Segundo o grupo político de Carlesse, a criação da Delegacia de Repressão a Crimes de Maior Potencial Contra a Administração Pública (Dracma), em março de 2017, foi o marco inicial que trouxe imediatas consequências no tabuleiro da política tocantinense. Citam como exemplo a deflagração de operações de combate à corrupção que miraram adversários do governo Marcelo Miranda, governador que estava empossado à época de criação da delegacia e terminou afastado do cargo pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em abril de 2018 por suposto uso de caixa dois na campanha pelo governo estadual em 2014.
Os delegados colocados na Dracma durante a gestão de Miranda deflagraram uma série de operações que miraram adversários políticos do ex-governador. A primeira dessas ações policiais foi a Operação Espectro, de 2018, que apurou denúncias de existência de um grupo de funcionários fantasmas na Assembleia do Tocantins e resultou no indiciamento de seu então diretor-geral, o advogado Antônio Ianowich Filho, um desafeto do grupo político de Miranda.
A Dracma deflagrou também, no mesmo ano, a Operação Jogo Limpo, que apurou denúncias de desvio de dinheiro da Fundação Municipal do Esporte e Lazer (Fundesporte), vinculada à prefeitura de Palmas (TO), responsável pelo fomento ao esporte e lazer na capital do Tocantins. A Jogo Limpo atingiu em cheio o ex-prefeito de Palmas Carlos Amastha (PSB), considerado o maior antagonista político do governador Marcelo Miranda na época e tido como favorito às eleições para o governo do estado naquele ano. Candidato ao Senado em 2022, Amastha foi derrotado com 12,8% dos votos.
No dia 20 de julho deste ano, Amastha apresentou, em entrevista coletiva à imprensa, um áudio supostamente gravado em 2016 em que um homem combina um flagrante de apreensão de santinhos de sua campanha em um carro que estava distribuindo cestas básicas no período da campanha municipal de 2016. Segundo Amastha, seria o delegado Guilherme Rocha, o titular da Dracma, responsável pela Operação Jogo Limpo e, depois, um dos subscritores do ofício com denúncias enviado à PF no inquérito que afastou Mauro Carlesse. Em sua defesa, Rocha emitiu nota sobre o áudio na qual negou o crime de flagrante forjado e questionou a integridade e a legalidade da gravação.
Após o afastamento de Miranda, o então presidente da Assembleia Legislativa Mauro Carlesse (então no PHS) assumiu um mandato-tampão e terminou reeleito nas eleições de outubro de 2018. Pouco mais de um mês depois das eleições, Carlesse foi alvo da Operação Catarse, coordenada pela Delegacia Especializada em Investigações Criminais (Deic) da Polícia Civil. A operação apurava denúncias de funcionários fantasmas na estrutura do governo tocantinense. Em dezembro daquele ano, a polícia cumpriu diligências no interior do Palácio do Araguaia em uma ação policial com ampla cobertura midiática que contou com um grande efetivo policial.
Segundo ex-integrantes do governo Carlesse, a Operação Catarse ocorreu após o rompimento do que chamaram de “lua de mel” com a Polícia Civil do estado, após Carlesse ter assumido o mandato-tampão.
Por meio de órgãos representativos da classe, delegados da Polícia Civil haviam pedido um reajuste salarial. Carlesse se comprometeu a tentar dar o reajuste solicitado, mas logo se disse impedido por uma sentença judicial em junho de 2018. O reajuste salarial era uma demanda dos policiais civis desde a gestão Miranda, alvo de uma greve da categoria. Segundo o ex-governador, em uma reunião também foi colocada à mesa uma proposta de criação de uma Secretaria da Polícia Civil, cujo comando seria dado a delegados escolhidos por órgãos representativos da categoria.
Outras operações ocorridas após a sentença judicial que sepultou o ajuste salarial são citadas pelo grupo político de Carlesse como argumento para apontar um suposto direcionamento das ações de combate à corrupção. Em 2019, a Dracma deflagrou a Operação Expurgo, que investigou irregularidades na licitação da coleta e descarte de lixo hospitalar.
A operação teve como um dos principais alvos o líder do governo Carlesse na Assembleia do Tocantins, o deputado estadual Olyntho Neto (MDB). Parentes de Neto foram indiciados no decorrer da operação. A apreensão de toneladas de lixo hospitalar em propriedades ligadas à família do deputado e de cerca de R$ 500 mil em dinheiro vivo com o irmão do deputado repercutiram na imprensa tocantinense.
Outras operações conduzidas pela Dracma em 2019 — com acompanhamento do MP e autorização da Justiça — foram a ONGs de Papel, que investigou desvios no repasse de verbas governamentais a ONGs do estado, e a Via Avaritia, que apurou desvios de recursos em reformas de imóveis e pavimentação asfáltica. Integrantes do governo Carlesse ouvidos pela Pública avaliaram que a sequência de operações que atingiam o governo e seus aliados carecia de fundamentação e demonstrava que a Dracma estava “fora de controle”. As ações, segundo essas fontes, eram midiáticas. Criticam também os delegados da Dracma por só prosseguirem investigações que miravam o grupo político de Carlesse após ele ter assumido o governo. Foi então que o governo resolveu promover uma série de mudanças na estrutura da Secretaria de Segurança Pública (SSP) e da Polícia Civil do estado.
Carlesse fez duas trocas no comando da SSP e optou por substituir todos os delegados regionais do Tocantins. A gestão do novo secretário de Segurança Pública, o delegado federal Cristiano Sampaio, atualizou, em março de 2019, o Manual de Procedimentos de Polícia Judiciária. O manual foi espelhado, em boa parte, nas práticas adotadas pela própria PF e procurava disciplinar alguns procedimentos dos integrantes da Polícia Civil. Nas manifestações dos delegados na imprensa e na Justiça tocantinenses, porém, o manual foi apelidado de “decreto da mordaça”.
“O Manual implementado não retirou dos delegados qualquer poder de investigação. Nem poderia retirar, já que os poderes de investigação são definidos por Lei e não podem ser revogados por decreto. Fato cabal que, após a edição do Manual, a Polícia Civil continuou exercendo normalmente todas as suas atividades, inclusive operações de combate à corrupção, ao tráfico de drogas, homicídios ou crimes contra o patrimônio. O Manual empregou formalização a um conjunto de recursos e atos para dar transparência, segurança jurídica e fixar critérios objetivos e impessoais de documentação dos atos procedimentais da polícia judiciária”, escreveu o ex-secretário de Segurança ao ministro do STJ Mauro Campbell em 2020. Ele afirmou também que o manual não retirou dos delegados “o poder de dar entrevistas à grande mídia”, mas “apenas fixou critérios para a concessão da comunicação externa”, como ocorre em diversas instituições, como a própria PF.
Em março de 2019, de acordo com Sampaio, foi realizada uma manifestação na frente da Assembleia Legislativa contra a implementação do manual, à qual compareceram três dos delegados da Polícia Civil que seriam citados pela PGR como vítimas ou testemunhas. No ato estavam também, segundo Sampaio, dois ex-candidatos a governador derrotados por Carlesse na eleição de 2018.
Sampaio escreveu que o manual foi investigado pelo MP a pedido de três promotores de Justiça. Em 6 de fevereiro de 2020, a Notícia de Fato foi arquivada pelo MP sob o argumento de que competia à PGR avaliar a legalidade do documento. A PGR, por sua vez, apontou que não via “motivos suficientes” para atuação do procurador-geral, o que levou ao arquivamento da Notícia de Fato. Uma entidade de delegados de Polícia Civil questionou novamente a constitucionalidade do manual no Supremo Tribunal Federal (STF), que recusou um pedido de liminar.
O então secretário de Segurança disse ainda ao STJ que nunca houve ordem ou orientação para interromper investigações em andamento contra o governo do estado. “As operações Expurgo, Catarse e ONGs de Papel, indicadas como primeiros alvos de interferência do Governo, se desenvolveram e foram todas concluídas normalmente, imputando responsabilidades aos investigados e gerando as respectivas ações penais. As ‘suspeitas’ ou ‘acusações’ de interferência não se confirmaram. Ao contrário: ficou comprovado que são falsas. Da mesma forma, estão se desenvolvendo regularmente todas as outras investigações que versam sobre atos de corrupção no Estado, inclusive com muito mais eficiência, desde que a nova equipe assumiu a direção da DECOR (Divisão Especializada de Repressão à Corrupção), como comprovam os dados estatísticos”, escreveu o secretário em 2020.
Mais um governador que cai
No ano seguinte à sua deflagração, em 2022 a Operação Éris, da PF, alterou todo o cenário eleitoral no Tocantins, ao enterrar a candidatura de Carlesse à reeleição. A principal acusação da denúncia, que culminou no afastamento de Carlesse, é que o governador, seu secretário de Segurança Pública e sua chefe da Polícia Civil, entre outros agentes públicos, promoveram uma série de mudanças de cargos na Polícia Civil de modo a impedir, prejudicar ou obstar investigações que estavam em andamento em um setor da Polícia Civil chamado Decor voltado para investigações de corrupção.
Carlesse foi afastado do cargo de governador em outubro de 2021, após o ministro do STJ Mauro Campbell ter acolhido um pedido da PGR, decisão depois referendada pela Corte Especial do tribunal.
No entanto, uma gravação inédita e novas afirmações apuradas pela Pública colocam a Operação Éris na berlinda, pelos métodos empregados e suas motivações, como mostra a segunda reportagem desta série.
Parte 2
Gravação mostra PF pressionando investigado por “colaboração” no Tocantins
Investigado diz que PF “se valeu de subterfúgios para ocultar provas” da investigação que levou à queda de governador
Parte 3
“O Tocantins vive um Estado policialesco”, afirma ex-governador afastado
Em primeira entrevista após afastamento, Mauro Carlesse se diz vítima de um “processo político, jurídico e policial”