O governo de Jair Bolsonaro deixou vencer há um ano, em dezembro de 2021, e não renovou uma portaria de restrição de uso sobre uma área de floresta no Amazonas habitada por indígenas isolados, a Terra Indígena Jacareúba-Katawixi. Agora um relatório técnico do ISA (Instituto Socioambiental) aponta que os desmatamentos, garimpos e invasões cresceram no território, o que representa “risco concreto e iminente à segurança física, cultural e alimentar” dos isolados.
Além disso, o território é ameaçado pela pavimentação da BR-319, que liga Rondônia à Amazônia central, uma ação do governo federal que, segundo diferentes estudos, deverá provocar mais desmatamentos ilegais, especulação de terras e estradas vicinais que aumentam a pressão sobre TIs e unidades de conservação. A Jacareúba-Katawixi fica a apenas 15 km do leito da rodovia. Um estudo realizado em parceria entre ISA e UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) diz que a obra poderá causar, apenas na TI, um desmatamento de mais de 270 mil hectares de 2022 a 2039, mais de um terço da área total.
O relatório solicita que o Poder Judiciário interdite o território até o término de um processo de demarcação da TI, a ser iniciado pelo Ministério da Justiça, que os órgãos ambientais sejam acionados a fim de promover ações contra os crimes ambientais e retirar eventuais invasores do território e que registros de imóveis rurais e requerimentos minerários que incidem sobre a TI sejam imediatamente cancelados pelo governo.
“Sem a renovação da Portaria de Restrição de Uso, alinhada à desídia estatal em promover a abertura de processo de demarcação e, ainda, realizar operações de comando e controle para a proteção territorial da TI [Jacareúba-Katawixi], a degradação ambiental registrada na área, aferida por meio de sistemas de monitoramento do desmatamento, aumentou. Isso indica o incremento de invasões. Tal realidade configura risco concreto e iminente à segurança física, cultural e alimentar dos indígenas em isolamento que vivem na TI”, diz o relatório.
A TI Jacareúba-Katawixi está localizada entre os municípios de Lábrea e Canutama (AM) e tem uma sobreposição quase total, de 96%, no Parque Nacional Mapinguari, criado em 2008. Trata-se de “um importante mosaico de áreas protegidas, que possui uma diversidade de povos indígenas, populações tradicionais e ecossistemas florestais preservados”.
Há informações sobre a presença de isolados, conhecidos na região como Katawixi, desde a década de 1970. Em 2011, uma equipe da Funai (Fundação Nacional do Índio) que fazia uma expedição encontrou diversos vestígios da presença dos indígenas, incluindo pegadas de adultos e crianças. Em certo ponto da viagem, o grupo se viu rodeado pelos isolados, que imitavam sons de animais e batiam nas árvores. O relatório da época concluiu “pela confirmação de um povo indígena isolado, referência número 12, na Terra Indígena Katawixi/Jacareúba” e também sugeriu a continuidade dos trabalhos para “localização de ocupação territorial de índios isolados, monitoramento dos referidos índios, vigilância e proteção territorial”.
A partir de janeiro de 2007, a Funai passou a proteger a área de 647 mil hectares por meio de Portarias de Restrição de Uso que tinham prazo determinado, mas foram renovadas constantemente, em cinco vezes. Com esse instrumento, a Funai tem a força legal para impedir a circulação de não indígenas, o que faz diminuir o risco do genocídio e de epidemias, e pode desenvolver ações de fiscalização e expedições a fim de melhor proteger os indígenas.
Em dezembro de 2021, já no governo Bolsonaro, contudo, a validade da última portaria se extinguiu e ela não foi renovada pela Funai, apesar de inúmeros protestos e denúncias de organizações indígenas e indigenistas, como o OPI (Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Isolados e de Recente Contato), que teve como um dos cofundadores o indigenista da Funai Bruno Pereira, assassinado em junho passado no Vale do Javari, e a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), e de cobranças do MPF (Ministério Público Federal) no Amazonas e em Brasília.
Em um relatório de 2020, o ISA também já advertia que o território estava sofrendo “uma escalada de invasões, desmatamento e degradação florestal”.
No novo relatório, que deverá ser encaminhado ao MPF do Amazonas, o ISA analisou imagens de satélite e apontou que até julho de 2021 haviam sido desmatados 5.881 hectares na TI, o que corresponde a 3,3 milhões de árvores derrubadas. Esses foram os dados consolidados pelo INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) por meio do PRODES (Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite), que cobre de agosto do ano anterior a julho do ano seguinte para produzir a taxa anual. De agosto a setembro de 2021, um período ainda não consolidado pelo INPE mas que pode ser estimado a partir de um outro projeto do órgão, o DETER, mais 21,9 hectares teriam sido derrubados na TI.
“Esta taxa de destruição registrada pelo DETER, durante o período mais recente, é 209% maior que a última taxa registrada pelo PRODES, revelando o aumento da intensidade nas invasões para exploração ilegal de madeira”, diz o relatório do ISA, subscrito pelo engenheiro agrônomo Antonio Oviedo, pela advogada Juliana de Paula Batista e pelo cientista social Tiago Moreira dos Santos.
Segundo o estudo, “alguns períodos que antecedem o término de vigência das Portarias de Restrição de Uso apresentam um aumento do desmatamento, o que pode estar associado com a expectativa e especulações dos invasores sobre a não renovação das Portarias”.
De acordo com o relatório, “a edição e renovação das Portarias de Restrição de Uso têm sido marcadas por interferências e pressões políticas, como se a proteção das terras indígenas fosse ato discricionário do administrador público”. O aumento das invasões e do desmatamento é “um sinal explícito de que madeireiros ilegais e grileiros têm a certeza que as atividades criminosas não serão coibidas pelos órgãos competentes”.
Por isso, diz o ISA, é necessário que o governo abra o processo de demarcação da TI, o que afastaria o caráter precário das Portarias de Restrição de Uso.
Nos últimos cinco anos, período que abrange os governos de Michel Temer (2016-2018) e de Jair Bolsonaro (2019-2022), as terras com isolados são os territórios “mais devastados” entre as terras indígenas no país, diz o estudo do ISA. O desmatamento registrado em 33 terras com registro comprovados de povos isolados e de recente contato representou 33% do total desmatado em todas as terras indígenas da Amazônia. A destruição atingiu 64 mil hectares, um aumento de 273% no período pesquisado. De acordo com a nota técnica, esse aumento é 77% maior do que o registrado no restante das TIs na Amazônia Legal.
A APIB aponta que os isolados sofrem uma série de vulnerabilidades: epidemiológica, demográfica, territorial e política. Há no país 114 registros de povos indígenas isolados, dos quais 29 confirmados. Outros 18 povos são considerados de recente contato.