Buscar
Coluna

Anielle no alvo: a indignação dos brancos estampada nos jornais

Posts impróprios de assessora detonam bombardeio contra ministra negra na imprensa

Coluna
30 de setembro de 2023
06:00
Este artigo tem mais de 1 ano

Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a Newsletter da Pública, enviada sempre às sextas-feiras, 8h. Para receber as próximas edições, inscreva-se aqui

Não era para tanto. Desde que a ministra Anielle Franco pegou um avião da FAB de Brasília para São Paulo no domingo passado, uma cobertura intensa – negativa – deu ares de escândalo ao que deveria ser apenas a assinatura de um protocolo de ações entre o governo federal e a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) pelo combate ao racismo no esporte. No Estadão, jornal mais aguerrido nas denúncias à ministra, foram mais de 20 conteúdos publicados nos quatro últimos dias. 

É verdade que a ministra e, principalmente, os posts desbocados de sua jovem assessora ajudaram a atiçar a fogueira, mas Anielle foi sumariamente condenada em colunas, editoriais e reportagens com títulos duvidosos, mesmo depois de ter demitido a funcionária que se excedeu em seu perfil pessoal e pedido desculpas ao presidente do São Paulo. 

O desequilíbrio fica evidente quando se compara o tratamento reservado a outros ministros. 

As críticas se voltaram contra Anielle, primeiro, por ela ter utilizado um avião da FAB para ir ao evento – exatamente como fez o seu colega do Ministério do Esporte, André Fufuca, sem despertar alvoroço. Viajavam a serviço, uma das situações previstas para o uso das aeronaves da FAB por autoridades; nada que se compare a levar a família para passear, como vimos tantas vezes no governo Bolsonaro. Mas, enquanto a viagem de Fufuca passou em brancas nuvens, o lide da primeira matéria sobre o tema, publicada na manhã de segunda-feira no Estadão, cravava: “A ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, viajou de Brasília a São Paulo em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) e acompanhou a final da Copa do Brasil entre São Paulo e Flamengo no Morumbi neste domingo, 24. Anielle é flamenguista” (negrito meu).

Como se tivesse sido esse o motivo para Anielle comparecer ao ato com a presença de três ministros e do presidente da CBF, o que só aparece – e da seguinte maneira – no segundo parágrafo: “De acordo com a ministra, em vídeo divulgado nas redes sociais, ela foi ao estádio para assinar uma ação do governo federal que tem por objetivo combater o racismo no esporte”.

Ora, o evento – oficial e público – foi anunciado nos sites do governo e no da CBF; não faz sentido atribuir essa informação à ministra, como se fosse uma declaração, e não um fato, soando como pretexto. Ela pegou o avião da FAB para torcer pelo Flamengo foi o resumo da ópera, como captaram as redes sociais, utilizando-se também de uma brincadeira que fez a ministra, exatamente com o fato de ser torcedora do time carioca. 

Quando Anielle tentou se defender, dizendo que não compreendia por que estava sendo questionada por pegar o avião da FAB a serviço, foi tachada de arrogante. Ao dizer que havia deixado as filhas para trabalhar no domingo, um problema real para todas as mães que já tiveram que fazer plantão, acirrou a fúria do “pauliste” O Estado de S. Paulo, como mostra este trecho do editorial de quarta-feira passada: “A sra. Anielle Franco ainda teve a audácia de recorrer à maternidade, um ponto sagrado para a sociedade brasileira, para justificar seu erro. ‘Precisei abrir mão de estar com a minha família e minhas duas filhas em um domingo para ir trabalhar. Quem tem filhas pequenas consegue entender o peso disso’, escreveu a ministra, como se fosse a mãe mais atarefada do País naquele domingo”. 

Àquela altura, a assessora, que chamou a torcida do São Paulo de “branca, que não canta, descendente de europeu safade, tudo de pauliste” em um post, já havia sido demitida e Anielle tinha telefonado para o presidente do clube paulista para pedir desculpas pelas bobagens postadas pela funcionária. Mas nem a exoneração da assessora nem o reconhecimento do erro por ela cometido acalmaram a “sensibilidade branca”.  

Na quinta-feira, uma reportagem no Estadão com título exagerado voltou a dar munição às redes vorazes por polarização. Um de seus expoentes, o deputado Kim Kataguiri, chegou a pedir a convocação da ministra à Comissão de Fiscalização do Congresso para explicar os “gastos de viagem” de sua pasta. Com o título: “Ministério da Igualdade Racial, de Anielle Franco, gastou metade da verba de 2023 com viagens”, a reportagem mostrava que a pasta empenhou R$ 6,1 milhões da verba de uso livre do ministério em viagens; que tem um total de R$ 12,5 milhões empenhado neste ano. E fazia questão de citar o nome da ministra, como recomendam as práticas de SEO, para rodar mais na internet. 

Coloquei em negrito a que verba o jornal se refere porque o orçamento total do ministério para este ano é de R$ 109 milhões, informação que aparece no fim da reportagem. Quantos prestaram atenção? 

Também não há na reportagem comparação com a verba gasta por outros ministérios em relação ao orçamento – segundo o repórter Renato Souza, do Correio Braziliense, o Ministério da Igualdade Racial é o que menos gastou neste e nos governos anteriores. De acordo com dados do Portal da Transparência, o Ministério da Defesa gastou, por exemplo, R$ 100 milhões e o das Comunicações, R$ 11 milhões.

Certo, o orçamento da pasta que tem a missão de combater o racismo é um dos menores da Esplanada, mas não há como saber se houve despesas proporcionalmente excessivas sem analisar caso por caso. O que sabemos é que Anielle é uma das quatro mulheres não brancas entre 37 ministros (as outras são Marina Silva, Sônia Guajajara e Margareth Menezes), é irmã de Marielle Franco, um dos símbolos do movimento negro contemporâneo, e talvez mais transparente do que seria seguro no país da hipocrisia machista e racista. 

Mais do que o suficiente para que a imprensa seja mais cuidadosa com títulos e adjetivos que alimentam congressistas de extrema direita e odiosos memes e ofensas – estes sim, perigosos – contra as irmãs Franco e o movimento negro nas redes sociais. O racismo está ali, estampado, nos comentários dos posts que trazem as notícias dos jornais.

Não é todo mundo que chega até aqui não! Você faz parte do grupo mais fiel da Pública, que costuma vir com a gente até a última palavra do texto. Mas sabia que menos de 1% de nossos leitores apoiam nosso trabalho financeiramente? Estes são Aliados da Pública, que são muito bem recompensados pela ajuda que eles dão. São descontos em livros, streaming de graça, participação nas nossas newsletters e contato direto com a redação em troca de um apoio que custa menos de R$ 1 por dia.

Clica aqui pra saber mais!

Se você chegou até aqui é porque realmente valoriza nosso jornalismo. Conheça e apoie o Programa dos Aliados, onde se reúnem os leitores mais fiéis da Pública, fundamentais para a gente continuar existindo e fazendo o jornalismo valente que você conhece. Se preferir, envie um pix de qualquer valor para contato@apublica.org.

Quer entender melhor? A Pública te ajuda.

Aviso

Este é um conteúdo exclusivo da Agência Pública e não pode ser republicado.

Faça parte

Saiba de tudo que investigamos

Fique por dentro

Receba conteúdos exclusivos da Pública de graça no seu email.

Artigos mais recentes