A cada dia do primeiro semestre de 2023, quase oito pessoas foram resgatadas de trabalho escravo (análogo à escravidão) no campo, em contexto de conflitos rurais. No primeiro semestre deste ano, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o total foi de 1.408 pessoas salvas desta condição, a maior marca para os seis primeiros meses do ano na última década (2014-2023) — e um aumento de 44% dos salvamentos em relação ao mesmo período do ano passado.
Das 102 ações de resgate realizadas neste ano, envolvendo autoridades policiais e ministérios públicos, a maioria das violações de condições de trabalho foram flagradas na indústria sucroalcooleira, da cadeia produtiva da cana-de-açúcar. Na sequência, aparecem lavouras permanentes, agronegócio e mineração, desmatamento, produção de carvão vegetal e a pecuária.
“Constatamos recentemente uma queda desses casos na produção de cana, que chegou a praticamente zero (2020) e, por isso, criamos a falácia de que [o trabalho escravo setor] acabou. Mas não é verdade. E vimos esses dados ressurgirem, em 2021, 2022. E a questão é que casos assim não costumam afetar cinco, dez pessoas; o número é muito maior. Neste ano, em poucos casos em Goiás e São Paulo, já chegamos quase no total”, afirma à Agência Pública o coordenador da campanha “De olho aberto para não virar escravo”, frei Xavier Plassat, da CPT do Tocantins.
Conflitos atingiram mais de meio milhão de pessoas
Apenas em 2023, 973 conflitos no campo foram registrados pela CPT, 714 deles, disputas por terras — maior fatia do total levantado, seguido pelo trabalho análogo à escravidão rural. A estimativa é que 527 mil pessoas, de um total de 101.984 famílias, tenham sido atingidas durante esses episódios, direta ou indiretamente — de despejos a danos de bens materiais, roçados e até residências.
Os abusos no campo passam longe de incomuns e foram base para o desenvolvimento do Mapa dos Conflitos, uma parceria entre a Agência Pública e a CPT, que mostra como se relacionam os conflitos no campo com desmatamento, queimadas, violência, desigualdade, agrotóxicos, água e mineração na Amazônia Legal entre os anos de 2011 e 2020. Desde então, os crimes de ameaças de morte e tentativas de assassinato caíram na área, ainda que outros tipos de violência continuem em ascensão.
A maior parte dos registros apontam o Pará como principal palco dos conflitos (327), seguido de Roraima (134) e Mato Grosso (45).
Indígenas e amazônicos são os mais atingidos
As violências sofridas no contexto dos conflitos do campo vão além das agressões e ameaças e passam até mesmo por contaminações dos alimentos — inclusive por agrotóxicos. Nesse cenário, os indígenas (38,2%), seguidos da população sem terra (19,2%), são as maiores vítimas dessa disputa.
Ainda aparecem com destaque posseiros, quilombolas, assentados e ribeirinhos. E do outro lado do conflito, em geral, aparecem os donos de terras, ligados ao agronegócio, e os próprios governos federal e estadual — em geral por permitir que áreas invadidas se mantenham sob domínio distinto de sua finalidade (a exemplo de garimpos ilegais em terras indígenas demarcadas ou não).
“Muitas vezes, as empresas querem impor algumas dessas concessões sem escutar as comunidades, então os povos reforçaram que quem manda nos territórios são eles, que agirão para impedir essas ondas de violência”, explica o agente da CPT no Pará, Francisco Alan Santos.