Em contraposição à pressão ruralista que conseguiu aprovar no Congresso o marco temporal para a demarcação de terras indígenas, a deputada Célia Xakriabá (PSOL/MG) apresentou um projeto de lei que propõe uma nova aplicação do conceito. O PL 4566/23 pretende fixar o ano de 1500 –quando, de acordo com o texto, se iniciou “a invasão do Brasil” pelos portugueses – como marco temporal do genocídio indígena.
A proposta também reforça o artigo 231 da Constituição, que estabelece como terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas aquelas necessárias “à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” e reconhece seus “direitos originários” sobre elas. Proíbe, ainda, “a imposição administrativa, legislativa ou judicial de qualquer marco temporal para fins de demarcação de terras indígenas”.
Xakriabá tenta, com o PL, marcar terreno diante de uma pauta ferrenhamente defendida pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), a chamada bancada ruralista, que articulou para aprovar a toque de caixa no Senado o projeto de lei sobre o tema (PL 2903/23) em 27 de setembro. A rapidez na votação se deu após a rejeição do marco temporal pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na semana anterior, depois de sete anos de julgamento.
Segundo a tese jurídica, considerada inconstitucional pela Corte, só devem ser demarcadas áreas ocupadas pelos indígenas na data de promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988.
“Tínhamos que ter feito isso antes que eles [ruralistas]”, disse Xakriabá à Agência Pública. “Se existe algum marco temporal, teria que ser estabelecido no ano de 1500. É um absurdo que o Brasil, que começa por nós, sequer reconheça o direito originário [dos povos indígenas sobre seus territórios tradicionais], que inclusive antecede a Constituição Federal brasileira.”
O projeto da deputada foi aprovado na Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais da Câmara dos Deputados na última terça-feira (17), após votação do parecer favorável do relator, deputado Chico Alencar (PSOL/RJ). Agora, deve passar pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Casa.
Toda essa movimentação se dá na semana em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) anuncia a sua análise sobre o PL 2903/23. Ele tem até esta sexta-feira (20) para decidir se sanciona, veta total ou parcialmente a matéria.
Além do marco temporal, o texto carrega uma série de outros pontos considerados prejudiciais aos direitos indígenas, na avaliação de lideranças do movimento e especialistas. Entre eles, flexibiliza a proteção a povos isolados e facilita a exploração econômica das terras indígenas.
A pressão dos indígenas e de defensores da causa é para que Lula vete todo o projeto. Os eventuais vetos, no entanto, ainda terão de ser apreciados pelo Congresso Nacional. O presidente da FPA, deputado Pedro Lupion (PP/PR), anunciou nesta semana que articula para derrubá-los, o que seria uma derrota para o governo federal. Caso o PL 2903/23 seja transformado em lei, o movimento indígena pretende questionar sua constitucionalidade no STF.
Xakriabá argumenta que buscou, com seu projeto, se posicionar contra a falta de ação do Congresso para assegurar o avanço nas demarcações – o movimento indígena vê no marco temporal a maior ameaça à garantia de seus direitos territoriais. “Esse projeto de lei se faz de extrema necessidade porque, enquanto esperávamos um gesto da Câmara dos Deputados para pensar a reparação histórica aos povos indígenas, se votou o marco temporal nesta Casa pelo PL 490 [número com o qual o projeto tramitou na Câmara], e depois, de maneira muito acelerada no Senado, por meio do PL 2903”, pontua.
No entanto, a iniciativa da deputada pode esbarrar no poder político da FPA, que reúne 50 dos 81 senadores e 324 dos 513 deputados federais. Logo após o STF afastar a validade do marco temporal, a bancada apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição, a PEC 48/2023, que propõe incluir a tese jurídica no artigo 231. A articulação para aprovação da matéria pode emergir como nova estratégia do grupo a depender da análise de Lula sobre o PL 2903.