No dia 22 de março de 2024, Mateus Santos, 35 anos, prefeito de Pedra do Indaiá, município no centro-oeste de Minas Gerais, foi trabalhar de luto. Sua avó falecera na véspera, aos 80 anos. Os médicos suspeitavam que a causa da morte fosse a mesma que mantinha Santos e toda a prefeitura da pequena cidade em alerta: a dengue.
Com 4.112 habitantes, de acordo com o censo do IBGE de 2022, Pedra do Indaiá contabilizava, até o dia 17 de abril, 840 casos de suspeita de dengue em 2024. O número supera em seis vezes as ocorrências registradas em todo o ano passado, que somou 93 casos positivos e 130 suspeitos. Além da avó de Santos, outros dois cidadãos indaiaenses têm a morte investigada como possível decorrência da dengue: uma mulher de 50 anos e um bebê de apenas 6 meses de idade.
A avó do prefeito chegou a ser atendida no posto de saúde da cidade, que, em tempos normais, recebe uma média de 30 pacientes por dia – naquela semana de 22 de março, os atendimentos diários ultrapassaram os 140. Seu estado foi logo reconhecido como grave e ela precisou ser intubada. O município não possui leitos de UTI, e, por isso, transferiram-na para Bom Despacho, a 70 quilômetros de distância. Lá, permaneceu por duas semanas e então faleceu.
Raras são as casas em Pedra do Indaiá onde alguém não padece de dengue. Poucos minutos após a notícia da morte da matriarca, dezenas de mensagens preocupadas pipocaram no telefone do secretário de Saúde, Guilherme Rocha, 37 anos, questionando-o se a causa era mesmo a doença transmitida pelo mosquito Aedes aegypti. Como o caso segue em investigação, Rocha não pôde fazer mais do que tentar tranquilizar seus conterrâneos.
Por que isso importa?
- No Brasil já passam de 3,5 milhões os casos de dengue em 2024, mais do que o dobro de todo o ano anterior.
- Longe dos grandes centros, cidades do interior têm menos infraestrutura para lidar com casos graves da doença e pacientes acabam dependendo de transferência para sobreviver.
“Estamos fazendo uma escala para adoecer”
Um dia antes da morte da avó, o prefeito de Pedra do Indaiá decretou situação de emergência em saúde pública. Desde então, o aparato administrativo está mobilizado para lidar com os efeitos da dengue e minorar a escalada de casos, eliminando focos de proliferação do mosquito.
A empreitada, porém, tem sido inglória: com uma população urbana de aproximadamente 2 mil pessoas, com as outras 2 mil residindo na zona rural, Pedra do Indaiá tem casas, em geral, pequenas e antigas, e quase sempre com um amplo quintal. Ainda que todas essas casas e os poucos lotes vagos no centro urbano se mantenham livres da água parada, que é onde o mosquito se reproduz, a cidadezinha é circundada por morros cobertos de densa mata, onde o Aedes aegypti pode se refugiar caso seus focos de reprodução urbanos sejam eliminados.
Em meio à difícil tarefa de controlar a reprodução do mosquito, a própria equipe da prefeitura sofreu baixas, já que diversos funcionários precisaram afastar-se após terem sido, eles também, infectados pela dengue.
Três secretários da prefeitura – Cultura, Assistência Social e Comunicação – caíram doentes. Por sorte, não foram infectados na mesma semana. “Estamos fazendo uma escala para adoecer”, brincou um funcionário da prefeitura, que já se restabeleceu da dengue.
Marilúcia Romualdo, 53 anos, recepcionista da sede do Poder Executivo, teve de ser internada por quatro dias. As dores, os calafrios e a febre que sentiu no hospital foram tamanhos que, quando o marido a visitou, ela sequer foi capaz de reconhecê-lo. “Achei que eu não ia resistir”, lembra. Já recuperada, ela ainda sofre com as sequelas da doença. Amante das corridas e das caminhadas, não pôde, ainda, retomar a sua rotina de exercícios.
Na semana do decreto de emergência, 90 novos casos foram detectados na cidade. Os próprios motoristas das ambulâncias ficaram de atestado médico, sem poder levantar-se de suas camas, sofrendo com as dores no corpo que caracterizam os sintomas da dengue. Como a prefeitura se encarrega do deslocamento dos pacientes oncológicos e que passam por hemodiálise para Divinópolis e Santo Antônio do Monte, além dos casos mais graves de dengue, alguém precisava assumir os volantes.
“Escalei a enfermeira, a assistente social, e eu mesmo fiquei de motorista por vários dias”, contou o secretário de Saúde, Guilherme Rocha, à Agência Pública.
No dia 15 de abril, aliás, quando a reportagem visitou a cidade, Rocha havia passado em claro a noite anterior, cuidando do filho de 3 anos de idade que, ardendo em febre, estava com suspeita de dengue. Naquele dia, a criança não conseguiu ingerir nada além de “dois dedinhos de leite puro”, lamentou o pai. Ele, o marido e o outro filho do casal, de 2 anos, felizmente não apresentaram sintomas da doença.
Camila Silva, 33 anos, enfermeira que coordena o posto de saúde da cidade, compara a situação atual de Pedra do Indaiá com a vivida na pandemia de covid-19. “A covid foi uma coisa absurda, a gente sofreu pra caramba aqui no posto, mas a demanda da dengue está mais alta. No caso da dengue, não tem como se isolar do vírus, já que o mosquito circula.” Ela mesma contraiu a doença, seguiu trabalhando com febre por quatro dias – “para não deixar o posto na mão”, disse –, mas depois precisou afastar-se: “Não aguentei mais, o vírus me derrubou”.
Como os sintomas da dengue em geral são muito pronunciados, é comum que os pacientes já cheguem à unidade de atendimento pedindo para receber soro na veia. Em menos de um mês, a quantidade de soro venal planejada para durar três meses escoou-se toda.
“A dengue está diferente este ano”
Depois de decretado o estado de emergência, verificou-se ligeira queda nas notificações de dengue. Contudo, na percepção de funcionárias da farmácia popular de Pedra do Indaiá – que dispõe, ao todo, de três farmácias –, uma segunda onda de casos parece tomar forma.
Maria Aparecida, 54 anos, e Katia Aparecida, 51, são atendentes. Desde o início do surto, uma média diária de 30 receitas de dipirona, paracetamol e soro tem chegado ao balcão do estabelecimento. “O fluxo está intenso, e as medicações que eram para durar até junho já acabaram”, conta Maria.
As duas tiveram dengue, e Kátia foi quem ficou pior. “Passei oito dias prostrada, sem comer quase nada, a boca amargando”, lembra. Perdeu quatro quilos em uma semana, e, mal se viu recuperada, teve de cuidar do pai e da mãe, igualmente infectados pela dengue. A mãe, diz Kátia, “estava fazendo dó” e, como não conseguia levantar-se, era preciso banhá-la na cama. Quanto ao pai, que aos 74 anos trabalha como pedreiro, a dengue o levou a faltar do trabalho, fato inédito na memória de Kátia. “Foi a primeira vez na vida que vi ele parado”, disse.
Já a mãe de Maria ficou tão fraca que chegou a desmaiar. A dengue deste ano, especulam as duas, tem qualquer coisa de diferente da dos anos anteriores. “Tá pior do que a época da covid. As pessoas já chegam derrubadas e demoram mais para se recuperar”, disse Maria. Segundo dados da própria prefeitura, o município registrou oito mortes por covid-19 desde o início da pandemia até fevereiro de 2022.
A dengue, naturalmente, é o assunto da cidade. No supermercado de José Tarcísio, 59, no qual três dos quatro funcionários, ele incluso, pegaram a doença, cada cliente que chega trazendo consigo o invariável olor de repelente responde à mesma pergunta de Tarcísio: “E aí, melhorou da dengue?”.
Nos grupos de WhatsApp, conta Tarcísio, há também quem faça circular, como durante a pandemia de covid, as teorias conspiratórias que já se tornaram frequentes entre os brasileiros. Para uns, o mosquito teria sido gestado num misterioso laboratório, e outros juram acreditar que o vírus foi espalhado pelo Sudeste brasileiro por aviões oriundos de terras longínquas – os boatos já foram desmentidos por agências de checagem. “Coisas assim, meio folclóricas… mas a gente, que é realista, sabe que a causa é a água parada em que se reproduz o mosquito, que pica a pessoa e nela aloja o vírus.”
A dona de casa Cledys Souza, 65 anos, descobriu que estava com dengue no mesmo dia em que a Pública esteve em Pedra do Indaiá. “Falta pouco pro mosquito pegar todo mundo. Nunca vi isso na cidade”, disse. Antes dela, quem estava infectado era o marido, Antônio José Ribeiro, 68. No auge da doença, os suores do companheiro eram tão abundantes que, no meio da noite, Cledys tinha de trocar a fronha do travesseiro, aliviando um pouco a febre de Antônio.
Antônio possui algumas vacas leiteiras, e, como elas não podem deixar de ser ordenhadas um dia sequer, mesmo doente ele não cessou de trabalhar. “Nunca parei um dia na minha vida”, disse, “mas também nunca peguei uma doença tão forte, e dessa vez só não parei porque não teve recurso. Não tinha mais ninguém para tirar o leite”, explica.
Além do paracetamol e da dipirona, um dos aliados de Antônio e Cledys foi o chá de pariri, usado para tratar enjoo, diarreia e anemia. A fama do pariri como elixir contra a dengue está tão inflada na cidade que um quilo da erva chega a ser negociado por mais de R$ 180 – antes do surto da doença, a mesma quantidade saía por volta de R$ 70. Antônio cultiva um pé de pariri em seu quintal e tem distribuído mudas, gratuitamente, para os vizinhos.
O medo e a crise climática
Cirley Santana, 50 anos, era vizinha de Antônio. Das três mortes investigadas sob a suspeita de terem relação com a dengue, a dela foi a primeira. Aconteceu em 16 de março, seis dias após Cirley ter reportado os primeiros sintomas.
Carla Bethânia, 55 anos, é casada com o irmão de Cirley (que também teve dengue este ano) e estava com dengue na mesma semana que a cunhada. Durante dias, ambas perderam totalmente o apetite. “A comida só descia empurrada”, lembra Carla. Ela chegou a fazer sopas, que dividiu com Cirley. Na segunda-feira, 11 de março, a cunhada foi até o posto de saúde, onde recebeu o diagnóstico de dengue. Na quinta, foi internada e transferida, horas depois, para Santo Antônio do Monte, distante 22 quilômetros de Pedra do Indaiá.
Entre a internação e a morte de Cirley, não se passaram 48 horas. Ela era portadora de uma doença autoimune, conhecida como líquen plano, o que pode ter agravado o seu quadro de dengue, afirmam os médicos.
“Nem durante a pandemia de covid eu tive tanto medo”, diz Carla.
O medo da dengue tem levado os indaiaenses a cobrar da prefeitura a utilização do fumacê – os caminhões que saem a despejar inseticida pela via pública. O secretário de Saúde, Guilherme Rocha, faz duas ressalvas: a baixa eficácia da medida e seu alto custo.
Para um ciclo de 15 dias circulando pela cidade, o fumacê custaria R$ 210 mil à prefeitura, uma medida que, segundo Esther Maciel, secretária de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde, é “adicional no combate ao mosquito”, matando apenas espécimes adultos, sem alcançar os focos de reprodução.
“Quando usamos o fumacê, quer dizer que a estratégia de prevenção não foi suficiente porque a gente está combatendo o mosquito adulto. Temos de focar no uso de larvicidas para não deixar o mosquito nascer. É importante que o município faça isso com o apoio dos agentes de combate a endemias entrando na casa das pessoas, fazendo uma ação focalizada”, disse Maciel à Agência Brasil.
Para o secretário de Saúde de Pedra do Indaiá, é preciso buscar explicações para o que está acontecendo na cidade e no restante do país. “Onde será que todo mundo errou? Pois essa situação não é só em Pedra do Indaiá, mas no Brasil todo. Há 20 anos já se falava de dengue, mas muito pouco fora do período de chuvas.”
Rocha informou, ainda, que em Pedra do Indaiá a vacinação contra a dengue não começou, e nem há previsão de quando chegarão à cidade as primeiras doses do imunizante.
Até 20 de abril de 2024, o Ministério da Saúde registrava 3,5 milhões de casos de dengue no Brasil, mais do que o dobro de todos os contágios somados em 2023. São, até então, 1.601 mortes pela doença; outros 2 mil óbitos estão sob investigação.
Em entrevista à Pública, Álvaro Eiras, professor do Departamento de Parasitologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), disse que a crise climática é um dos principais fatores que explica o surto atual da doença – e que, nos próximos anos, a tendência é piorar. “Numa temperatura de 25 graus, o mosquito leva sete dias para desenvolver-se; aos 30 graus, a média cai para até quatro dias. Trata-se de um crescimento exponencial, e, se não mudarmos nossa forma de enfrentar o problema, em 2030 poderemos ter até 5 milhões de casos nesse mesmo período do ano”, disse.
O professor defende o uso de mais tecnologias para combater o mosquito. Além do secular método de bater de casa em casa em busca dos focos de reprodução do Aedes aegypti, o que já era feito desde o surto de febre amarela na década de 1920, conta Eiras, um novo arsenal de armadilhas está à disposição do poder público.
Algumas dessas tecnologias foram desenvolvidas na própria UFMG. Numa delas, simula-se um criadouro de Aedes com odor sintético, o que atrai os mosquitos e possibilita encontrar focos de criadouros mais facilmente, além de quantificar a população de insetos em determinados lugares e saber se eles carregam em si o vírus. Em posse dessas informações, o poder público poderia organizar melhor os mutirões para eliminar os focos de reprodução do Aedes, ou eleger as localidades que receberiam a visita dos fumacês. “Os tempos mudaram, e é preciso usar o conhecimento tecnológico acumulado nas últimas décadas para integrar melhor os métodos de controle do mosquito”, defende o pesquisador.