Antes do rompimento da barragem do Fundão, no município de Mariana (MG), doenças renais não eram comuns na família de Isaías Rodrigues. Hoje, oito anos após a chegada dos rejeitos de minério no norte do Espírito Santo, a realidade é outra. “Meu irmão está com problema renal, meu vizinho também. Conheço criança aqui dentro do território que tem 4 ou 5 anos e está com problema nos rins”, disse Rodrigues.
Ainda não há comprovação de que o cenário seja consequência direta do derramamento de rejeitos, mas a doença renal é sintoma catalogado de intoxicação por cádmio e cromo, metais pesados presentes na lama tóxica. “Quando a água está contaminada, envenenada, você vai beber, mas não vai morrer hoje, não. Ela vai te matando aos poucos”, afirmou.
Rodrigues é presidente da Comissão Remanescente Quilombola de Atingidos de São Mateus e Conceição da Barra, que representa 28 dos 33 quilombos da região de Sapê do Norte, e luta desde 2018 para que as comunidades sejam reparadas. Ele considera que as indenizações poderiam restaurar a “qualidade de vida” e oferecer aos atingidos, que convivem também com transtornos mentais e doenças de pele, “garantia para cuidar da saúde”.
“A vida da gente ainda corre risco”, acrescenta Sheila Santos, liderança da comunidade Angelim Disa. “Não tem estudo específico […], mas a gente sabe que a saúde é afetada”, afirma. Ela é parte da comissão e representa sua comunidade na Câmara Técnica Indígena e Povos e Comunidades Tradicionais, criada para atuar na reparação. “A comunidade quilombola sofre de imediato porque vive da agricultura, da pesca, dos meios de sobrevivência que a gente tem aqui”, afirmou.
Na região, apenas o quilombo de Degredo recebeu reparação parcial. Em entrevista à Agência Pública, Simony de Jesus, liderança do Degredo, explicou que a indenização foi essencial para evitar o abandono do território e garantir a alimentação, visto que os peixes estão contaminados. “O que está acontecendo é que muitos quilombolas têm que deixar o seu território, abandonar seu modo de vida, abandonar suas atividades, porque hoje já não se consegue mais [as] exercer dentro do território”, afirmou.
A Fundação Cultural Palmares (FCP), que tem como uma de suas missões a preservação e manutenção das comunidades remanescentes de quilombos, e o Comitê Interfederativo (CIF), responsável por orientar e fiscalizar as ações de reparação, já reconheceram que os quilombolas da região precisariam ser indenizados por terem sido atingidos pela lama.
Um parecer da FCP de abril de 2023 afirma que quilombolas de Conceição da Barra e São Mateus tiveram suas “vidas [e] sua ancestralidade comprometidas de forma direta pelo maior desastre da história moderna” e indica “atendimento urgente” e inclusão desses grupos em programas de amparo. O CIF então determinou a inclusão dos povos nos programas de amparo e estabeleceu multas pelo descumprimento da ordem. O comitê representa a autoridade pública: é presidido pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e composto por representantes da União, governos de Minas Gerais e Espírito Santo e vítimas.
Por que ainda não há solução?
A Fundação Renova tem descumprido as ordens do CIF enquanto recorre à Justiça. Criada em março de 2016 pela mineradora Samarco e suas acionistas, Vale e BHP Billiton, a Renova é responsável por reparar as consequências do derramamento de lama, mas argumenta que não é possível atestar “se houve efetivo dano na região”. “É impossível aferir de antemão a extensão dos impactos sofridos coletivamente nessas comunidades em decorrência do rompimento”, argumentou em seu último recurso, em julho, com o intuito de suspender o início do pagamento às comunidades.
Jacqueline Moraes, secretária de Estado das Mulheres e ex-vice-governadora do Espírito Santo, avalia que a Renova tem agido para postergar a reparação. “A realidade é que não afetou só essa geração, afetou as próximas gerações, porque muitas coisas que são da especificidade da origem daquela comunidade foram sufocadas”, disse à Pública.
No dia 9 de agosto, o juiz Vinicius Cobucci respondeu à contestação da Renova e mineradoras quanto às deliberações do CIF e considerou que o questionamento judicial das diversas ordens de reparação faria parte de uma “estratégia de má-fé” e que “há nítido desvio de finalidade institucional” da fundação e, por isso, sugeriu que a fundação fosse alvo de investigação do Ministério Público. A contestação segue em análise da Justiça.
Em nota, a Renova afirmou que “reitera seu compromisso institucional de implementar programas e ações voltadas à reparação”: “O tema está judicializado e, com o objetivo de construir soluções, a Fundação Renova permanece disponível para buscar uma alternativa consensual que possibilite cumprir a deliberação do CIF observando-se o previsto no TAC [Termo de Ajustamento de Conduta] e nas decisões judiciais aplicáveis”.
Procurados, a FCP e o Ministério da Igualdade Racial, responsáveis pela proteção de comunidades quilombolas, não se manifestaram sobre o tema.