Esta reportagem não deveria ser escrita. Foi o que nos alertou um membro da comunidade brasileira em Luanda alguns dias antes de deixarmos o país, no início de setembro. Estávamos em Angola havia mais de 20 dias. “Eu, se fosse vocês, não publicava o material que vocês gravaram. Pode deixar a nós que as ajudaram numa situação complicada.” Naquele mesmo sábado, segundo relatos, membros das forças de segurança nos procuravam pela quarta vez no local onde nos hospedávamos. De posse de cópias do nosso passaporte, queriam saber onde estávamos. Era mais um recado com o objetivo de impedir que publicássemos o que vimos e ouvimos no país africano, aonde viajamos para investigar o impacto das empresas brasileiras.
Durante a pesquisa, conhecemos familiares e amigos dos 15 jovens acusados de planejar uma rebelião que vão a julgamento a partir de hoje no Tribunal de Luanda. Eles participavam de um grupo de estudos baseado no livro “Da Ditadura à Democracia”, do americano Gene Sharp, com dicas práticas para realizar protestos pacíficos contra governos autoritários. Também conhecemos e conversamos com jornalistas, acadêmicos, diplomatas, empresários, diretores e funcionários de empresas brasileiras. Mas, na Angola do presidente José Eduardo dos Santos há pessoas com quem se pode e pessoas com quem não se pode falar.
No mundo da Central
“Na verdade somos todos ativistas, quer da Central, quer de outras frentes do ativismo. No final lutamos todos pela mesma causa: o fim da ditadura, da opressão e da tirania em Angola”, teclava rápido um dos rappers com quem nos comunicávamos por um grupo fechado no WhatsApp, logo nos primeiros dias da viagem. “Já agora somos um país democrático, mas temos um presidente no poder desde 1979.” Eram cerca de dez rapazes enviando uma profusão de vídeos, links e imagens pelo celular. Notícias de sites como Club K, criado por membros da diáspora angolana com um impressionante conhecimento do que se passa dentro do palácio, e Maka Angola, do jornalista investigativo Rafael Marques, dedicado a mapear a corrupção no país, pipocavam na tela. O papo fluía – queríamos encontrá-los. Logo veio um aviso: “Atenção com isso de hora e local… Houve gente q foi presa e acusados de conspiração e agora vamos envolver estrangeiros nisso”. Silêncio no grupo de WhatsApp. “Daqui por diante só responderemos perguntas pontuais”, escreveu um dos rappers, encerrando o papo virtual.
A Central é um dos grupos mais fascinantes hoje em dia em Angola. Um singelo canal de informações no Facebook, onde tem 19 mil seguidores, e no YouTube, com 2 mil inscritos, alimentado por jovens urbanos, os “centraleiros”. Surgiu em 2011 para cobrir as manifestações contra o presidente que, àquela altura, chegavam a reunir centenas de pessoas. Hoje, é uma das páginas que ajudam a dar visibilidade à meticulosa repressão dos serviços de segurança, assim como a denúncias de violações de direitos humanos. Funciona como um verdadeiro “megafone” dos problemas angolanos em um país que tem um único jornal diário, o estatal Jornal de Angola, a TV pública, TPA e a TV Zimbo, privada, que tem como acionistas os generais Manuel Hélder Vieira Dias Júnior “Kopelipa”, ministro de Estado e chefe da Casa de Segurança do presidente, e o vice-presidente, Manuel Vicente. Além de uma profusão de pequenos semanários críticos de pequena circulação.
Apenas depois de muita negociação conseguimos encontrar alguns dos centraleiros numa terça-feira, fim de tarde, em uma das entradas para o Zango, um gigantesco projeto habitacional no sudeste de Luanda para onde são transferidos compulsoriamente milhares de famílias removidas do centro durante o processo de “modernização” da cidade. Levamos uma hora e meia para atravessar 50 quilômetros no trânsito caótico. Ali em volta, barracos montados por folhas de zinco – nas paredes, no teto – mostram que nem todos os removidos conseguiram uma casa para morar. Chegamos ao local marcado: no carro preto, grande, de tração 4×4, cinco rapazes esperam por nós. Depois de rodar por algumas ruas, chegamos a uma casa de classe média.
Nossos entrevistados não são muito diferentes dos rappers da periferia de São Paulo: bonés coloridos, camisetas, bermudas, jaqueta da Adidas, tênis. Têm entre 22 e 39 anos e estão eufóricos. Dois deles são os “seguranças” do dia, tiveram de “fazer a varredura” no quarteirão algumas horas antes, diz um rapaz baixinho que pede para não ser identificado. Em seguida manda estacionarmos nosso carro dentro do portão.
“A maioria dos ativistas aqui não começaram com ativismo. Eu, por exemplo, comecei a ouvir rap. O rap e o ativismo ligou-me à causa”, diz Ermo Rebelo. Muitos deles conheceram o ativismo e as mobilizações por causa de Luaty Beirão, o rapper Ikonoklasta, um dos detidos que atraiu a atenção mundial no último mês. Passou 36 dias em greve de fome em protesto contra a detenção prolongada, que superou em muito os 90 dias permitidos por lei.
“Tem gente que nos procura e nos passa os materiais que conseguem nas ruas, o que chamamos repórteres de rua, e publicamos”, continua Ermo. Nenhuma das postagens é assinada. Muitos posts chegam a ter mais de 2 mil likes em um país com cerca de 21% de penetração de internet e onde apenas 30% da população tem eletricidade. Não só através das duas páginas, mas grupos no WhatsApp e redes sociais pessoais, são esses os jovens que espalham notícias importantes.
E há tanto a relatar. Angola é um prato cheio para jornalistas. Depois de 40 anos de guerra, sendo 27 deles em uma guerra civil sangrenta que vitimou mais de meio milhão de pessoas e manteve o território dividido entre o MPLA, partido que até hoje está no poder, e a Unita, o país rapidamente se tornou uma potência econômica africana. Segundo maior exportador de petróleo da África, teve durante anos as maiores taxas de crescimento do mundo, chegando a 20% ao ano. Mas, enquanto o círculo íntimo do presidente adquiriu riquezas incalculáveis – sua filha, Isabel dos Santos, é a mulher mais rica da África, com uma fortuna de US$ 3,4 bilhões e diversas concessões e contratos privilegiados com o governo angolano –, a vasta maioria das pessoas vive com menos de US$ 2 por dia. O país tem a mais alta taxa de mortalidade infantil do mundo – uma a cada seis crianças abaixo de 5 anos morre, o que puxa para baixo a expectativa de vida da população, de cerca de 51 anos. Falta água e luz constantemente até mesmo na capital, Luanda. Há pouquíssimos hospitais – e aqueles que podem viajam até a vizinha Namíbia em busca de uma operação. Os musseques, ou favelas, espalham-se pela capital, onde moram cerca de 7 milhões de pessoas. E as ruas são tomadas cotidianamente por pilhas e pilhas de lixo.
Como os demais movimentos de rua surgidos no mundo a partir de 2011, os “centraleiros” rejeitam os partidos tradicionais e se organizam de forma descentralizada. À medida que os protestos foram sendo reprimidos e meticulosamente desmantelados pelo governo, isso virou questão de sobrevivência. “Nós temos uma experiência muito triste, Camulingue e Cassule, líderes do Movimento Patrióticos que foram mortos. Decidimos não ter líderes”, reitera o rapper Leonardo Kossengue.
Alves Kamulingue e Isaías Cassule, ex-membros da Unidade de Guarda Presidencial (UGP), foram mortos em 2013, depois de terem organizado protestos para exigir o pagamento de salários atrasados e indenizações por terem sido desmobilizados. Frequentavam a Central e o pequeno círculo do ativismo caluanda. E nem estavam questionando o regime nem criticando a política do presidente. Mas tiveram um fim medonho: atraídos por um agente secreto infiltrado, foram sequestrados por membros da Polícia Nacional e dos Serviços de Informação, torturados e mortos. O corpo de Cassule foi abandonado no rio Benga, notoriamente habitado por crocodilos. Os executores dos crimes, sete membros do Sinse (Serviço de Inteligência e Segurança do Estado), confessaram e foram condenados de 14 a 17 anos de prisão. O mandante, um tenente-general do Exército conhecido como “general Filó”, não. Nem o espião infiltrado, durante dois anos, entre os rapazes e meninas da Central. A revelação de que o “hiperdivertido, sempre disponível” colega era um espião chocou os centraleiros, como mostra esse relato de partir o coração. E aumentou ainda mais as precauções, o medo, a desconfiança. “Tivemos que aprender a nos defender do regime”, resume um dos dois “seguranças” do dia.
“Eu tenho que andar com carro com vidro fumados, não ando nunca sozinho, sempre tem alguém comigo. Carrego sempre um aparelho que me conecta com os outros. Não fico até tarde em certos lugares. Tô atento a todo momento, tenho que ver sempre quem é quem. Por que aquela pessoa tá de óculos escuro a essa hora? Por que ele tá de chapéu? Por que ele me olha muito?”, vai listando Magno Domingos. “São traumas”. Magno tinha razão de desconfiar. Em outubro, ficou 22 dias preso sob acusação de falsa identidade, por portar uma permissão de jornalista. Tudo indica que foi uma cilada: apenas uma semana antes, ele publicara uma tocante carta ao filho do presidente, Zenu dos Santos, pedindo clemência aos amigos presos.
Naquela noite, pressentindo o seu infortúnio ali adiante, é ele quem interrompe os outros quando perguntamos, afinal, o que aconteceria se a entrevista fosse no famoso Largo Primeiro de Maio, no centro de Luanda? “Nem chegávamos a ficar cinco minutos. Logo que sentávamos, bastavam ver que vocês estão com essa câmera e que estamos com pessoas de tom de pele diferente da nossa, chegavam dois ou três carros da polícia. Tomavam a câmera. Íamos todos presos, vocês talvez depois saíam porque a embaixada ia interceder por vocês, nós íamos ficar presos como mais alguns golpistas…”
Francamente, aquilo nos pareceu um grande exagero.
“Acredita que, ainda assim, vieram nos prender?”
Através dos centraleiros, conhecemos Laurinda Gouveia, uma notável e bonita “rapariga” que preferiu estudar filosofia a buscar alguma profissão que lhe tirasse da vida de vendedora de churrasquinho e sucos na rua, que partilhava com a tia. Ela também agia como “repórter cívica” durante as manifestações e participava dos encontros de leitura do livro de Gene Sharp. “Era um grupo de estudo, de debates. E mesmo assim – apesar de ser uma coisa inofensiva, porque nós não fazíamos nada de mau e porque a nossa opção foi mesmo a luta não violenta – acredita que, ainda assim, vieram nos prender?”
O problema, diz Laurinda, é que depois de quatro anos de mobilização online e nas ruas, o movimento “revu”, ou revolucionário, como são conhecidos os jovens que contestam o regime, chegara a um impasse. As manifestações, que têm de ser autorizadas, eram sempre proibidas pelas autoridades; os jovens iam às ruas assim mesmo, mas em número cada vez menor. Pelo menos três vezes mais policiais os recebiam a pancadas. Foi por isso que o grupo decidiu estudar as táticas de Gene Sharp, o que ocorria todos os sábados. Discutiam, além de Sharp, as estratégias de Gandhi, Mandela, Luther King. “Eu penso que precisamos parar um bocadinho. Não quer dizer ficar indiferente com as coisas. Precisamos refletir o que a gente quer”, diz ela. “Para mim, acho que nas eleições não vamos conseguir nada. Eu não acredito nas eleições pela máquina que é o MPLA. A exemplo disso, meu caso, eu vivo aqui em Luanda e muitas das vezes, quando é hora de votar, o meu nome sai nas províncias, onde eu nasci.”
Laurinda nos deu uma longa entrevista em um sábado no Elinga, um vibrante centro cultural numa casa antiga que está condenada por todos os lados: na frente, um gigantesco prédio ergue-se para sediar o que deverá ser o maior shopping center em Luanda, onde executivos que desfrutam o único setor realmente bem-sucedido da economia angolana – o petróleo – poderão desfrutar o sábado à tarde sem pôr a cara na rua. Diante da magnitude da “modernização” de Luanda, o Elinga vai virar estacionamento. Mas era lá que, ainda em agosto deste ano, os jovens rappers conseguiam organizar seus shows e palestras públicas. Naquele sábado, o debate seria transmitido por live streaming. Nele, outros jovens assumiram publicamente que participavam do grupo de estudos, respondendo a perguntas do jornalista Rafael Marques.
Laurinda ficou famosa nacionalmente no final do ano passado. Foi detida quando filmava uma pequeníssima manifestação, de apenas sete pessoas, com seu celular. Após uma sessão de espancamento que durou cerca de duas horas, decidiu, com muito receio, exibir suas feridas na internet. Não queria expor “partes íntimas” – as coxas, as costas – marcadas pelos canos de metal dos policiais. Depois disso, foi expulsa de casa, depois de muito pedirem os parentes para que ela abandonasse o ativismo. Vivem com medo.
“No dia 23 de novembro, decidimos fazer uma manifestação. E como sempre o [partido] MPLA criou uma contramanifestação, encontramos jovens vestidos com t-shirts do MPLA e tudo mais… Quando era mais ou menos 16 horas, já não tinha tanto policiamento, nós decidimos entrar no largo. Os policiais vieram logo com porrete e começaram a bater. Eu peguei o telefone e comecei a retratar aquilo. Assim que eles se deram conta, os manos fugiram, e eles vieram todos contra mim. O telefone eles levaram, e eu ia atravessando pro outro lado, foi assim quando veio um agente da Sinse [serviço secreto], pegou-me pelo braço e alguns comandantes vieram e começaram a puxar: ‘A senhora vai pra esquadra!’ [delegacia]. Pegaram-me no cabelo, a puxarem no braço, na perna. E fomos, eu sempre a chorar e a pedir socorro, foi assim que eu vi que não estavam me levando à esquadra. Algemaram-me. Ainda tava lúcida, vi que eram gente da polícia e gente da Sinse. Eles pegaram-me, começaram a bater-me ainda algemada, com porrete, com pau de vassoura, a dar-me mesmo na perna, em toda parte. Foi assim que apareceu um dos comandantes. Falei: ‘Tio, por favor, desculpa!’. Ele deu-me um soco nos olhos. Eu a pedir sempre desculpa, desculpa, mas ele a ofender-me. ‘Não, nós já avisamos, vocês não ouvem… E por isso hoje vais ter que se mijar nas nossas mãos!’ Eu me mijei, ainda tava algemada, mijei-me.”
Ao contar sua história, a bonita jovem afasta os olhos da câmera. Alguns policiais, diz, tentaram convencê-la a virar informante. “Mas olha, Laurinda, deixa de se meter com esses jovens, olha você até não quis colaborar conosco, não quer começar a colaborar conosco…? Vamos te dar um serviço, até pode namorar com um de nós, tem pessoas aqui em condições.” Disseram a ela que, por ser mulher, o melhor que fazia era pensar em casar, ter uma casa. “Até olha, depois dessa surra que nós te demos, tu já não vais fazer filhos!”
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A mesma proposta foi feita, acrescida de alguns milhares de dólares, a outro jovem que conhecemos no Elinga. Era próximo dos dois rapazes assassinados em 2013. Com os dois, conta, rejeitou uma proposta de suborno para deixar de exigir indenizações a 2 mil membros da Casa de Segurança do presidente, para o qual ele trabalhava. Foram todos demitidos sumariamente em 2010, sem indenização.
Vivo, Mário Faustino parece estar morto por dentro. Em maio deste ano, quando participava de mais uma manifestação, foi preso durante três meses; passou 20 dias numa solitária. “Hoje entrei na cadeia, saí da cadeia, ando muito adoentado! Eu não sei o quê que fizeram comigo… Eu sinto o peito. Tem uma dor, tipo, como se tivesse uma ferida lá dentro. Também muita febre. O meu corpo até não é… sou só um homem grande. Eu de cada dia que passa estou a emagrecer. Isso está a me matar aos poucos”, diz, apagado na voz. Além da tortura e de ter sido preso sem nenhuma acusação, Mário carrega consigo um papel amassado, um “termo de identidade” feito pela polícia que atesta que ele não pode sair de Luanda. Constantemente, diz ele, é seguido por homens “me tirando imagem”: “Eu tenho uma vida de terror”.
A sombra de maio
Mário foi preso no dia 27 de maio de 2015, uma data em que, todos os anos, acontecem manifestações cada vez mais tímidas em Luanda. É um dia histórico, inesquecido, inesquecível para os habitantes da capital, que, em grande parte, ainda não entendem o que aconteceu exatamente neste dia, 38 anos atrás. Na belíssima edição do livro comemorativo da paz, “Angola em paz – novos desafios”, publicado pelo governo angolano com textos em inglês, português e francês, o episódio de maio de 1977 merece apenas um parágrafo. É descrito como “uma tentativa de golpe de Estado” que “enlutou de novo o país, acentuando os seus problemas sociais”. O episódio, protagonizado pelo comandante do exército Nito Alves, uma importante liderança do MPLA, levou à morte um número desconhecido de pessoas e à prisão centenas de afiliados do partido. Teve como epicentro as disputas dentro do bloco comunista; Nito Alves defendia o marxismo-leninismo clássico e a exclusão dos mestiços de cargos-chave do governo formado havia pouco – apenas dois anos antes, Angola ainda era uma colônia portuguesa.
“O 27 de maio foi uma situação um pouco caricata”, contou um senhor naquela tarde no Elinga. “É dessas tais inocências que nós muitas vezes, dentro da estrutura do partido, não sabemos e acabamos afinal encurralados num rolo. Eu pertencia à comissão popular de bairro, e nesse órgão estavam pessoas ligadas aos mentores do 27 de maio. Logo, quando andaram ao encalço dessas pessoas, eu também estava incluído”, relembra Moisés Santos Miguel, pai do cineasta Nelson Dibango Mendes, um dos 15 ativistas presos. “Aquilo foi horrível, não é? Foi horrível e tive sorte. É o que posso dizer. Encontrei alguém que conseguiu me tirar da cadeia e fugir. Daqueles que tavam na cadeia comigo, nenhum deles está vivo hoje.” É pelo 27 de maio que Moisés faz questão de ir à cadeia todos os dias para ver seu filho. Todos. Teme que, de uma hora para outra, possam acabar com ele. “Este medo, e eu posso dizer assim, medo, é o que me carrega.”
Noite fechada. Na carona de volta para casa, voltamos a conversar sobre o 27 de maio. Longe dos microfones, seu Moisés não tem muito a explicar e pergunta ao jornalista Rafael Marques: “Rafael, mas o que aconteceu ali, afinal?”.
Ninguém sabe. Há poucos relatos fora da linha oficial do MPLA. Alguns pesquisadores negam, inclusive, que Nito Alves tivesse mesmo o intuito de dar um golpe de Estado. Os dirigentes do MPLA garantem que sim. Houve ataques à cadeia de São Paulo, à Rádio Nacional e a alguns quartéis. Militares foram queimados vivos pelos rebelados. A resposta foi avassaladora. Nos dias que se seguiram, houve uma verdadeira “caça às bruxas” nas ruas de Luanda e no interior – e o pior, dentro das fileiras do MPLA. “O Boletim do Militante, jornal oficial do governo, clamava: “É preciso que os assassinos paguem pelos crimes praticados”, enquanto o próprio presidente Agostinho Neto avisava: “Nós vamos ditar uma sentença. Não vamos utilizar o processo habitual, que não seria justo”.
A Anistia Internacional contabilizou, à época, entre 20 mil e 40 mil mortos.
“Eu era muito pequeno”, responde, no carro, o jornalista Rafael Marques. “Mas me lembro dos cadáveres nas ruas.” Não houve nenhuma investigação oficial sobre o episódio, mas a memória daquela “purga” interna do MPLA ainda é viva e forte nos musseques onde o rap se espalha como hera. “Tenho famílias que morreram no 27 de maio, e a minha tia conheceu muito bem. O seu esposo morreu depois de cumprir a cadeia. Acredito que saiu de lá envenenado e, quando chegou em casa, já não durou muito tempo e faleceu”, conta Laurinda.
Manuel Chivonde Batista, um jovem ativista de apenas 19 anos que se tornou conhecido ao ser preso em 2013 depois de ter mandado imprimir camisetas que diziam “Zedu Ditador Nojento”, assumiu para si o nome de Nito Alves, ressuscitando o nome do inimigo fuzilado pelo MPLA três décadas antes.
Domingo em família
Desde cedo nas ruas da região de Viana, em Luanda, mulheres carregam na cabeça suas bacias contendo roupas coloridas, comidas industrializadas ou refrigerantes. Os terminais de vans – os candongueiros – já estão cheios. Chegamos ainda cedo ao nosso destino, a casa do jovem Nito Alves, e não há ninguém na ruela de terra. Laurinda bate à porta, entra e depois nos dá sinal para entrarmos. Dessa vez, o carro fica estacionado na porta.
Lá dentro, no quintal de terra batida, um senhor esparrama-se numa cadeira de plástico, aproveitando a sombra. Fernando Batista espreme os olhos, reclama de uma dor no peito, pondo a mão sobre o coração. “Estou tentando ir em algum médico para ver o que é, não me sinto bem.” Entram duas meninas de cabelos trançados e pagam cem kwanzas para poder tirar água de um enorme tanque que fica no chão. Saem com as bacias cheias de água na cabeça. “É assim que nos mantemos”, diz Fernando. No musseque, a água só chega para quem condições de construir um tanque.
Enquanto conversamos elas vão chegando de duas em duas. São esposas e irmãs dos ativistas presos desde junho, quase todos em celas solitárias. Àquela altura, eles começavam a adoecer. “Ele tá reclamando da visão, porque é totalmente escuro. Quase que não entra sol”, diz Elsa Caholo, irmã do ativista Osvaldo Caholo. Arrumadas em roupas justas e coloridas, ao longo da entrevista, elas choram. O senhor Fernando não: seu rosto se ilumina quando admite falar diante das câmaras. Desabafa. “Eu admiro a coragem do meu filho.” Fernando é pai de Nito Alves. “Nós lhes demos liberdade, porque ele tá grande, é livre das suas ideias, e pronto. Eu não vou oprimir alguém que pensa diferente. Cada um tem as suas ideias. Ele, como uma pessoa que faz parte de política, gosta mais é de, como posso dizer, de fiscalizar, ver o que está escrito… ”, resume o pai sobre o único filho homem, reforça. “Eu me admiro com a coragem do meu filho.”
Gertrudes Dala, a irmã do detento Nuno Álvares Dala, é cristalina quando descreve estar sendo seguida quase todos os dias. “Tem Sinse atrás de mim, acompanhando os meus passos”, avisa. “Eles ficam no bairro, em qualquer lugar que você estiver, ele tá lá despercebido como se fosse uma pessoa qualquer, seguindo o que você tá a fazer. Não sei também se eles querem nos prender… Hoje, por exemplo, eles sabem que nós estamos aqui, sabem! Só não podem entrar, mas eles estão mesmo por aí, ali fora.”
De fato.
Somos as últimas a sair junto a Laurinda – e ali está, do outro lado da única rua asfaltada, encostado do lado esquerdo da ruela de terra, um motoqueiro com uma camisa vermelha, um capacete branco. Sentado sobre a sua moto, igualmente vermelha, frondosa, é impossível não vê-lo. Ele tira fotos em um celular e é interpelado pela mãe de Nito Alves. Arrancamos e, pouco depois, já na avenida principal, a figura ressurge surge no retrovisor. A moto e a camisa vermelhas trazem um tom surrealista à perseguição. Ele procura ficar próximo de nós, dá na vista, segue-nos de maneira ostensiva, e é essa a imagem do terror. O motoqueiro não tem identificação, não tem uniforme, não tem mandato. E no entanto tem poder suficiente para seguir um carro com duas estrangeiras e três angolanos, poder que lhe foi afiançado pelas intrincadas e secretas estruturas de segurança do presidente. Sua presença no retrovisor é um aviso: somos suspeitas. Parecem muitos minutos, parecem horas. Encostamos o carro à margem da avenida e, quando saímos, lá está ele de novo. Afinal, mudamos de rota. “Já viu que o percebemos”, diz Laurinda. “Nós vivemos assim.”
Três dias depois, Laurinda é intimada novamente a depor no inquérito que procura condenar os seus amigos. “Estou tranquila, vou com meu advogado”, comunica pelo telefone, soando intranquila. Depois do interrogatório – cujo teor ela é proibida de revelar pelo procurador –, torna-se ré no mesmo processo e passa a estar em “liberdade provisória”, segundo a Procuradoria-Geral da República. Três dias depois, Fernando, o anfitrião de Viana, também é intimado para depor em regime de urgência.
Dia 28, aniversário do presidente
O dia 28 de agosto, data em que José Eduardo dos Santos completou 73 anos, era anunciado com cartas de congratulações sendo lidas, já desde os dias anteriores, nas rádios mais ouvidas do país. Luanda amanheceu limpa, como se as pilhas de lixo que se amontoavam nos dias anteriores tivessem desaparecido no ar, as calçadas varridas. O governo decretou ponto facultativo; e em diversas ruas se viam grupos de jovens uniformizados, com camisas estampadas com o símbolo do partido MPLA ou o próprio rosto do presidente na marcante foto que ilustra também outdoors pela cidade, sobre o epíteto de “Arquitecto da Paz”.
O trânsito, porém, estava caótico. Nas ruas do centro, faixas inteiras foram bloqueadas: ali passaria o carro presidencial com o seu comboio. A cada duas quadras via-se um grupo de militares uniformizados portando AK-47. São membros da Guarda Presidencial, grupo paramilitar de cerca de 15 mil membros que responde diretamente ao chefe da nação. “Basta ver tropas nas ruas, quer dizer que o presidente tá na rua. Só voltam ao quartel-general quando ele estiver de volta ao palácio”, diz o nosso motorista, impaciente.
No centro da cidade, o Largo Primeiro de Maio estava rodeado por diversas caminhonetas azul-escuras carregadas de policiais e seus fuzis. No centro da praça acontece uma espécie de teatro. No mesmo lugar para onde estava marcado um protesto dos familiares dos presos políticos, ouviam-se misturados hits do ritmo kuduro, ao som dos quais menininhas pré-adolescente anos rebolavam em coreografia, e os gritos de um animador do MPLA saudando os feitos e o aniversário do Kota Zedu – “Kota” é o apelido carinhoso dado pelos angolanos aos mais velhos. Havia uma pequena e estranha audiência: jovens de boné, calções escuros e jaquetas estilosas; meninas e rapazes vestidos com blusas amarelas com as iniciais da sigla da Juventude do MPLA nas costas; ao menos uma dezena de homens altos de óculos escuros e cara de poucos amigos, olhando avidamente em todas as direções. Algumas crianças que estavam dançando receberam logo um lanche, quando chega animado um grupo de homens altos, vistosos, com camisetas que traziam o rosto do presidente. Tentamos tirar algumas fotos, mas somos cercadas por três homens que mandam apagar as imagens. Um deles passa a nos filmar, seguindo-nos de perto aonde vamos, o celular na altura dos nossos rostos. É a deixa para um dos jovens de roupa escura se aproximar: “Somos revus, estamos preocupados com vocês. Os Sinses estão muito a vos acompanhar”. Saímos da praça sob os olhares quentes de todos aqueles homens. Não há muitas mulheres nas ruas de Luanda. Além das meninas, que agora partem para outra apresentação noutro lugar da cidade, há apenas duas vendedoras de roupas, Laurinda e a ativista Rosa Conde – que vemos apenas de longe. Alguns dos espiões encaram-nos com ódio, outros atiram beijinhos. Sentamos em um banco no lado oposto da avenida, quando chega um senhor com uma câmera: “Posso tirar uma foto de vocês duas?”. Negamos e ao fundo conseguimos distinguir claramente: um policial nos filma com o seu iPhone debaixo do braço dobrado, a luz branca piscando em nossa direção. Não demora um segundo. Dois rapazes passam correndo e agarram nossas mochilas, atiram-nos ao chão. Dentro da mochila, todo o equipamento de filmagem.
Rapidamente, um homem cerca um deles, arranca a mochila das suas mãos. É agarrado por um policial, e a mochila some novamente. Ouvem-se os gritos de “Ladrão! Ladrão!”. Minutos depois encontramos, mais adiante, um policial gordinho, irritado, abraçado a uma das mochilas, o rosto vermelho. “Vamos para a esquadra! Vamos para a esquadra!”, grita, negando-se a devolver a mochila. Teríamos de acompanhá-lo à delegacia. Quando ligamos para a embaixada ele some num carro da polícia, sem informar aonde levava nosso equipamento. O material só foi recuperado cinco dias depois, após diversas visitas kafkianas à esquadra, nas quais sempre faltava um papel, uma informação, uma assinatura. O que é claro é que não existem regras, não existe regimento nem processo. A polícia assegura que está investigando o “roubo”, mas, como observa um diplomata da embaixada brasileira, “eles as trataram como suspeitas”. Apenas ao final de cinco dias, com a mediação da embaixada, conseguimos recuperar o equipamento.
A paz armada
Ao longo de 25 dias em Angola, era inevitável fazermos a pergunta crucial: afinal, Angola é uma ditadura ou uma democracia? Com um ciclo eleitoral razoavelmente estabelecido, uma economia estável, crescimento econômico vertiginoso, partidos de oposição e canais críticos funcionando livremente, é difícil negar que haja liberdades democráticas no país.
“É um sistema democrático”, raciocina o escritor João Mello, que também é deputado do MPLA. “Em todos os regimes, por mais democráticos e liberais que sejam, há sempre quem seja mais autoritário. Por isso que a democracia não para, não pode parar, porque tem adversários permanentes, que em momentos de crise ou ameaça de crise econômica, política, ganham mais peso. Que é o momento atual. O receio dentro do governo de que haja forças externas interessadas em desestabilizar o país é real.” A crise econômica a que ele se refere, e que bate à porta, reflete a queda do preço do barril de petróleo, que chegou a US$ 147 em 2008 e hoje em dia está em US$ 40.
“Angola é um dos Estados mais dependentes do petróleo do mundo: 96% das receitas de exportação vêm do petróleo. Ou seja, o que acontece ao petróleo tem um efeito imediato em toda a economia, em toda a sociedade angolana”, explica o professor Ricardo Soares de Oliveira, da Universidade de Oxford. “E em larga medida a legitimidade desse regime depende da sua capacidade de distribuir recursos a grupos sociais específicos de cujo apoio o regime necessita.” Soares afirma que José Eduardo dos Santos tem um poder individual sem paralelos na África moderna. Um poder construído meticulosamente ao longo de décadas, aproveitando-se do estado de exceção que vigorou durante os 27 anos de guerra civil. “O presidente usou esse estado de emergência para pouco a pouco ir monopolizando todas as grandes decisões através do controle da Sonangol, que é a companhia petrolífera angolana, que é importantíssima – é a segunda maior companhia em África –, e através do controle das forças de coerção, o exército, a inteligência, a política etc.”
O autor do livro “Magnífica e miserável: Angola desde a Guerra Civil”, publicado na última semana pela editora portuguesa Tinta da China, refuta as visões mais caricatas do que seja uma ditadura. “É óbvio que o que acontece hoje em dia em Angola não é uma ditadura como nos anos 1980. Temos um Estado relativamente sofisticado que utiliza a repressão aberta de modo muito menos frequente, que organiza eleições no contexto em que controla todo o aparelho e, portanto, consegue controlar o tempo de antena, o acesso à esfera pública da oposição, a cobertura jornalística. E o mais importante, temos um regime que controla as finanças públicas e que define mais ou menos a estrutura daquela sociedade. Por conseguinte, é óbvio que não podemos falar de Angola como se estivéssemos a falar do Chile de Pinochet, mas estamos a falar de um Estado autoritário à sua maneira.”
Tido como inimigo do regime, Rafael Marques vê com facilidade como funciona o controle exercido sobre a população. No começo deste ano, ele foi condenado a pena de seis meses, suspensa, pela investigação que fez sobre as ligações de sete generais com violações de direitos humanos na extração de diamantes. “O que anima a sociedade angolana a não protestar é a corrupção. Não é a violência. As pessoas durante muito tempo não queriam perder o comboio da corrupção, aquela que promove os incentivos… O presidente está há 36 anos no poder não tanto pela sua capacidade de opressão, mas pela combinação de dois fatores: a sua capacidade de corromper e de reprimir onde a corrupção não funciona.”
E, nos casos em que a corrupção não funciona, é muito difícil precisar como age a repressão.
A analista sênior do International Crisis Group, Paula Cristina Roque, é uma das raras pessoas que se debruçam sobre o tema. Segundo ela, é difícil estimar o real tamanho das forças de segurança angolanas. Há 160 mil militares, mais dezenas de milhares de homens espalhados entre a Polícia Nacional, a Polícia de Intervenção Rápida, além das forças de segurança que respondem diretamente ao presidente, a Unidade Guarda Presidencial e a Unidade de Segurança Presidencial, cujo nome deve chegar a 30 mil homens. Mas, além disso, existem três serviços de inteligência, aos quais pertence uma enorme e invisível rede de informantes. “O SIM, Serviço de Inteligência Militar, é superior aos outros três, e quem está à frente é o general José Maria, uma figura próxima do presidente. Em vez de ver a segurança militar do país em razão de forças externas, o que eles fazem é espionar os próprios militares, ou seja, estão virados para que não haja dissidências. Outro serviço, o Sinse, serviço de inteligência interna, esses são muitos, são os que se infiltram nos grupos dos “revus”, se infiltram na oposição. E o terceiro, o Serviço de Inteligência externa, tem o portfólio de controlar a diáspora e controlar todos os angolanos no exterior.” Ela aponta a forte influência, ainda hoje, da mentalidade dos aparelhos de segurança do bloco comunista – Angola, palco principal da Guerra Fria na África, recebeu treinamento dos militares cubanos, das forças russas e da Stasi da Alemanha Oriental.
Não é à toa, diz ela, que as forças armadas terminaram os anos de guerra em 2002 com um efetivo de 11 mil homens, e hoje têm 160 mil. O governo dobrou os gastos com militares desde 2005 e hoje gasta mais de 5% do seu Produto Interno Bruto com defesa. Segundo um estudo da organização sueca Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI), em 2014, Angola gastou US$ 6,5 bilhões nas forças militares, um aumento de 6,7% em relação ao ano anterior. É o segundo país que mais gasta na África, atrás apenas da Argélia, e faz parte de um seleto grupo de dez países que gastam acima dessa porcentagem com defesa – entre eles, Israel, Líbia e Arábia Saudita.
Segundo Paula Cristina, isso acontece porque Angola vive uma “paz armada”. “Não foi uma paz negociada porque uma das partes perdeu a guerra. Mas uma parcela grande da população não se via no projeto político do MPLA. Havia duas opções: ou iríamos para uma paz positiva, no sentido de distribuir as benesses da paz, dar elementos para que as pessoas se integrassem na sociedade e se sentissem reconciliadas após três décadas de divisão; ou era preciso criar um aparelho de segurança e um aparelho de informação que conseguissem conter qualquer foco de instabilidade futura.” Até hoje, 13 anos depois do fim da guerra civil, o MPLA ainda se porta como o grande vencedor da guerra civil, avalia a estudiosa. “Se um governo não tivesse medo do povo, não estariam a criar em todas as organizações células do partido para controlar tudo, a criar um aparelho de controle que é muito dentro do pensamento marxista”. Ela é taxativa: “É um controle totalitário.”
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“Se uma pessoa falou mal do governo, eles vão buscar saber quem são os familiares, onde essa pessoa trabalha, como essa pessoa sobrevive, como é a vida dela, depois infiltram e criam problemas. Os familiares, se trabalham na função pública, perdem o emprego; se têm alguma necessidade de ir a um hospital, não recebem tratamento”. Paula descreve um ritual usado pela polícia nas primeiras manifestações. Sequestravam os ativistas, levavam-nos para fora de Luanda, faziam-nos ajoelhar no chão sob a mira de um revólver. Depois, iam embora. “Não é preciso matar para criar medo. Há muitas outras técnicas, e eles sabem essas técnicas todas.”
Paranoia
Nos dias seguintes, recebemos repetidos telefonemas. O Centro de Imprensa Aníbal de Melo diz que não temos autorização para gravar entrevistas. Representantes do governo buscam algumas das nossas fontes. Não podemos mais ligar para Laurinda ou os demais “centraleiros”. Da última vez que nos falamos, ela pergunta se estamos bem. “Cuidem-se”, diz. São avisos quase imperceptíveis. Um dia, o porteiro do prédio pede nossos nomes completos. Em outro, um comandante militar pede que anotemos nossos telefones em um pedaço de papel. Há rumores de que estamos no país com o visto inapropriado. O serviço de imigração exige nossa presença “com urgência”.
Enquanto alguns dos nossos entrevistados são interpelados e transformados em réus, diversas vozes do regime abraçam e tonificam um discurso velho conhecido. Os ativistas estariam agindo em nome de “forças internacionais” que queriam “desestabilizar o governo”. Ato contínuo, surgem notícias de que a Procuradoria-Geral da República acusava embaixadas estrangeiras e grupos internacionais “egípcios e franceses” de estar financiando os jovens para fazerem uma “primavera angolana”. O próprio ministro do Interior, Ângelo Veiga Tavares, defende veementemente que haveria planos apoiados por forças estrangeiras para a desestabilização do país, que previam “mortes”.
Passamos a andar alertas, despertas, nunca sozinhas. Não ficamos até tarde em certos lugares. Ficamos atentas a todo momento. Olhando pelo retrovisor do carro e perguntando: por que aquela pessoa tá de óculos escuros a esta hora? Por que aquele homem está nos olhando tanto? Já não saíamos tranquilamente na rua. Deixamos de ver amigos que tínhamos feito, e outros que estávamos por encontrar.
Até aquela manhã em uma moradora da vizinhança nos traz a confirmação. “Vou direto ao assunto. Desde quando vocês chegaram vieram inúmeros policiais aqui procurando duas brasileiras. Diziam que vocês estavam aqui organizando uma manifestação.” Alguns diziam ser do Serviço de Investigações Criminais, àquela altura responsável pelo inquérito contra os ativistas; alguns diziam ser do Serviço de Imigração. “Isso está gerando algum desconforto de alguém que sabe alguma coisa a respeito de vocês… E eles estão investigando”.
“Eles estão observando muito aqui”, avisa ela. Era preciso estarmos atentas. “É bom que vocês olhem bem como que tá a situação, antes que eles cheguem de uma maneira brusca e tentem fazer uma coisa que seja até ilegal. Para eles aqui tudo pode.” Voltamos ao apartamento e ligamos, mais uma vez, para o Itamaraty.
“Meninas, vocês sabem que isso aqui não é bem uma democracia…”, diz uma fonte da embaixada brasileira ao preparar nossa volta ao país em segurança. Exatamente como previram os revus.
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