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Casa Pública

Entrevista traz análise e histórias de corrupção na ditadura militar

Aos 53 anos do golpe, a corrupção no período de exceção e a participação de grandes empreiteiras foi tema da conversa realizada na Casa Pública, no Rio

Casa Pública
7 de abril de 2017
12:00
Este artigo tem mais de 7 ano

Há 53 anos o país mergulhava nos 21 anos mais complicados de sua história: a ditadura militar. Na entrevista a seguir, conduzida pela codiretora da Pública, Marina Amaral, o tema não é menos denso. Como se engendrou a corrupção no período de exceção? Quem corrompia? Como?

Na conversa, o ex-editor do jornal Movimento Raimundo Pereira e o historiador Pedro Campos explanam suas visões sobre o tema. Campos, autor de Estranhas catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988, coloca em foco o crescimento e a consolidação das principais empresas do setor de construção pesada no Brasil, entre elas a big three Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa e Odebrecht, investigadas na operação Lava Jato, da Polícia Federal.

Do lado jornalístico, Raimundo conta como foi driblar a censura para relatar os casos de corrupção no período. “A campanha anticorrupção contra o Jango serviu para derrubar um governo legítimo. O golpe de 64 foi um desastre, e um de seus instrumentos de mobilização foram as denúncias de corrupção”, afirma.

Raimundo Pereira (à esquerda) ao lado de Marina Amaral e do historiador Pedro Campos (Foto: Agência Pública)

Marina Amaral – Como o jornal Movimento enfrentou o desafio de fazer uma cobertura crítica ao governo na época da censura da imprensa? E quais os escândalos que vocês conseguiram investigar?

Raimundo Pereira – O Movimento foi censurado desde a edição número 1. Quando chegou o cara da Polícia Federal e avisou que o jornal seria censurado, perguntei como eles poderiam censurar se ainda não sabiam que tipo de linha editorial a gente iria seguir. E se fosse um jornal que elogiasse o governo? Ele riu.

O jornal foi censurado até a edição 154. E a censura da ditadura militar foi discriminatória nesse período, pois nenhuma notícia importante que afetasse pessoas do regime militar ou tivesse a ver com o regime passava. Quando a censura caiu, em junho de 1978, começamos a fazer um trabalho de apresentação da corrupção.

A primeira edição foi com o Paulo Maluf, que na época divergia com o regime, pois queria ser candidato de qualquer maneira.

Fizemos o número 171 com a ajuda de militares dissidentes, por exemplo. É uma edição que ficou famosa e vendeu muito em banca, com o “Geisel no mar de lama”.

Essa edição tratava de abusos e corrupção no governo militar, com informações passadas para a gente por esses militares dissidentes. Fizemos várias denúncias de escândalos durante todo o período, tudo registrado no livro de autoria das aqui presentes Marina Amaral e Natalia Viana, que conta a história do Movimento e tem um DVD com todas as edições.

Mariana Amaral – Pedro, o que você pode dizer para a gente sobre os governos militares e as empreiteiras?

Pedro Campos – Eu pesquisei as empreiteiras durante a ditadura para o meu doutorado em história na UFF [Universidade Federal Fluminense] e conclui uma tese que se tornou o livro Estranhas catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988 [Eduff, 2015].

Na pesquisa, eu precisei voltar para um período anterior à ditadura, porque essas empresas – a maior parte delas e as maiores, que hoje compõem a big three, a Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa e Odebrecht – foram fundadas anteriormente ao regime, na década de 1930, 1940 e 1950. Naquele momento, havia um movimento da economia brasileira de deslocar o eixo de acumulação do capital do campo para a cidade, e havia toda a demanda de uma infraestrutura para esse desenvolvimento urbano e industrial que vai ser contratado pelo Estado e realizado por empresas privadas.

Essas empresas nascem já com esse objetivo, essa função de dotar o país de infraestrutura para essa nova forma de acumulação. São empresas de cunho familiar, como o próprio nome indica. Até hoje a Odebrecht é controlada pela família Odebrecht, a Camargo Corrêa, pela família Camargo e Andrade Gutierrez, pela família Andrade e pela família Gutierrez.

Essas empresas cresceram muito no período varguista, mas ganham patamar nacional na gestão Kubitschek, na segunda metade da década de 1950, quando a gente tem dois grandes projetos principais: a construção da nova capital federal, a nova Brasília, e também as rodovias previstas no plano de metas, as grandes estradas de rodagem como a Belém-Brasília. Várias empreiteiras de diferentes estados vão se reunir nessas obras, vão se encontrar, mas essas construtoras tinham um cunho local. A Camargo Corrêa era tipicamente paulista, a Andrade Gutierrez só tinha feito obras em Minas Gerais até esse período, principalmente quando JK foi prefeito de BH, e fez obras para o município de Belo Horizonte e depois para o governo do estado.

Essas empreiteiras vão se organizar em escala nacional no período Kubitschek.

A minha pesquisa é muito voltada para tentar entender como esses empresários atuam, como eles se organizam e em que medida eles agem no aparelho do Estado.

E fui verificar que esses organismos nos quais eles atuam funcionavam com algumas finalidades. Primeiro o cartel, com divisão de obras, acerto de concorrências e previsão da divisão do lucro em cada empreendimento. Muitas vezes eles acertavam previamente situações como: “Eu faço a obra, mas vou contratar vocês para fazer parte da obra”. Subcontratação.

Marina Amaral – Já existia esse modelo antes da ditadura?

Pedro Campos – Sim, inclusive com financiamento eleitoral e inserção junto ao PSD, que era o partido que tinha maior entrada das empreiteiras no período.

Elas agem no sentido de direcionar o orçamento para as suas finalidades e de pautar as políticas públicas conforme seu interesse, criando prioridade e necessidade na agenda pública. O primeiro presidente do Sindicato Nacional da Indústria da Construção Pesada é um sujeito bastante desconhecido hoje, chamado Aroldo Poulain, que foi presidente da empreiteira Metropolitana e presidente do Inpes [Instituto de Pesquisa em Estudos Sociais], que é o organismo que criticava e tentava desestabilizar o governo João Goulart.

Então, o golpe de 64 tem uma composição empresarial muito significativa, um golpe que a gente diria que é civil-militar ou empresarial-militar. E o regime inaugurado em 64 é um regime com intensa participação desses empresários do chamado capital internacional e associados, mas também com empresários domésticos com associação direta ou não com interesses estrangeiros.

Marina Amaral – Como se dava essa corrupção? Porque a gente vê, por exemplo, a corrupção atual, que a Lava Jato investiga, que está ligada, principalmente, a doações eleitorais.

Pedro Campos – Existem várias evidências de que o pagamento de propina era muito comum, porém as formas de práticas ilegais e irregulares naquele período tinham lá suas particularidades. Hoje, para uma empresa chegar até uma estatal, ela vai usar intermediários como Parlamento, partidos, mandatos, financiamento eleitoral, emendas parlamentares.

Mariana Simões – Raimundo, você disse para mim que não gostava muito de cobrir corrupção. Queria que você falasse mais sobre isso.

Raimundo Pereira – No caso do Brasil, a corrupção nunca foi nosso grande problema. A campanha anticorrupção contra o Jango serviu para derrubar um governo legítimo, prometendo transformações, grandes mobilizações populares, grande mobilização cultural. O golpe de 64 foi um desastre, e um de seus instrumentos de mobilização foram as denúncias de corrupção. Vou dar um exemplo. A China está numa campanha anticorrupção há cinco anos. Perto da campanha chinesa, que começou no fim de 2012, a Lava Jato não chega aos pés. Teve gente condenada à morte por corrupção. A China faz congresso a cada cinco anos, e no 12° Congresso o presidente do país fez o seguinte balanço: a polícia do Partido Comunista deteve 150 mil pessoas do Partido Comunista. Não é muita gente porque o partido tem 88 milhões de filiados e 95% das denúncias são acusações de corrupção. Do que lembro, a polícia do partido encaminhou à polícia estatal para a punição 25 mil pessoas, assim como fez com Bo Xilai, um alto dirigente, e com sua mulher, que foi condenada à morte também.

Então, a corrupção é muito ampla. Tem gente que fala que está ligada à natureza humana, o que eu acho uma bobagem, mas dá uma ideia de que a corrupção não existe. Fui presidente de empresas da imprensa alternativa, não passei por nenhuma em que não houvesse um caso de corrupção, um menino que roubou uma coisa do outro, que foi fazer um depósito nosso no banco e depois foi fazer uma pequena falcatrua. Sergio Moro, na minha modesta opinião, criou a tese de que foi o PT que inventou a corrupção.

Marina Amaral – Pedro, como foi que surgiu a ideia de investigar esse período? Você descobriu essa história no decorrer da pesquisa ou você já saiu com a intenção de pesquisar as empreiteiras durante o governo militar?

Pedro Campos – Só pegando um gancho com o que o Raimundo falou… Particularmente acho o termo “corrupção” muito ruim, muito impreciso. É um termo que despolitiza questões, que dá um viés moralista. Eu associo a corrupção diretamente com o capitalismo.

Agora, porque eu fui estudar empreiteiras na ditadura? A proposta da pesquisa surgiu em 2006, 2007, e me chamava atenção na passagem do primeiro para o segundo mandato do Lula o papel das empreiteiras e das grandes construtoras. E me veio uma hipótese geral de que o período da ditadura pudesse me esclarecer o porquê de essas empreiteiras serem tão fortes no Brasil. O que eu verifiquei na minha pesquisa é que a ditadura certamente foi o momento sensível e central para o impulso dessas empresas. Antes da ditadura, a gente tinha um conjunto numeroso de empreiteiras e, no final do regime, a gente vê os oligopólios com atuação diversificada na economia. Foi um setor protegido pelo regime. 

Ricardo Silveira – Pedro, eu gostaria que você explicitasse como as empresas criavam essas necessidades junto ao poder público.

Pedro Campos – Tem vários indícios, várias situações que comprovam isso. Tem um caso da ditadura, do aeroporto internacional de São Paulo, em Guarulhos, que foi muito debatido e criticado na época. A Camargo Corrêa defendeu de maneira ardorosa a ideia e foi a idealizadora da obra, mas existia toda uma argumentação, na época, de que não era uma necessidade, pois existia Viracopos e outras alternativas.

Pouco antes foi realizada uma obra monumental para erguer o aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. Então a Camargo Corrêa e as empreiteiras paulistas foram algumas que intensamente criaram a demanda de que aquela obra era urgente, que tinha que ser feita. E foi ali, no finalzinho da ditadura, início da década de 1980, que ela foi realizada.

Marina Amaral – Raimundo, eu queria saber se vocês tinham essa percepção, se notavam um grupo empresarial que apoiava a ditadura especificamente?

Raimundo Pereira – A coisa que nós sempre destacamos é que esse é um golpe que tem composição da conjuntura internacional, da posição americana, do financiamento do Ibad e o papel da própria imprensa. Assim, eu sou um pequeno-burguês muito privilegiado, eu vou fazer 77, tenho aposentadoria, trabalho na editora Manifesto, minhas filhas já estão criadas, minha companheira também trabalha. Agora o mundo é um mundo extremamente desigual, controlado pelo capital financeiro.

Marina Amaral – Pedro, de que maneira a ditadura contribuiu para o aprofundamento dessa desigualdade?

Pedro Campos – Um dos principais legados que a gente tem do regime é justamente o aumento da desigualdade. Se a gente olhar os números, houve uma concentração de renda muito significativa no período. Entre as empresas, a gente vai ter um processo de concentração grande também, com uma política de fusão de empresas, incorporações. Isso ocorre em diversos setores: no setor bancário, a gente tinha um sistema bastante descentralizado antes do regime, e no final houve a formação de diversos grupos, Bradesco, Itaú, Moreira Salles. E são esses grandes grupos beneficiados pela ditadura que vão ter protagonismo político bastante significativo na democracia.

Marina Amaral – Eu gostaria que a gente pensasse corrupção em outro sentido, como uma maneira de conquistar privilégios, o que nos faz entrar num outro terreno. Pedro, você notou no seu livro uma proximidade política entre as empreiteiras e o governo, que tipo de privilégios se concede?

Pedro Campos – É interessante como certos grupos mais conservadores vão pautar essa questão, é meio caricato, mas o MBL diz que a corrupção é uma questão de Estado em excesso. Então, quem tem muito Estado tem mais corrupção. Não é o Estado que é em si corrupto, mas essas empresas, que em sua ação vão usar arbitrariamente atividades ilegais e vão corromper o Estado.

Eu lembrei um aspecto importante, a situação dos trabalhadores durante a ditadura. A gente fica pensando no desenvolvimento, mas os grupos sociais, os trabalhadores foram grandes vítimas desse processo. Houve políticas de arrocho salarial, vários direitos sociais conquistados foram perdidos e, particularmente, na construção civil a gente tem um traço bastante perverso, que é essa displicência em relação à segurança no ambiente de trabalho.

A gente tem uma multiplicação impressionante dos acidentes de trabalho, uma marca do regime. Na década de 1970, o próprio Chico Buarque não faz a música “Construção” à toa: ”Morreu na contramão atrapalhando o tráfego”. O que a gente vê naquela época é uma elevação bastante significativa dos acidentes e das mortes. Na década de 1970, que é o pico da economia brasileira, o chamado milagre econômico, acontece uma série de obras no país, e são 8 mil mortes por ano. É um genocídio. Existiu uma política de isenção fiscal para as empresas, e por via política endereçada aos trabalhadores. E isso precisa ser lembrado para esclarecer a população do que foi a ditadura, tendo em vista que muitas pessoas hoje defendem a intervenção militar.

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