Buscar
Agência de jornalismo investigativo
Reportagem

Nicinha e o sindicato rural dirigido apenas por mulheres

Em Rondon do Pará, foram tantos os trabalhadores assassinados que nenhum homem quer assumir cargo de direção. Toda a executiva é composta por mulheres

Reportagem
22 de julho de 2013
09:46
Este artigo tem mais de 11 ano

Zuldemir dos Santos de Jesus, a ‘Nicinha’, guarda com cuidado uma pasta já antiga. Nela estão mais de 20 folhas de papel. São cópias de boletins de ocorrência policial, declarações e atas de atendimento encaminhadas ao Programa Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos. Resumem a luta de ‘Nicinha’ para se ver livre das ameaças contra sua vida, recorrentes desde que assumiu um papel de liderança no Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Rondon do Pará, no sudeste do estado.

Mulheres juradas de morte por fazendeiros no Pará
Mulheres juradas de morte por fazendeiros no Pará

Aos 52 anos, ela acumula as funções de vice-presidente e diretora de Políticas Sociais do sindicato. Vive assombrada, não sem motivos. No dia 29 de janeiro desse ano, um vizinho ouviu o barulho de um carro. Passava das 23 horas. O vizinho ouviu passos em direção ao portão da casa de Nicinha e viu quando um homem tentou forçar a entrada. O vizinho de Nicinha acendeu uma lanterna e o desconhecido recuou, indo embora no carro.

Em outra ocasião, dois anos antes, a janela da casa de Nicinha foi riscada com faca. Em outubro de 2012 estava em casa quando percebeu que alguém forçava a janela de um dos quartos. Nicinha sabe que as ameaças podem ser concretizadas. Já viu duas lideranças do sindicato serem assassinadas. Não quer ser mais uma a engrossar a lista.

Não era o que ela esperava em 1996, quando ingressou no Sindicato dos Trabalhadores Rurais, de forma até prosaica. Seis anos antes procurara o sindicato buscando acelerar o processo de aposentadoria da mãe, que vivera como lavradora. Gostou do que viu, se interessou pela luta por reforma agrária. Conheceu Maria Joel Dias da Costa e José Dutra, o ‘Dezinho’, presidente do sindicato, que viria a ser assassinado na porta de casa em 2000.

Zuldemir passou a trabalhar no sindicato como secretária. Em 2002 se tornou dirigente sindical, sob a influência de um grande amigo, o diretor sindical Ribamar Francisco dos Santos, assassinado em 2004. “Esse foi um dos maiores choques da minha vida”, diz ela. A partir daí Nicinha afirma que não teve mais sossego. Ao ir para a linha de frente das lutas sindicais, passou também a receber a sanha dos adversários.

“Ligavam para minha casa sem se identificar, diziam que iam matar eu e minha família toda. Foram momentos muito difíceis, fiquei desesperada”, lembra.

As ameaças surgem de maneiras improváveis. “Houve o episódio de um suposto advogado que me procurou dizendo que queria conversar comigo em casa e não no sindicato. Eu sei que é costume matarem sindicalistas em suas casas. Esse advogado pegou o meu telefone com a secretária do sindicato, depois se apresentou como funcionário do Instituto de Terras do Pará, o Iterpa, e que estava em um carro sem identificação e de vidros fumê. Essa pessoa ligou para mim, se dizendo advogado de Marabá, mas não se identificou. Eu disse que não poderia falar com ele em casa, mas o receberia no sindicato. Ele não apareceu”.

Em outra ocasião, quando haveria uma reunião em um acampamento que enfrentava uma ordem de despejo, uma pessoa a alertou para não ir à reunião, pois a estariam esperando na estrada, com a intenção de matá-la. Por precaução, Nicinha não foi à reunião, mas se dirigiu a casa da presidente do Sindicato, Maria Eva dos Santos Dias. As duas viram um motoqueiro com uma arma na cintura na frente a casa de Eva. Nicinha acredita que o desconhecido a seguira até ali.

Também foi suspeita foi a presença de quatro homens numa caminhonete, que foram ao Sindicato assuntar pelo endereço de Nicinha. A sindicalista prefere não citar nomes, mas diz também receber ameaças de uma pessoa que está presa por ter assassinado o coordenador de um acampamento. “Essa pessoa já avisou que assim que sair da prisão vai fazer um massacre no sindicato”, diz.

Nicinha. Foto de Antônio Cícero
Nicinha. Foto de Antônio Cícero

No dia 23 de outubro de 2011 Nicinha recebeu uma ligação de Brasília. Nem ela sabe explicar como, mas os rumores das ameaças de morte chegaram à capital federal. O Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, manifestou preocupação com a sua situação. Cinco dias depois, doze policiais chegaram a Rondon do Pará. Fariam a proteção a Nicinha. “Só não me avisaram que seria apenas por três meses”, diz ela. Ao fim, a proteção foi estendida por mais três meses. Agora, Zuldemir está desamparada de proteção policiai desde abril de 2012. “No momento em que a situação estava mais tensa, mais complicada, com a luta pela regularização de terras sendo feita de forma mais acirrada e ameaça de confrontos, a proteção foi embora”.

Segundo ela, a situação de Rondon do Pará é delicada. “Acredito que as ameaças são do mesmo grupo que assassinou o Dezinho e o Ribamar, tesoureiro do sindicato. Hoje a prefeita da cidade é filha de um dos fazendeiros do grupo de ameaçadores, os que nunca foram punidos”.

A vida de Zuldemir é agitada. O marido não suportou a pressão e se separou dela. Um golpe a mais para quem vive entre a família, o sindicato e a assistência a assentamentos.

Mulheres juradas de morte por fazendeiros no Pará
Mulheres juradas de morte por fazendeiros no Pará

O sindicato atende em torno de 2.500 famílias assentadas, que se sustentam da venda do que produzem. E, fato curiosamente trágico, devido aos assassinatos, os homens não quiseram assumir nenhum cargo diretivono sindicato. Toda a executiva é composta por mulheres.  “Tem dia que fico pensando que vou sair de casa, mas não irei voltar. Nos fins de semana, quando fico sozinha em casa, não durmo, porque fico observando cada movimento. Duas vezes já tentaram abrir a porta de minha casa. Viver com tranqüilidade é algo que desaprendi a fazer”.

Fotos: Antônio Cícero

Não é todo mundo que chega até aqui não! Você faz parte do grupo mais fiel da Pública, que costuma vir com a gente até a última palavra do texto. Mas sabia que menos de 1% de nossos leitores apoiam nosso trabalho financeiramente? Estes são Aliados da Pública, que são muito bem recompensados pela ajuda que eles dão. São descontos em livros, streaming de graça, participação nas nossas newsletters e contato direto com a redação em troca de um apoio que custa menos de R$ 1 por dia.

Clica aqui pra saber mais!

Se você chegou até aqui é porque realmente valoriza nosso jornalismo. Conheça e apoie o Programa dos Aliados, onde se reúnem os leitores mais fiéis da Pública, fundamentais para a gente continuar existindo e fazendo o jornalismo valente que você conhece. Se preferir, envie um pix de qualquer valor para contato@apublica.org.

Quer entender melhor? A Pública te ajuda.

Leia também

Ameaçada desde 1996, Regina sonha viver em paz

Por

Em Eldorado dos Carajás, a migrante cearense que preside o sindicato rural vive escoltada por dois companheiros e não pode conviver com os netos para não expô-los ao risco

Cleude, com medo, tenta pegar na mão de Deus

Por

A líder começou a lutar por terra aos 10 anos, numa marcha do MST; aos 22, ouviu de um pistoleiro que só conseguiria terra debaixo dela

Notas mais recentes

Do G20 à COP29: Líderes admitem trilhões para clima, mas silenciam sobre fósseis


COP29: Reta final tem impasse de US$ 1 trilhão, espera pelo G20 e Brasil como facilitador


Semana tem depoimento de ex-ajudante de Bolsonaro, caso Marielle e novas regras de emendas


Queda no desmatamento da Amazônia evitou internações por doenças respiratórias, diz estudo


Dirigente da Caixa Asset deixa sociedade com ex-assessor de Lira após reportagem


Leia também

Ameaçada desde 1996, Regina sonha viver em paz


Cleude, com medo, tenta pegar na mão de Deus


Faça parte

Saiba de tudo que investigamos

Fique por dentro

Receba conteúdos exclusivos da Pública de graça no seu email.

Artigos mais recentes