Na última sexta-feira, 23, o governo do Acre decretou estado de emergência por causa do número de queimadas neste mês de agosto – período que, sozinho, registrou 85% do total de queimadas durante o ano no estado. Foram mais de 2.500 focos de queimadas, com maior concentração em áreas particulares, segundo relatório divulgado pela Secretaria de Meio Ambiente do Acre.
Uma das áreas é um terreno de 10 hectares onde moram cerca de dez famílias indígenas da etnia Huni Kuin, também conhecida como Kaxinawá. Em entrevista à Agência Pública, o cacique Mapu Huni Kuin explicou que o fogo destruiu mais de 50% da área que abriga o Centro Huwã Karu Yuxibu, voltado para o fortalecimento da identidade cultural indígena do povo Huni Kuin. “É um projeto também para revitalizar a cultura de parentes que vivem na cidade, não praticam mais comida, rezas, dança, artesanato, medicina etc.”, diz.
Mapu suspeita que o incêndio foi criminoso e pede que as autoridades investiguem o caso. Um Boletim de Ocorrência foi registrado pelos indígenas. Em nota, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) afirma que o incêndio “extrapolou todos os limites” e condenou “a ação de agrocriminosos que, também de forma violenta, agridem a natureza e viola direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais, em ações que, por fim, prejudicam a todos”. A Pública procurou a Polícia Civil de Rio Branco para saber sobre a investigação do caso, mas não conseguiu contato.
O Centro Huwã Karu Yuxibu, explica Mapu, fica em Rio Branco, e o acesso é pelo quilômetro 36 da Rodovia AC-90. Localizado dentro de uma Área de Proteção Ambiental – a APA do Igarapé São Francisco –, o fogo, conta o cacique, começou no dia 22 de agosto e destruiu tudo em questão de horas. “Não deu tempo de ninguém socorrer nada”, afirma.
Mapu disse que o fogo consumiu as plantações de banana, açaí e mamão, que fazem parte da alimentação dos indígenas. Outras plantas e animais como tartarugas, tatus e macacos também foram atingidos pelo fogo, assim como as mangueiras do local, ele relata. Além disso, o acesso à água foi comprometido. “O fogo só veio para nos mostrar que a gente tem que se unir mais”, diz Mapu, que agora tenta juntar apoiadores para reflorestar o local, que não é um território indígena e foi comprado para construção do centro.
Mapu faz atividades como vivências espirituais indígenas junto a apoiadores em outros países e também no Brasil para levantar os valores necessários para a compra do terreno. “Esse é o projeto, dar continuidade. Só que temos que procurar exatamente que tipo de motivo causou esse tipo de incêndio. Porque a gente sempre tenta fazer o bem, e vamos continuar fazendo o bem. Mas temos que entender o motivo”, desabafa o cacique, que afirma que o “o centro foi destruído” pelo fogo. “Estamos sendo brutalmente atacados”, afirma.
O site Amazônia Real relata em reportagem que o Corpo de Bombeiros afirmou que a área de floresta destruída da comunidade corresponde a cinco campos de futebol. “O sargento André Silva disse que um grupo de indígenas, que forma uma brigada ambiental treinada, tentou apagar as chamas, mas depois buscou o apoio dos bombeiros, que agiram rápido e evitaram que o fogo chegasse às casas. Por isso os moradores da comunidade Huni Kuin não ficaram desabrigados. Os bombeiros suspeitam de crime ambiental para a ocorrência”, diz a matéria.
Antes do fogo, o conflito em Plácido de Castro
Mapu e a família tentam desde 2015 manter em funcionamento o projeto do Centro Huwã Karu Yuxibu (“o dom das medicinas”, em tradução livre). “Queremos o respeito, estamos trabalhando tanto pra construir algo melhor, contribuir com a humanidade, e a gente está sendo atacado dessa forma. Isso traz uma grande preocupação e a gente vem pedindo apoio. Estamos lutando pela vida, pela sobrevivência, pela preservação da natureza”, diz.
Antes de comprar terras nas proximidades de Rio Branco para o desenvolvimento do centro cultural, o cacique Mapu e outros indígenas da mesma etnia haviam iniciado as atividades do Centro Huwã Karu Yuxibu em Plácido de Castro, a cerca de 97 km da capital. Trazidos pelo ex-vereador e então diretor de Articulação Cultural da cidade, Allison Ferreira, os indígenas ocuparam, entre agosto de 2015 e novembro de 2017, um pedaço do Parque Ecológico da cidade.
Segundo Mapu, o Parque Ecológico estava abandonado havia mais de 15 anos. “Ninguém cuidava mais, estava servindo para os traficantes e até hoje está tendo muito forte isso de facções. E ao mesmo tempo para prostituição”, conta.
A área do parque destinada ao grupo chegou a abrigar 36 pessoas de sete famílias Huni Kuin. Com a ajuda da Universidade Federal do Acre (Ufac), os indígenas reflorestaram 6 hectares dentro do parque, plantando alimentos e mudas de ayahuasca, utilizada em rituais de cura da etnia. As atividades medicinais dos Huni Kuin atraíram turistas e eles chegaram a produzir um festival no local. Além disso, o grupo articulou parcerias com universidades para a promoção de educação ambiental.
Apesar do apoio inicial da prefeitura, a ocupação dos Huni Kuin no Parque Ecológico nunca chegou a ser regularizada. O cacique Mapu afirma ter sido ameaçado de morte em abril de 2016. A investigação, iniciada após registro de Boletim de Ocorrência pelo indígena, não encontrou os responsáveis pela ameaça.
Os indígenas deixaram o local em setembro de 2017, após desentendimentos do grupo com um ex-vereador da cidade e com o dono de uma granja vizinha ao parque, acusado de cercar a terra onde eles se encontravam e impedir o abastecimento de água pelas famílias. “Chegou um momento que eu conversei com a família e falei: ‘Não precisamos mais passar por isso’”, conta Mapu, que é originário da TI Kaxinawa Ashaninka do Rio Breu. Segundo estudo do Instituto Socioambiental (ISA), os Huni Kuin tem população de 7 mil pessoas que vivem no Acre e no sul do Amazonas. No Brasil, as aldeias, algumas já homologadas, se espalham pelos rios Tarauacá, Jordão, Breu, Muru, Envira, Humaitá e Purus.