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Cinco meses após o fuzilamento de Evaldo Rosa pelo Exército, seu sogro, que também foi atingido, conta à Pública por que não acredita na Justiça Militar

Entrevista
6 de setembro de 2019
12:06
Este artigo tem mais de 5 ano

A entrevista acontece cedinho pela manhã, às 7 horas, quando Sérgio Gonçalves de Araújo sai do trabalho de manobrista na zona do sul do Rio de Janeiro. Depois de tantos anos manobrando carros é difícil para esse senhor de 60 anos recém completados, magro e simpático, entender por que nove membros do Exército brasileiro decidiram disparar 257 vezes contra o Ford Ka em que ele estava. Isso aconteceu há exatos cinco meses. Os soldados afirmam ter confundido o carro com outro veículo, semelhante, que havia sido roubado poucos minutos antes. “Acho que eles visaram mais a cor do carro, porque era a mesma cor: branca. Mas todo carro tem uma placa, todo carro tem uma coisa diferente do outro. Um tem insulfilme nas laterais, não tem na frente, tem atrás, e assim vai… Então, eles visaram a cor do carro e o tamanho do carro. Poderia ser um Ford Ka simples, branco. Ford Ka tem dois, tem o sedan e tem o comum. E aí?”.

Nascido em São João de Meriti, Sérgio conheceu a esposa quando eram vizinhos na favela do Muquiço. Foi ali que começou a união que já ultrapassa 35 anos. Anos depois, sua afilhada, que ele chama de filha – a quem criou desde os 7 anos –, conheceu na mesma favela da zona norte do Rio o marido, Evaldo Rosa, fuzilado no dia 7 de abril deste ano. Foi ali também, diante da favela do Muquiço, no bairro de Guadalupe, que o Exército baleou o carro e sua família em plena luz do dia. Duas vezes. Sérgio também estava no carro, no banco do carona, e foi atingido por estilhaços das balas de fuzil. “[Evaldo] foi alvejado, já caiu morto no meu ombro”, recorda.

Nesta entrevista, ele lembra detalhes daquele dia e clama por justiça. Revolta-se com o fato de os nove soldados terem sido postos em liberdade pelo Superior Tribunal Militar, em maio. Por serem das Forças Armadas, os executores respondem pelo crime na justiça militar. “Tem que pagar pelo que fez – pode ser Exército, Marinha, Polícia Militar, pode ser o que for. Isso está crucificando a família. Enquanto eles estão respondendo em liberdade, a família sofre com isso.”

Sérgio Gonçalves de Araújo estava no mesmo carro que o genro, Evaldo Rosa – morto pelo Exército em abril deste ano – e foi atingido por estilhaços das balas de fuzil

Você considera perigosa aquela região onde ocorreu o ataque contra o carro de vocês?

Não. Porque ali é uma área comandada pelo Exército, é uma área militar. Então a gente nunca iria imaginar que ali poderia acontecer um fato desses, entendeu? Porque não foi nem bandido, não foi ninguém do Muquiço, não foi nada disso.

Você pode contar o que aconteceu naquele dia?

Eu trabalhei num sábado e saí às 7 horas da manhã de domingo. Então eu tava… Eu tava fazendo um serviço na casa da minha outra enteada. E como a Luciana, minha filha, ia vir pra São João do Meriti, onde eu moro, para um chá de bebê, ela me ofereceu uma carona. Tipo 1 hora, 1h05, por aí, a gente saiu. Eu, o meu genro, ela, o meu neto e a colega dela, que também ia no evento, no chá de bebê.

E como é que era a sua relação com o Evaldo?

Era de pai pra filho. Minha esposa, de mãe pra filho também. Foi o primeiro namorado dela, e o primeiro homem que ela casou. Há mais de 27 anos que eles tavam junto. Na época ele tinha um grupo de pagode chamado Remelexo da Cor. Ele era vocalista e tocava banjo. Depois ele foi trabalhar de segurança, mas aí continuou aos pagodes da vida. Final de semana ele ia no pagode dele, aí todo mundo conhecia lá, tocava e tal… Eu sempre ia no show dele. Era uma ótima pessoa, ótimo músico, tocava, trabalhador, muito trabalhador. A pessoa, quando é do bem, entendeu?

Então me conta, desculpa, continue… Vocês entraram no carro e…

Entramos no carro e fomos embora. O carro deve ter vidro fumê, mas a película não é aquela película que você não consiga ver quem tá de dentro pra fora ou de fora pra dentro. Então, saímos de Marechal, pegamos uma rua pequena chamada rua do Borracheiro, onde tem dois quebra-molas. Devagarinho, ele sempre muito atencioso no volante, muito atencioso mesmo. O filho atrás dele, no banco de trás dele, a colega da minha filha no meio, e a minha filha atrás do meu banco. Depois que a gente passou do segundo quebra-molas, o carro não tava a mais de 10 quilômetros, então ele deu primeira marcha, quando ele entra na avenida, ele foi passar pra segunda marcha… Aí foi quando aconteceu.

Aí vocês ouviram os tiros…

Muito, muito, muito tiro.

Que vieram dessa rua principal, né?

É, veio dessa rua principal, e tudo do lado dele [do Evaldo]. Tudo na lateral da esquerda, né?, que é o lado do motorista. Conforme ele foi alvejado, já caiu morto no meu ombro, aí o carro perdeu a força. Já tava morto, caído aqui no meu ombro. Aí o que que eu fiz? Eu peguei, como já tava perdendo a velocidade, eu peguei o volante, puxei pra rua, aí eu trouxe o carro pra rua, puxei o freio de mão e desliguei o carro.

Quando vocês começaram a ouvir os tiros, você conseguiu ver de onde vinha?

A gente não viu carro do Exército, não viu nada. Entendeu? Eles não tavam, assim, em frente à rua que a gente tava saindo. Eles tavam mais pra trás, no sentido contrário de onde a gente ia entrar. Segundo eles, foi roubado o mesmo carro, um carro igual, idêntico ao do meu genro, que era um Ford Ka sedã. Mas até aí… Não tem uma Maria só no mundo, né? Eles poderiam, primeiro, parar o carro… Tinham que abordar o carro, né? Se o carro foi roubado e entrou pra dentro do Muquiço, jamais esse carro ia sair de dentro do Muquiço na velocidade de menos de 10 quilômetros. Aí foi que a minha filha viu que era o pessoal do Exército. Ela ainda falou: “Calma amor, calma amor, que é o Exército”. Aí saiu ela, a colega dela e meu neto. No que ela correu, desesperada, gritando por causa do meu neto, aí o catador de reciclagem, que é esse rapaz que morreu, o Luciano, foi tentar ajudar. Ele passou pela frente do carro, aí veio na porta do meu genro, quando ele foi meter a mão pra poder abrir e eu virei pra destravar a porta, aí que eu vi o pessoal do Exército do outro lado. Aí eu vi. Eles tavam do outro lado.

Mas com o fuzil?

Tudo armado. Segundo eles, a característica do cara que roubou o mesmo carro que era igual ao do meu genro, era a característica do rapaz que foi socorrer. Tava de bermuda e de camiseta. Só que esse rapaz tava de bermuda e camiseta no ombro, entendeu?

Estava sem blusa.

Então quer dizer, infantilidade deles. Porque se o cara roubou o carro, como é que vai socorrer outra pessoa, no mesmo carro? Isso não existe. Quando ele passou, e eu destravei a porta, ele não deu tempo nem de botar a mão na maçaneta pra abrir a porta. Aí começou de novo, aí começou a segunda sessão de tiro. Muito, muito, de novo, muito tiro. Aí, a única intuição que eu tive, que Deus me deu, foi me abaixar debaixo do painel. Fiquei entre o banco que eu tava sentado e o painel, e me encostei no console. Aí foi que eu senti… Eu já tinha sido atingido, né?, aqui nas costas, por estilhaço. Se você vê a foto do carro na segunda instância de tiro, eles atiraram justamente no parabrisas, no lado do carona. Tá tudo perfurado no carona. Se eu não me agachasse, aí… eles iam acertar minha cabeça.

Já tava doendo?

É, aí eu senti. Aqui a ferida rasgou mesmo, a parte do glúteo rasgou. Quando eles pararam, já tinha atingido o rapaz, parece que perfurou o pulmão do rapaz, não sei quantos tiros ele levou, caiu lá. Era um domingo, devia ser 1 e pouca pra 2 horas da tarde, um sol danado, não tinha ninguém na rua, não tinha trânsito, não tinha carro, não tinha gente, não tinha tiro, não tinha nada, nada, nada, nada. Era um domingo bonito, um domingo mesmo de praia. E o rapaz caiu ali, a esposa dele foi pedir um dos homens do Exército pra poder socorrer, pelo menos puxar ele pra sombra. Não: sonegaram. “Não vamos meter a mão em vagabundo, não”, não sei o quê… Aí eu falei: “Já tô baleado mesmo”. Abri a porta e corri.

O que o senhor pensava nesse momento que estava agachado?

Não vem nada. Olha, o negócio é tão de repente, é tão rápido. A gente vai pela intuição. Foi o que eu fiz. Se eu saísse do carro, eles iriam me matar. Entendeu? Porque, pra eles, aquele carro ali só tinha bandido. Não tinha precisão de esta segunda sessão de tiro, porque, primeiro, minha filha saiu com meu neto. Tem uma criança, tem duas mulher. É carro de família. Mas eles atiraram de novo.

Sérgio aponta para o local do fuzilamento

Você correu para onde?

Eu corri, já tava todo ensanguentado, já tava perfurado nas costas, o glúteo já tava rasgado… Aí corri e procurei ajuda num bar. Aí veio um deles onde eu tava, armado, e aí o senhor que tava disse: “Sai daqui, sai daqui, vocês já fizeram besteira, deixa, sai daqui”.

Por que o soldado do Exército foi te procurar?

De repente ele pode ter ido lá pra poder ver realmente se eu era trabalhador… Eu tava assim ó, tava com o uniforme da empresa. Saio do serviço, eu ando assim. Então ele viu eu já de uniforme, né?, eles deduziram a besteira que eles fizeram. Depois de dez minutos chegou a Samu e me levou pro Hospital Alberto Soares, onde saí na quinta-feira às 5 e pouca da tarde. Eu tive três perfurações aqui nas costas, dos estilhaços.

O que você achou da reação do Exército, da reação do ministro da Defesa…

Reação não tiveram nenhuma. Não tiveram uma reação de procurar família, de dar uma assistência, entendeu? Dar um socorro. Eles tentaram de qualquer jeito culpar o meu genro. Isso foi uma das versões deles, que estavam sendo alvejados de dentro do carro pra fora. E nada do perito constatou nada disso.

E, na sua visão, o que que aconteceu ali? De quem é a culpa?

Olha, tem um mandante, né?, segundo eu soube, que é um tal de [tenente] Ítalo, que mandou aquilo ali. Então, o erro tá no despreparo. Eles não tão preparados pra tá portando arma daquele tipo perto de uma comunidade, porque comunidade não mora só bandido, mora gente honesta. Não tem que dar tiro, tem que primeiro parar e perguntar. Então, se tem um mandante, ele vai ter que responder por todos os crimes que cometeu.

Eu queria perguntar mais uma coisa: você, que tava aqui no ano passado inteiro, e o Exército ocupou o Rio de Janeiro, o que você achou?

Olha, em parte deu uma segurança boa. Então por isso que eu digo: a gente nunca iria imaginar que ali naquela área, por ser militar, iria acontecer essa tragédia.

E agora, já hoje, depois de passado isso, vocês já não têm a mesma visão do Exército?

Não, com certeza que não. Até de carro, passar ali, eu tenho medo.

Você tem alguma opinião pelo fato de eles não estarem mais presos, terem sido soltos?

Eu acho que isso aí é um absurdo. Porque, primeiro, eles não mataram bandido, mataram trabalhador. Tem que responder lá dentro, preso. Que que eles tão fazendo em liberdade? Porque sujeito mata e não tá preso, vai responder em liberdade. Até você ser julgado, de preferência… Olha, eu acho isso muito difícil, mas de preferência era eles ir a júri popular. Se fosse um pedido que eu tivesse que pedir, eu ia pedir que eles fossem a júri popular.

Por quê?

Porque, primeiro, eles são julgados só pela classe militar. No dia que teve lá na Ilha [do Governador, onde fica o Superior Tribunal Militar] o julgamento deles, só tinha uma civil, que era a juíza, que foi contra a soltura deles. O resto era desembargador da Marinha, era não sei o quê do Exército, era não sei da onde… É só militar. Como é que eles vão prender um sujeito desses pra sujar o nome deles mesmos? Isso não vai longe. Tem uma matéria que o Bolsonaro falou na televisão, e ele falava que o Exército não matou ninguém. Como é que um homem desses vai pra televisão falar uma besteira dessas?

E o que você diz, então, é que os próprios juízes militares, eles tão protegendo…

Eu acredito que sim, estão protegendo a farda deles. Porque, se vai a júri popular, ali não tem militarismo, não. Ali, júri popular são pessoas civis, são seres humanos, entendeu? Que tão vendo realmente o que eles fizeram, têm que pagar pelo erro que pratica, e que alguém mandou. Então tá, se mandam você atirar na sua cabeça, você vai atirar? Não, isso não existe. O ideal seria júri popular, porque aí eles iam ver. Se a gente tivesse um presidente sério, humano, ele ia mandar ver esse caso, que é prioridade. Eu acho que não tem esse negócio de que é militar. Praticou um ato errôneo? Tem que pagar pelo que fez – pode ser Exército, Marinha, Polícia Militar, pode ser o que for. Por isso, vamos ficar lutando, vamos ficar se remoendo… Isso está crucificando a família. Porque, enquanto eles estão respondendo em liberdade, a família sofre com isso.

AF Rodrigues/Agência Pública
AF Rodrigues/Agência Pública

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