O coronel Glaucio Octaviano Guerra — militar da reserva da Aeronáutica Brasileira envolvido no escândalo da negociata paralela de vacinas no Ministério da Saúde —, teria participado junto a outros militares da negociação de um contrato de venda de equipamentos de segurança para a intervenção federal no Rio de Janeiro cancelado sob suspeita de falsificação de documentos.
A negociação em questão foi a compra de 9,3 mil coletes à prova de balas para a Polícia Civil ao custo médio de R$ 4,3 mil a unidade, em 2018. O contrato de R$ 40 milhões foi firmado com dispensa de licitação, assinada pelo atual ministro da Defesa, general Walter Braga Netto, então interventor federal no Rio. Em 31 de dezembro de 2018 — último dia da intervenção — foi publicado o empenho de R$ 40,1 milhões para pagamento do contrato.
A invoice — um documento de compromisso de pagamento por prestação de serviços com empresas do exterior — foi liberada em 8 de janeiro de 2019, nos primeiros dias do governo Jair Bolsonaro. Em julho, no entanto, o contrato foi suspenso e o pagamento cancelado por suspeitas de irregularidades. O documento do gabinete de intervenção que oficializou a suspensão do contrato descreve que os militares receberam um dossiê com denúncias sobre a qualidade dos coletes e a qualificação técnica da empresa contratada, incluindo “suposta falsificação de documento”.
A empresa responsável pela venda dos coletes era a CTU Security, sediada em Miami, nos Estados Unidos. Guerra é indicado como consultor da CTU em um documento do governo que estabeleceu uma comissão provisória para receber e examinar os coletes. À Agência Pública, ele disse não saber a razão do seu nome constar no documento e afirmou que atuou apenas informalmente nos casos da CTU e da oferta de vacinas ao Ministério da Saúde. Contudo, ele confirmou estar presente na visita dos oficiais do governo à fábrica da CTU, nos EUA. O militar vive nos Estados Unidos desde 2013, quando foi designado como chefe da Divisão de Logística da Comissão Aeronáutica Brasileira em Washington. Em 2016, ele passou à reserva e seguiu no país como consultor para empresas que buscam contratos internacionais.
Recentemente, a CTU se tornou internacionalmente conhecida por suspeita de agenciar mercenários que teriam atuado no assassinato do ex-presidente do Haiti, Jovene Moïse, em julho deste ano, e em um atentado contra o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, em 2018. Os casos são investigados pelo FBI e por órgãos de segurança do Haiti, Venezuela e Colômbia. Tony Intriago, presidente da CTU, é um imigrante venezuelano.
Governo tentou fiscalizar coletes, mas empresa contratada não os apresentou
Segundo o Gabinete de Intervenção, “um total de seis empresas apresentaram propostas, sendo que apenas a CTU atendeu às exigências de especificações técnicas impostas aos proponentes”. Segundo um relatório das empresas interessadas em concorrer ao edital, a CTU fez sugestões para a elaboração do edital, mas apenas uma foi acatada: adotar um trâmite menos burocrático para autenticação de documentos de empresas do exterior, sem precisar passar pelo Itamaraty ou por representações do Brasil.
O irmão mais novo de Glaucio, Glauco, foi constituído como advogado da CTU por indicação do irmão, como ele mesmo confirmou à Pública. Glauco Octaviano Guerra é um ex-auditor fiscal, exonerado por ato de improbidade administrativa, e que foi preso no ano passado acusado de desviar dinheiro público que seria destinado à compra de respiradores para atender pacientes com covid. A empresa de Glauco, a MHS Produtos e Serviços, já recebeu mais de R$ 1,4 milhões em contratos com o governo federal — a maioria com as Forças Armadas.
Em maio daquele ano, três oficiais, o Major Hilton Erikson, o subtenente Alexandre Dias e o inspetor Manoel Lage, viajaram a Miami em uma comissão provisória para receber e examinar os coletes — o que fazia parte de uma das cláusulas do contrato. Mas de acordo com documentos que a reportagem teve acesso, a CTU informou que a produção estava atrasada. De acordo com a empresa, não seria possível fazer a entrega pois teria ocorrido um pedido emergencial do governo do Estados Unidos e houve atraso na liberação de recursos pelo Banco do Brasil, responsável pela transferência.
Na visita, o coronel Guerra foi citado como consultor da CTU no documento oficial. À reportagem, o militar disse que nunca recebeu dinheiro da CTU e que participou do encontro apenas porque era amigo de um dos oficiais que fazia parte da comitiva e para se aproximar do presidente da empresa, Tony Intriago, em busca de oportunidades de negócios no futuro.
Além dos três oficiais, também participou da visita o coronel da reserva Diógenes Dantas Filho, ex-secretário de Transportes do Rio durante a gestão de Marcelo Crivella (PRB). Ele aparece em fotos do encontro e sua presença foi confirmada à reportagem pelo coronel Guerra, mas, curiosamente, seu nome não consta do relatório final enviado ao governo brasileiro. Segundo pessoas que estavam no local, o coronel Diógenes, como é conhecido, foi contratado pela CTU para demonstrar a qualidade dos coletes com testes. “Diógenes é uma pessoa capacitada, de grande notoriedade. Ele foi contratado para fazer a demonstração dos coletes porque eles são muito inovadores”, disse o coronel da reserva Aristomendes Barroso Magno à reportagem — ele representa a CTU atualmente.
Por e-mail, o gabinete de intervenção afirmou que o coronel nunca prestou serviços para o órgão e que a visita técnica à sede da CTU contou apenas com os três oficiais que compunham a Comissão de Recebimento e Exame de Material. Em janeiro de 2019, Bolsonaro nomeou Diógenes como conselheiro da presidência da Petrobras. Hoje ele está na Transpetro.
Fornecedora apresentada por empresa levantou suspeitas de falsificação
Segundo os documentos obtidos pela Pública, a falsificação teria relação com a empresa fornecedora de componentes dos coletes: a CTU teria como fornecedora uma empresa chinesa, a Beijing V-Great, mas o material entregue ao governo brasileiro citava uma outra empresa, a Applied Fiber Concepts Inc (AFCI).
A Applied — que também é sediada em Miami — afirmou ao governo brasileiro durante as investigações que não tinha nenhum contrato com a CTU e nem com o Exército. Disse ainda que a CTU “pode ter fraudulentamente falsificado documento” e que a Applied estava processando a CTU por forjar assinaturas. Com as inconsistências, o contrato foi suspenso.
A Pública também entrou em contato com a Applied. O CEO da empresa, Alex Cejas, disse por e-mail, em inglês, que “nunca assinou nenhum tipo de contrato ou acordo com a CTU”. “Sequer sei quem eles são”, pontuou.
Todos os citados nesta reportagem foram procurados e negaram a prática de qualquer ato ilegal.
A investigação corre desde 2019 na Secretaria de Controle Interno da Secretaria-Geral da Presidência da República, que responde pelos atos do gabinete de intervenção, e ainda não tem prazo para acabar. Segundo o site Brasil de Fato, o Executivo passou a ocultar o nome da CTU nas portarias oficiais que estendem o prazo para apuração após a empresa ser envolvida na suspeita de participação na morte de Jovene Moïse e no atentado contra Maduro. O gabinete também informou que nunca tiveram contratos com os irmãos Guerra.
Suspeita de falsificação, empresa é chefiada por porta-voz de militares aliados de Bolsonaro
Atualmente, o coronel da reserva Aristomendes Barroso Magno se apresenta como representante CTU no Brasil. Ele também é coordenador do grupo Agir, segundo registro na agenda de Bolsonaro, um grupo que se se intitula um “direita, que quer contribuir com ações para derrotar a esquerda no Brasil e por fim ao caos que se criou no poderes da República”.
Há várias fotos de Bolsonaro junto com representantes do Agir nas redes sociais, mesmo antes de ele ser eleito, em 2018. Aristomendes e outros militares do grupo estiveram com Bolsonaro em maio do ano passado para manifestar apoio em meio à crise na troca de diretoria da Polícia Federal (PF) — o presidente é investigado pela própria PF por suposta interferência política no órgão.
O grupo Agir tem outro integrante conhecido: o coronel Hélcio Bruno, militar da reserva que dirige a ONG conservadora Instituto Força Brasil e foi indiciado na CPI da covid, no Senado Federal. Segundo registros oficiais e mensagens apreendidas pela CPI, Bruno utilizou uma agenda do Instituto Força Brasil no Ministério da Saúde para levar o grupo que vendia vacinas da Davati para a Secretaria Executiva do ministério. Na ocasião, foram com o militar o reverendo Amilton Gomes, da Senah, o representante da Davati, Cristiano Carvalho, e o PM Luiz Dominguetti, que tratou da oferta de vacinas com o coronel Guerra.
Além de participar de reuniões com Bolsonaro como membro do grupo Agir, o coronel Bruno é sócio de Aristomendes Magno na empresa BHJ Consultoria. De acordo com o militar, a empresa é de “segurança cibernética”, apesar de ser descrita à Receita como “consultoria empresarial, e está sendo fechada. Magno afirma que não participou da negociação de vacinas.
CTU quer retomar contrato
À reportagem, Aristomendes disse ser o atual responsável por prestar informações ao comitê que investiga a CTU. Ele afirma que o procedimento se encaminha para a fase final e a CTU espera poder reativar o contrato dos coletes com o governo brasileiro. “Achamos que é uma boa opção para o governo retomar o contrato. Seja para a polícia do Rio, seja para outras. Mesmo com o erro de documentação, nós temos o melhor colete e estamos esperando a conclusão para apresentar novamente”, disse o representante.
Nos corredores de órgãos públicos de Brasília, Aristomendes é conhecido como lobista de empresas que têm interesse em fechar contratos com a administração pública. Ele trabalha há 14 anos como gerente da empresa de engenharia PACS, que já prestou serviços para as Forças Armadas e outros órgãos públicos. Ele nega o título de lobista e diz que é contratado porque tem “formação e alto nível em gestão e planejamento”.
Em novembro de 2020, o coronel Aristomendes e o advogado Álvaro Luiz Miranda Costa Junior estiveram em uma reunião com o corregedor da Secretaria-Geral da Presidência da República, Vinícius Dantas, e o secretário de controle interno, Edson Leonardo Dalescio Sá Teles. Eles são os responsáveis pela investigação sobre a CTU. Aristomendes é citado na reunião como “presidente da CTU”, e Álvaro como “advogado da CTU”.