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Marcelo Bento Pires, acusado de pressionar por vacina da Covaxin e investigado na CPI, convidou grupo religioso para o Ministério da Saúde e agora tem vínculo nas Forças Armadas

Reportagem
31 de agosto de 2021
11:32
Este artigo tem mais de 3 ano

O coronel da reserva Marcelo Bento Pires, ex-diretor do Ministério da Saúde e acusado pelo servidor Luís Ricardo Miranda – irmão do deputado federal Luís Miranda (DEM-DF) – de fazer pressão para a compra da vacina indiana Covaxin, convidou para a Secretaria Executiva o grupo que oferecia doses inexistentes da AstraZeneca pela empresa Davati e, agora, foi nomeado a um cargo de assessoria técnica no Exército brasileiro. Desde 30 de agosto, o nome do militar foi incluído entre os investigados pela CPI da Pandemia no Senado. O requerimento para que ele vá depor foi votado em junho, mas ainda não há data certa para seu comparecimento.

De acordo com documentos inéditos aos quais a Agência Pública teve acesso por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), foi a partir de ordens do coronel Pires que o reverendo Amilton Gomes de Paula e outros representantes da Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (Senah) foram ao ministério no dia 2 de março deste ano. O objetivo do encontro, escrito num e-mail da Coordenação de Agenda e Cerimonial do Secretário Executivo: “aquisição de vacinas AstraZeneca”.

Foi por esse convite que o reverendo conseguiu sua segunda entrada no Ministério da Saúde e a primeira na Secretaria Executiva – principal órgão com poder de decisão abaixo apenas do gabinete do ministro da Saúde. Um funcionário da secretaria chegou a ligar para Amilton Gomes um dia antes para confirmar a agenda, conforme registrado no documento.

Apesar de ter sido exonerado do governo no dia 9 de abril, desde 1º de julho, o coronel Bento Pires exerce “a tarefa de assessoramento técnico nos assuntos e atividades de Estado-Maior do Comando Militar do Leste [Rio de Janeiro]” por um prazo de dois anos. A nomeação foi assinada pelo general do Exército José Eduardo Pereira. Segundo reportagem do Valor Econômico, no final de junho ele publicou em suas redes sociais que estava à procura de emprego.

A Pública questionou a assessoria de imprensa do Exército sobre a nomeação do coronel Pires mesmo após a acusação de envolvimento na compra da vacina da Covaxin e a investigação na CPI da Pandemia, mas não obtivemos retorno até esta publicação.  Perguntamos também sobre a remuneração desse cargo, uma vez que as informações não estão disponíveis no Portal da Transparência.

Além do militar, a reportagem encontrou na lista de presença o nome de Luana Gehres, também assessora do coronel Antônio Elcio Franco. Desde 8 de julho, Luana é chefe de gabinete da Secretaria Extraordinária de Enfrentamento à Covid-19, órgão criado em maio deste ano para coordenar as medidas de enfrentamento à pandemia – e também definir e coordenar as ações de vacinação.

É do início do governo Bolsonaro o primeiro vínculo de Luana com a administração federal: ela chegou ao Ministério da Saúde em abril de 2019 como coordenadora-geral de planejamento e operacionalização da Ouvidoria-Geral do SUS, ainda na gestão de Luiz Henrique Mandetta. No início de maio de 2019, foi escalada como substituta eventual do diretor da Ouvidoria. No fim de maio do mesmo ano, passou a ser assessora da Secretaria Executiva.

A reportagem questionou também a assessoria de imprensa do Ministério da Saúde sobre a presença de Luana e do coronel Bento Pires nas tratativas de vacinas, mas não obteve resposta até esta publicação.

Com terno preto, óculos quadrado e preto, com cabelo preto e calvo, coronel depõe à CPI
A convite do coronel Bento Pires, o reverendo conseguiu sua segunda entrada no Ministério da Saúde e a primeira na Secretaria Executiva – principal órgão abaixo do gabinete do ministro

Coronel foi ponte para reverendo e Dominguetti chegarem ao topo do MS

Em 22 de fevereiro, o reverendo Amilton Gomes de Paula, da Senah, entrou pela primeira vez no Ministério da Saúde para oferecer vacinas. Na época, o encontro ocorreu na Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS). O então diretor de Imunização e Doenças Transmissíveis da SVS Laurício Monteiro Cruz recebeu o grupo – além do religioso, estavam o policial militar Luiz Paulo Dominguetti e o major Hardaleson Araújo de Oliveira, da reserva da Força Aérea Brasileira, missionário da Senah e amigo do reverendo.  

Após esse encontro, o grupo foi convidado pelo coronel Bento Pires para a reunião do dia 2 de março, que ocorreu na Secretaria Executiva. “De ordem do Diretor de Programa do Gabinete da Secretaria Executiva do Ministério da Saúde, Cel. Marcelo Pires, procedemos o agendamento com o Grupo Internacional Latinair Suppor” [sic], informa o documento ao qual a reportagem teve acesso. A reunião nesse dia 2 ocorreu às 15 horas de uma terça-feira no gabinete da secretaria. 

Também aparecem na lista de presentes no gabinete do secretário executivo nesse dia o major Hardaleson Araújo de Oliveira; o empresário Renato Gabbi; a advogada Maria Helena Prill, ligada à associação internacional de polícia (IPA) – os dois estão ligados à Senah. Já entre os funcionários públicos, estavam o coordenador de ações estratégicas em pesquisa clínica do Ministério de Saúde, Max Nóbrega de Menezes; o conselheiro da Assessoria Internacional (Aisa) do ministério, Flavio Werneck Noce dos Santos; e Luana Gehres. 

Um dia antes da reunião, Dominguetti conversou com Mauriston – um dos diretores da Senah – sobre as estratégias para lidar com o governo. Na conversa, Mauriston relembra ao PM que os documentos enviados ao Ministério da Saúde estavam em nome da Latin Air, e não da Davati, mesma informação que consta no convite para o encontro enviado pela Secretaria Executiva. A Latin Air é uma empresa de peças de aeronaves registrada em nome de George Phillip Marques na cidade de Cooper City, no estado da Flórida, nos EUA. A cidade fica próxima a Boca Ratón e Deerfield Beach, onde estão empresas das quais o reverendo é sócio.

Em depoimento à CPI, o pastor afirmou que a reunião foi agendada após um e-mail enviado em 24 de fevereiro pela Senah, por solicitação de Dominguetti ao então secretário executivo Elcio Franco, hoje assessor da Casa Civil da Presidência da República.

Pazuello, homem branco com cabelo curto, posa sentado de máscara descartável e terno preto, com o símbolo do Brasil atrás
Em troca de mensagens com Dominguetti e outras pessoas que tentavam vender vacinas, advogado da Davati dá a entender que se encontraram com o ministro Eduardo Pazuello

Reverendo omitiu reunião com Roberto Dias pedida “com urgência” pelo governo 

Dois dias depois da reunião convocada pelo coronel Bento Pires, Amilton Gomes retornou ao Ministério da Saúde pela terceira vez – segundo documentos que a reportagem obteve, no dia 4 de março, ao Departamento de Logística (DLOG), à época comandado por Roberto Dias. 

Conforme os registros de entrada do local, o destino dele e de Antonio Carlos Martins – outro representante da Senah – foi o gabinete do DLOG. Ele entrou às 14h08 e saiu às 14h53. Esse encontro foi omitido pelo religioso durante seu depoimento à CPI. Amilton, aliás, negou na ocasião se lembrar de Roberto Dias, acusado por Dominguetti de ter cobrado propina para a compra de vacinas num encontro no restaurante Vasco, em Brasília, no dia 25 de fevereiro. 

De acordo com trocas de mensagens entre Dominguetti e Mauriston, da Senah, a reunião no DLOG teria sido convocada com urgência pelo governo. “O reverendo foi convocado com urgência para ir ao ministério hoje às 13:00”, escreveu Mauriston para o policial, por volta das 11h25. “Saiu daqui correndo para lá”, completou. Numa conversa com Dominguetti nesse dia, o reverendo escreveu: “Boa Tarde Domiguete! Estou na sala do Roberto Dias! Os outros se quer falaram com ele!” [sic].

Em conversa com Mauriston, Dominguetti afirmou que Roberto Dias tentou falar com o dono da Davati nos EUA, Herman Cardenas, e estaria tentando pular a intermediação da Senah para comprar as vacinas diretamente com a empresa. “Um diretor executivo do MS está tentando realizar a compra na davati”, disse Dominguetti no dia 1º de março.

Após o encontro no DLOG, Mauriston escreveu para Dominguetti, em tom de empolgação, que o governo já havia agendado uma nova reunião. “O ministério já chamou convocou [sic] para outra reunião. Só com a diretoria peso pesado do ministério. Só os poderosos. Acabou de chegar o email. Os caras do ministério ficaram loucos quando viram o valor.”

O tal encontro com “os poderosos” ocorreu na sexta-feira da semana seguinte,12 de março, quando Amilton Gomes e os representantes da Davati, Dominguetti e o CEO da empresa, Cristiano Carvalho, foram recebidos no gabinete do então secretário executivo Elcio Franco. Foi a quarta vez que o grupo do religioso entrou no Ministério da Saúde.

Eles chegaram às 9h30 ao local acompanhados dos representantes do Instituto Força Brasil – o presidente Hélcio Bruno de Almeida, o diretor Marcelo Lima, o diretor jurídico, Igor Morais Vasconcelos – e do CEO da empresa de vacinação privada Beep, Vander Corteze. Eles entraram pela área privativa do ministério, reservada aos convidados ilustres do ministro e de diretores da pasta.  

Em depoimento à CPI, Cristiano Carvalho afirmou que da cúpula do Ministério da Saúde, além de Elcio Franco, estavam o coronel Marcelo Bento Pires e o Coronel Cleverson Boechat, coordenador-geral de planejamento do Ministério da Saúde. 

Carvalho dá a entender, em troca de mensagens com Dominguetti e outras pessoas que falavam de vacinas, que no mesmo dia eles também se encontraram com o ministro Eduardo Pazuello. Em resposta a uma dúvida sobre a liberação da vacina da AstraZeneca pela Anvisa, Carvalho respondeu: “ouvimos isso no dia da boca do ministro”. O registro definitivo do imunizante da Oxford saiu exatamente em 12 de março.  

A reportagem questionou o Ministério da Saúde se Pazuello teria se encontrado com os citados e apresentamos o registro de entrada do grupo na área privativa do ministério. O órgão não respondeu às solicitações.

Advogada ligada a associação de policiais agiu nos bastidores 

Após ter deixado o Ministério da Saúde naquele dia, o grupo se dirigiu para o Lago Sul, área nobre de Brasília, para um almoço na casa da advogada Maria Helena Prill. Próxima do reverendo Amilton, ela atuou nos bastidores das negociações entre a Senah, o Ministério da Saúde e a Davati, conforme apontam as mensagens do celular do policial.

Sentados à mesa estão três homens brancos de roupa social; em pé está uma mulher à esquerda e outros quatro homens brancos de roupa social à sua direita
Advogada Maria Helena Prill recebeu grupo que tentava negociar vacinas no governo e presidente do Instituto Força Brasil em uma casa em Brasília

Foi ela, por exemplo, quem escreveu para Dominguetti no dia 16 de março sobre um suposto encontro entre o reverendo e o presidente Jair Bolsonaro: “ontem o rev esteve com o presidente”, disse, a que Dominguetti responde: “O problema não e presidente. Mas o ministério. Lá e complicado” [sic] Ela também foi ao ministério com Amilton na reunião do dia 2, com o coronel Marcelo Pires, como mostram os registros de entrada a que a reportagem teve acesso.

Maria Helena transita entre encontros com políticos, festas em sua casa e eventos oficiais. Em março deste ano, por exemplo, ela esteve com o deputado estadual por SP Castello Branco, do PSL, junto ao reverendo – ambos foram identificados como membros da Senah.

Maria Helena, aliás, aparece no Diário Oficial como agente de segurança ferroviária numa relação do Sindicato de Policiais Ferroviários Federais em Goiás, de maio deste ano. Amilton Gomes também foi nomeado agente pelo mesmo sindicato, em setembro do ano passado. A Polícia Ferroviária Federal é um órgão previsto pela Constituição – e que remonta aos tempos do Brasil Império –, mas que ainda não foi definitivamente implementado. A regulamentação da carreira do agente da Polícia Ferroviária também não está concluída – há ao menos um projeto em andamento no Senado.

Em julho do ano passado, Maria Helena assinou uma publicação no Diário Oficial como presidente da International Police Association (IPA Brasil), uma associação internacional, criada nos EUA, que reúne agentes de segurança para eventos sociais, honrarias, atividades educativas, esportivas e culturais entre seus membros. À Pública, o presidente da organização, Joel Zarpellon Mazo, negou que ela tenha participado de qualquer cargo de direção na entidade, apesar do registro no Diário Oficial

Segundo ele, Maria Helena não é associada, uma vez que é advogada e apenas policiais e bombeiros podem se filiar. Ele afirmou que a Senah, do reverendo Amilton, foi benemérita da IPA – categoria prevista no estatuto para organizações parceiras em projetos sociais – de 2018 ao final de 2019. “A Senah tinha se comprometido a fazer uma concessão de material didático. Dar uns livros para um projeto da IPA, mas isso não se concretizou. Acho que é por isso que o contrato foi suspenso”, explicou. 

Em 19 de novembro de 2020, quando o país ultrapassou a marca de 168 mil mortes por conta da Covid-19, o instituto organizou um grande evento em Brasília em comemoração dos dias da Bandeira e da Polícia Federal. Maria Helena se sentou na mesa do presidente Joel Zarpellon. 

Sentados à mesa, está da esquerda para direita uma mulher branca de cabelos escuros, ao lado um homem branco com cabelo escuro, curto e com um bigode, em seguida uma mulher loira, uma mulher morena e ao lado, em pé ao lado da mesa, um homem branco com terno preto e máscara preta
Evento do Dia da Bandeira, realizado em novembro de 2020, reuniu Joel Zarpellon e Maria Helena

“O evento, para 350 convidados, reuniu generais, desembargadores, juízes, presidentes de autarquias federais (Anvisa, Secretaria do Esporte, Ministério do Turismo entre outras), senadores, deputados e a presidência do Supremo Tribunal Militar”, divulgou a Union Life Administradora de Planos de Saúde, “patrocinadora master do evento”, conforme anunciado na festa. O presidente da empresa, Fabio Francisco Gonçalves dos Santos, foi um dos homenageados no jantar de gala. Mais espantoso, no entanto, foi a presença da diretora técnica da Anvisa, Meiruze Freitas, que também foi uma das homenageadas.

Também marcou presença no evento o lobista Silvio Assis, citado pelo deputado federal Luís Miranda, em entrevista exclusiva para a revista Crusoé, como o responsável por ter ofertado propina para não atrapalhar a compra da vacina da Covaxin.

Jefferson Rudy/Agência Senado
Tony Winston/MS
Reprodução CPI
Reprodução/ Youtube

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